sábado, março 26, 2005

TRECHO DO CANTO 13, OTHONIEL MENEZES

Ferreira Itajubá

Trecho do "Canto 13" (Minha Viola a Chorar)
Othoniel Menezes

O epitáfio mais pomposo,
A quem, porventura, o gozo
Do que não teve, dará?
- Na vala-comum, não dorme,
O diamante rude e enorme
Do crânio de Itajubá?

E eis o que este te diria,
Sem a santa hipocrisia
Do que te disse – por Deus!
Vê quão fiel se te ajusta,
Natal, cidade-Locusta,
Cornélia... de filisteus!

-“A terra onde tenho o nome,
mata os poetas – de fome.
Profeta, nenhum se viu...
A parábola de Cristo
Não teve melhor registro,
Mais dura não se cumpriu!

“Moura-torta de poetas!
Em minha vida, completas
O que fizeste aos demais!
Não venhas, depois, no trilho
Dos meus versos: - Ai, meu filho!
Carpir, madrasta mendaz!

“És linda. Iara morena,
pulando da água serena
do Potengi, a cantar,
nua, à sombra dos coqueiros,
perfumada de cajueiros,
-os seios furando o mar...

-“Jamais quizeste, entretanto,
ouvir o amoroso canto
de um filho. Formosa e cruel,
à mingua os matas. E, calma,
lhes negas tivessem alma.
És mãe – como a cascavel...

“Porventura, alguma estátua
já ergueste, cabocla fátua,
a quem fosse meu irmão?
Se a políticos se faça,
Quando farás, e em que praça,
A de Alberto Maranhão?

“Órfão de paz e conforto,
que importa – depois de morto -,
teus remorsos merecer?
Maldita sejas se, um dia,
Tentares, hiena ímpia,
As cinzas me revolver!

“De resto, não m’as perdeste?
Melhor destino, foi este,
Que o de um rótulo em latim,
- língua de enterro e de foro,
em que se diz que foi de ouro
tanta vasilha ruim...

“A glória a que aspiro – a única -,
a que há de ser minha túnica,
mais sagrada que a de um rei,
posse, intangível, se planta
na alma do povo – que canta
as canções que lhe ensinei!”-

Conceito geral, que a História
Tem dado à palavra – glória -,
Que pesas, sem a exceção?
Quem, no tempo, é mais gigante:
-Francisco de Assis ou Dante?
-O cérebro, ou o Coração?

Nascido sobre palhinhas,
Mais humilde que as rolinhas,
-Nu e Só, morre na Cruz....
Que Papa, na História inteira,
Vale um átomo, da poeira
Das jornadas de Jesus?

Feliz, quem possa, chegado
Do mundo, ao Céu estrelado,
Alto, à Consciência, dizer:
-“Amei!” Por amor, somente,
vir à terra, novamente,
sofrer! Batalhar! Viver!

Trecho do "Canto 13" (Minha Viola a Chorar) do livro "Sertão de Espinho e de Flor", de Othoniel Menezes - cuja segunda edição deverá ser posta em circulação em junho próximo. Prefácio de Cláudio Galvão, biógrafo do poeta, apresentação e notas de pé-de-página de Laélio Ferreira de Melo. Notar que as estrofes de Othoniel - profundo admirador da poesia de Ferreira Itajubá - sobre quem escreveu lúcido e erudito ensaio - revelam o seu desencanto, já naquela época, com os poderosos da província, as "igrejinhas", a hipocrisia da nossa paróquia... O poeta morreria, muito tempo depois, no Rio, auto-exilado e saudoso do chão onde nasceu.

Laélio Ferreira de Melo


A "LIBÉLULA DE AÇO"


Foto do Arquivo Nacional de Washington, mostrando
um Catalina VP-52 nas águas mornas do Potengi em 1942

Master Len (Lenine Pinto) Of Cotovelo.

Alvíssaras para Vossa Mercê !

Você, velho amigo, tem toda a razão. Os nossos "coleguinhas" ouvem o galo cantar e não sabem aonde..!
A prioridade na travessia do Atlântico fica, sem contestação até agora, com Sacadura e Gago Coutinho - embora não tivessem passado por Natal. Em segundo lugar, pousando no Potengi, também com escala em Fernando de Noronha, o circunspecto e desconfiadíssimo Marquês Francesco De Pinedo. O avião do italiano ("Santa Maria") seria o segundo aeroplano visto pela população natalense.

A terceira "libélula de aço" a voar sobre a Cidade dos Reis Magos e amerissar no "Potengi amado", em 21 de dezembro de 1922, foi o hidroavião "Sampaio Correia", pilotado por Euclides Pinto Martins e Walter Hinton. Faziam um reide Nova York-Rio de Janeiro.

Pinto Martins - hoje nome do Aeroporto de Fortaleza - não era desconhecido em Natal. Nascido em 1892, em Camocim, no Ceará, muito cedo veio, com parentes, para Natal. O pai era de Mossoró, mexia com salinas. Estudou, como nós, no vetusto "Atheneu", morou na Rua Chile, na Ribeira. Aos quinze anos, tornou-se embarcadiço e foi morar nos Estados Unidos, onde casou e se fez Engenheiro-mecânico. De volta ao Brasil, trabalhou para o Governo. Apaixonado pela aviação, retornou à América, tornou-se aviador e organizou a temerária aventura. Na primeira tentativa, caiu em Guantânamo, em Cuba, destroçando totalmente o aparelho. Uma canhoneira americana, a "Denver", o recolheu e aos quatro companheiros : Hinton, um mecânico, um cinegrafista da Pathé e um repórter do "New York World".

O danado do cearense conseguiu, em Pensacola, na Flórida, outro avião - caíndo aos pedaços ! Tenazmente, de prego em prego, fez o percurso New York-Rio em 175 dias. No ar, em vôo, gastou pouco mais de 100 horas.

A chegada, no Rio, em 8 de fevereiro de 1923, foi apoteótica. Multidões nas ruas, escolta de aviões da Marinha e o Presidente Bernardes recebendo-os no Palácio do Catete. Muita festa, prêmios, medalhas, selos comemorativos...

Passada a festa toda, o homem foi esquecido. No Rio, deram-lhe o nome a um beco, na Lapa. Sacadura Cabral e Gago Coutinho - que não tinham chegado ao Rio (ficando na Bahia) receberam nomes de largas avenidas.

Um ano e dois meses depois do triunfo, das festas e das homenagens, o praieiro de Camocim e quase natalense Euclides foi encontrado morto num quarto de hotel, com um balaço na cabeça. Tinha trinta e dois anos ! Andava deprimido, era viúvo da mulher americana e - diziam - enlouquecera de amores por uma bailarina. Deram-no, pois, como suicida. Depois, dúvidas foram levantadas, dando-o como assassinado. Interessado na prospecção de petróleo, iria ferir interesses muito poderosos dos americanos - gente que ele conhecia tão bem...

Nas ruas do Rio, os irreverentes cariocas, fazendo gozação com os ilustres aviadores portugueses, ainda cantavam:

" Sacadura vem de bonde, Pinto Martins pelo ar..."

Do fiel escudeiro,

Laélio Ferreira de Melo

P.S.: O verbo "amerissar" (empregado acima), segundo Houaiss, foi usado (no sentido de amarar, termo naval) pela primeira vez em 1922, na revista "A Cigarra", número 183. Teria sido "inventado" em conseqüencia do reide de Sacadura ? O diabo é que a Marinha já "amerissava" na Guanabara há alguns anos! Ah, se Saturnino fosse vivo !


CASCUDINHO, TITÓ E EU TAMBÉM NOS BAIXIOS DE BOIPEBÁ

Boipebá
Arrecifes de Boipebá

Prefeita Wilma Maria de Faria,

Professora Isaura Rosado.

Meu Saudar !

De 1500 para cá, todo mundo sabe, muito estrangeiro tem sido comido na Bahia. O nó, o rolo, é que o português (judeu enrustido) Diogo Álvares turista não era – pois a era era outra. O Caramuru, cuja nau desmilingüira-se nos baixios, com uma só miraculosa bacamartada escapou fedendo à gulodice dos antropófagos tupinambás. E foi além, o gajo, no período da ceva com beiju, peixe e tapioca: casou com a filha do morubixaba, ficou amigo do Rei, andou flanando pela França e fundou, com muito sucesso, a poderosa Casa da Torre. Enfim, se deu muito bem - como tem acontecido com todo lusitano nesta nossa mui amiga e leal Pindorama, até hoje...

Depois do Jardim de Infância Modelo, da carta de ABC e tabuada de Dona Janóca, já no início dos preparatórios para o velho Atheneu, com os Professores Beatriz Cortez e Olintinho Galvão, de tudo que lia e ouvia nas salas de aula, não entrava, não cabia na minha cuca de oito anos, aquela escopetada salvadora do tal “Filho do Trovão”. Bacamarte, pólvora, bucha, chumbo e coragem como os seiscentos – depois da derrota do naufrágio?! Para piorar tudo, Paraguassu, a noiva, nos livros, era uma “índia de pele branca e traços finos e suaves”. Pirei de vez, Prefeita! Pirei de vez, Professora!

- Cascudinho resolve ! – disse meu pai à minha mãe, Maria, a quem eu, todo enrolado, havia me queixado, caningando, quase às lágrimas.

E lá fomos nós, descendo a ladeira, eu pegado na mão do Poeta, sem lenço nem documento, no rumo da Junqueira Ayres. Nunca tinha visto tanto livro na minha vida, nem lá em casa, nem nas estantes do meu tio Juiz. Um mundão de coisas esquisitas penduradas nas poucas paredes à vista.

Na ante-sala, um piano. Guardei a marca, até hoje: “Playel”. De gente, a circunspecta empregada que nos recebeu, depois uma senhora alva, risonha, que me fez festas, e uma menina mais ou menos do meu tamanho, os olhos grandes e desconfiados.

Por fim, levantando-se da fiel cadeira de balanço – sorriso aberto, pijama listrado, livro no colo, charuto fumegante, cabeleira farta, braços abertos, gestos largos, olhos azuis, feliz da vida -, o dono do piano, da casa, dos livros todos e dos penduricalhos: o Professor Luis (sem acento no “i”) da Câmara Cascudo, canguleiro como eu, a oitava maravilha de Natal, a enciclopédia fenomenal que, garantira Othoniel Menezes (a quem ele chamava de “Titó”), botaria ordem na minha cabeça confusa com aquela estória toda. Fui apresentado: nome e apelido - recebendo abraço e aperto de mão. Sem jeito, nervoso, cabreiro, gaguejando, tremendo nas bases, sob o pálio do olhar paterno complacente e encorajador, consegui soltar o verbo e fazer a queixa.

Começou, então, a inhanha. O homem era supimpa, cobra criada, um craque. Satisfeito como pinto em beira de cerca, ouvindo “Cascudinho”, o amigo de meu pai, fiquei por dentro de tudo, juro, Professoras!

O segredo da coisa, o desatar daquele nó, a cura daquela “dor de barriga” na minha cachola, estava mesmo nos livros que estudava, na tradução errônea do epíteto dado ao marinheiro de Viana do Castelo. Era tudo cascata. O camarada nada tinha de “filho do trovão”, nem de “homem do fogo”. Neca de bacamarte, pólvora, chumbo, tiro. Quanto mais coragem de artista das "séries" do cinema Rex, "rapaz", caubói! Por sua vez, Paraguassu, tampouco, era “branca”, "suave", de “traços finos”...

Quase pulo de alegria, de satisfação, enlevo. Homem sabido, aquele “Cascudinho”!

Encagaçado e nu, magérrimo, alto, branco como uma vela, barbudo, tremendo de fome, frio e medo, coberto de sargaço, se escondendo para não ser comido, tirando da reta, o marrano Diogo Álvares desse jeito foi encontrado nos rochedos. Não deu outra: os tupinambás – na gozação, acho eu, hoje - tascaram-lhe o apelido de “Moréia” (Muraena helena), peixe parecido com uma cobra, comum nos arrecifes.

Arrematando a aula magistral, de lambuja, sempre risonho – piscando o olho para “Titó” -, o marido de Dona Dhália e pai de Ana Maria, com a mão suave no meu ombro franzino, guiou-me até uma daquelas nesgas de parede sem estante e me apresentou uma gravura antiga, esmaecida, emoldurada. Matou a cobra e mostrou o pau: eram os baixios de Boipebá – onde começou lenda e legenda do fidalgo “Moréia”, judeu e português, senhor da Casa da Torre, amigo do Rei e do Morubixaba, baiano por adoção e casamento, precisão, muita necessidade...

Baiano burro nasce morto, minha cara Professora, nossa estimada Prefeita – fiquem certas!

Com muito respeito e admiração por Vossas Senhorias,


Laélio Ferreira de Melo

Petrópolis/Natal
Novembro/1998


A CAMISA DO POETA

Parnamirim Field
Parnamirim Field

No tempo da guerra, todo mundo sabe, muita gente se empregou em Parnamirim Field. Dentre esses pioneiros burocratas – recrutados, diziam, sob o olhar atento do pastor Doutor Mateus, tido como coronel da inteligência da USAF - estavam Othoniel Menezes, o poeta da “Praieira”; "Seu" Galvão, pai do Professor Cláudio Galvão, este, escritor e pesquisador emérito; Dioclécio Sérgio de Bulhões, homeopata, homem boníssimo e caridoso, que mais tarde seria Vereador em Natal, por muitas legislaturas. Agenor Ribeiro, depois empresário; Rômulo "Minha Gata", que deixando Parnamirim foi para o Banco do Brasil; Emanuel Rivadávia, também, posteriormente,serviu ao BB, no México. Era tão fluente em inglês que foi quem leu para o General Eisenhower um discurso escrito por Othoniel, saudando o futuro Presidente dos Estados Unidos, em nome do pessoal civil da Base. Misturando-se a essa boa gente, para lá também acorreram alguns "artistas" do Grande Ponto, filhinhos-de-papai, arranhando inglês, charlando, dançando fox no Aéro, bodando na Pedro Velho...

A "sopa" (o ônibus) guiada por "Charuto", negão forte e valente, embarcava o pessoal na Pracinha (“Pedro Velho”, hoje Praça “Cívica”) e “imbiocava” na Parnamirim Road, a “Pista”. Fazia o pit stop no portão da Base, ia em frente e deixava os "porcos" no Post of Engineers. "Porco", era o apelido dado aos funcionários subalternos, os operários, que viajavam nas carrocerias dos caminhões e que depois se generalizou. De Natal à Base, no ônibus, não viajando criança ou mulher - o que era raro - a esculhambação era grossa. Vida alheia, anedotas cabeludas, acenos para as “piniqueiras” no trajeto, o escambau.

Othoniel Menezes, arredio, desconfiado – da raça irritável dos poetas, como afirmava Virgílio -, somente com os mais íntimos trocava piadas. Era sofrido, pobre – mas, altivo, culto e probo. Jornalista de renome, Secretário da “A República”, amigo de Café Filho, socialista, admirador de Luiz Carlos Prestes, escrevera em 1935, sozinho, o jornal “A Liberdade”. Taxado de “comunista”, passara mais de três anos na cadeia. Em Parnamirim, não ligava para o apelido de "Ipecacuanha" (tinha mania por chá caseiro!). Deu o troco ao autor da proeza, o colega Dioclécio Bulhões, o homeopata, que tinha uma imponente trunfa: sapecou-lhe a alcunha de "Professor Bendengó" ! Prudente, o vate guardava distância dos "artistas" do Grande Ponto, alguns deles, até, filhos de amigos e parentes.

O diabo, porém, atenta! Um belo dia, na rebarba de uma daquelas algazarras, do fundo do coletivo, ouviu, clara e maliciosa, a acaçapante e maldosa sentença: "Othoniel, poeta da camisa rasgada!"

Vilipendiado, trêmulo, levantou-se e partiu pra briga. Era homem de coragem comprovada. Não conseguiu chegar à patota. Os amigos, todos, não o deixaram. A coitada camisa que vestia, cerzida e passada, engomada, pelas mãos da sua Maria, era tão só o espelho da sua pobreza respeitável e resignada! Não lhe pisassem...! Não conseguiu identificar o autor da agressão. Nunca soube quem foi. Nunca lhe disseram.

Minutos depois, já no Post of Engineers, pálido, calado, à vista dos companheiros solidários, sentou-se e, a manuscrito, em letras garrafais, numa folha de cartolina made in USA - depois afixada no Quadro de Avisos - FULMINOU o gaiato:

" A camisa rota, oh corno
- que só você foi quem viu -,
foi de uma foda no torno
com a puta que lhe pariu !”

“Ipepacuonha”esboçou um acanhado sorriso para o futuro vereador - o “Professor Bendengó” - e encerrou, para sempre, o assunto.

Laélio Ferreira de Melo, Cronista


A RUA SARGENTO MENEZES



Começando ali na Estação Ferroviária, quieta, sem bulício, está, existe, desde o tempo dos americanos, uma rua. “Sargento Menezes” é o seu nome.

Raríssimas pessoas sabem, tanto ontem quanto hoje, quem foi o Piloto-Aviador JOÃO MENEZES DE MELO (1896-1920). Era natalense da gema, batizado em Nova Cruz. Filho do Capitão João Felismino Ribeiro Dantas de Melo (do Ceará-Mirim) e de D. Maria Clementina Menezes de Melo (de Canguaretama).

Desde 1927 é nome de hangar no Campo dos Afonsos (RJ) e no Campo de Marte (SP.). Um ano depois do seu sacrifício, em 1920, era (e é) rua em Bento Ribeiro, bairro carioca onde Ronaldinho nasceu e aprendeu a jogar bola. Somente há uns três ou quatro anos, decorridos oitenta, Natal, seu berço, sua terra, lembrou-lhe o nome para uma rua de periferia, nos cafundós-do-judas. Isso depois, parece, de um puxão de orelhas muito bem dado por Luiz G.M.Bezerra! Deixemos para lá a deslembrança do povo da Cidade dos Reis Magos...

Entretanto sobre um fato incontestável é bom, aqui, se dar notícia: no Estado, foi o povo de Parnamirim e os colegas aviadores do Sargento Menezes, na maioria “gente de fora” – como se dizia -, que antes, muito antes daqueles da capital, com clara primazia homenagearam o herói esquecido, pioneiro e mártir da Aviação Militar Brasileira.Câmara Cascudo, dois anos mais novo (1898-1986), dizia-no “curumiaçu do meu lote” (leia-se “rapaz do meu tempo, da minha patota”), recordando-lhe “o espírito esfuziante, comunicativo, original”.


Alistado no Exército, em Natal, setembro de 1914, já de outubro a novembro, recruta ainda, prestou, como soldado de infantaria, “serviços de guerra” no Ceará, combatendo os jagunços do Padre Cícero do Juazeiro, comandados por Floro Bartolomeu - político metade-médico, metade-cangaceiro. Transferido, em 1915, para o 3º Regimento de Infantaria, no Rio. Garboso 3º. Sargento, em fevereiro de 1920 era aluno da 2ª. Turma da Escola de Aviação Militar, sediada no legendário Campo dos Afonsos. A Primeira, formada apenas por oficiais (12 capitães e tenentes), concluíra o curso em 22 de janeiro. Apenas dois desses chegariam, mais tarde, a oficiais-generais: Henrique R.D.Fontenelle e Ivan Carpenter Ferreira.

Essa 2ª.Turma do Sargento Menezes era formada por dois tenentes, três oficiais uruguaios, onze sargentos, um cabo e um soldado. Ao generalato chegariam o uruguaio Tydeo Larre Borges – o maior herói da aviação platina – e os sargentos Rodolpho Prates e Raul Dinoá Costa, do Exército Brasileiro. Entre todos, Menezes foi o primeiro a solar (voar só, sem instrutor), o primeiro a receber o brevê internacional do Aeroclube da França e o primeiro a concluir o curso de Piloto-Aviador Militar. Alegre, esportista (remador do Flamengo), elegante, fazia sucesso com as mulheres e era considerado por colegas e superiores como o melhor piloto do curso. Um indivíduo competente, uma “cobra criada” ! –dir-se-ia hoje.

Voando na manhã de 29 de setembro de 1920, notou um defeito no motor do caça “Nieuport”. Pousou para comunicar a ameaça de pane ao instrutor da Missão Militar Francesa, Cap. Etienne Lafay. Além de não atendê-lo na requisição de outro aparelho para a manobra do “parafuso” (piruetas complicadas, desligando o motor, planando e religando) o francês, que não se dava bem com o Sargento, fê-lo de maneira sarcástica. Tomando a atitude do superior como uma ofensa ao seu brio - e não atendendo aos apelos dos colegas que lhe advertiam, nervosos, para o extremo perigo que correria - voltou ao avião, subiu, fez o que era para ser feito e... caiu! Falhara-lhe o motor ! Não havia pára-quedas, na época; tampouco condições de pouso de emergência. Antes de o avião espatifar-se nas cercanias da estação de trens de Marechal Hermes, livrando-se dos cintos, saltou, livre e só, para a morte. Tombou perto de um campo de futebol, no início da Rua Gravatá. Era solteiro, bonito e tinha só 24 anos de idade. Descansa na “Cripta dos Aviadores” do Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Foi o sexto mártir da aviação brasileira.

Era o “Tio Joãosinho”, que não conheci - irmão do meu pai e também Poeta.
(Transcrito da “Tribuna de Parnamirim”, de Parnamirim-RN)

Laferre de Melo
Ex-repórter

Laferre de Melo é pseudônimo do Pesquisador LAÉLIO FERREIRA DE MELO, sobrinho do Sargento Menezes.

Fonte: Laferre de Melo (Transcrito da "Tribuna de Parnamirim", de Parnamirim/RN
Colaboração: Laélio Ferreira de Melo — o.i.leal@digizap.com.br




sexta-feira, março 25, 2005

APOCALIPSE



Ouviram-se as trovoadas.
Antes, o clarão tomara o céu noturno.
Luminosidade sombria !
Estrondos terrificantes !
As lavas desceram ao vale;
O calor tornou-se insuportável.
Os animais debandaram;
A terra começou a tremer;
A criança a chorar.

Os velhos tomaram seus terços;
As mães ajoelharam-se;
Impotentes sentiram-se os homens...

Triste história a do homem.
Feliz existência a do ser.
Lamentável verdade a da morte

A morte do homem
A ida sem volta
O chegar definitivo e último.

Desceu do céu a pomba
Pousando no galho ressequido da árvore.
Olhou a solidão em volta
E voou. Voou.
Ouviu o silêncio em todos os cantos
E, em cada canto, o gosto da morte.
Voou. Voou. Não captou outro sinal de vida
Senão os emanados do seu corpo santo.

E voou, compreendendo que era só
Na sua santa paz..
E voou mais ainda sentindo maior a sua solidão
Sua santa solidão
Sua paz.

- Sujeitei-os à prova...
Nenhum resistiu à voz do inferno;
Nenhum soube morrer como o filho;
Nenhum fez do filho semelhança;
Nenhum o entendeu.

Cumpriu-se o que eles mesmos anteviram:
Buscaram a morte.
Morreram...

Voou. Voou.
E cansou de estar só no seu universo
Na sua solidão.
Olhou os homens e chorou,
Chorou.
Sorriu como criança e voltou,
Pousando na mais alta pedra,
Onde ficou.

E pensou por sete dias, findos os quais, falou:

- Por que não fazer disso vales e rios,
Serras, montanhas cobertas de árvores e lagos,
Pássaros por todos os lados, animais ?

- Corra o rio !
Nasçam a planta
e os animais !

E pode voar tranqüila por mais sete dias
Em companhia da vida não assemelhada.

- Mas que triste egoísmo o meu
Que não faço a mim o meu maior prazer ?
Por que não deixar vir o meu semelhante ?

E voou. Voou.
Sentiu-se angustiada e voou.
Viu a beleza em volta
E o perfume
E toda pureza da vida.

- E eu lhes dei tudo isso e eles não viram.
Dei a beleza, destruíram...
Dei uma vida, destruíram...
Não souberam viver como o filho,
Morreram sem ter nascido...



Eduardo Alexandre


GÊNESIS




Ah, os homens !
Que doença os acomete
Ao sair da infância ?
A posse, o sexo, a sobrevivência ?
Oh, filhos
Por que me fazeis chorar ?
Por que fizésseis cumprir a sentença,
Deixando-me tão só ?


Durante sete dias chorou Deus convulsivamente.
As lágrimas não lhe deixaram de correr
Um só instante.

Ao amanhecer do oitavo dia,
Se fez pomba e voltou a voar.
E durante mais sete dias voou.
Voou. Na sua solidão.


Voou. Voou. Viu os animais e as aves,
Todas as montanhas, todos os vales.
Lembrou a história do homem e chorou,
Chorou...

Quis Deus destruir a si
E ao seu universo,
Mas se conteve.
Pensou na obra de Kierkegaard
E reviu Jung.
Se viu no homem
E, no homem, o eu.
Reviu Freud
E toda História.
Parabenizou Darwin
E brindou ao cinema.
Fez rodar os “sussurros”
E depois Ammaccord.
Bateu palmas a Lukács
E depois à poesia.
Leu um Érico, um Tchecov,
Serviu-se de Lévi-Strauss.
Elogiou Picasso,
Enfim, todo pintor.
Se fez pureza de infância,
Sorriu,
Quase chorou...

- Que o tudo se faça com o homem,
Que o homem se faça senhor !

Disse Deus e recolheu-se.
Descansou por sete dias
E voltou pra ver o homem.
Sentou ao seu lado
E contou de sua solidão.
Disse Deus de suas descobertas
E dos seus conhecimentos.
Disse sois meu semelhante,
E controlo o Universo.
Destruísseis ao vosso universo,
Como quase destruo o meu.
Me recolho mas vós ficais,
Sozinhos com o que é vosso.
Sereis por todo o universo,
Mas não me encontrará
Para se fazer em companhia,
Aquele que não morrer.
Aquele que não fizer como o Filho,
Aquele que em vida não morrer !



Eduardo Alexandre




quinta-feira, março 24, 2005

O DIA EM QUE O BODE DA POESIA FOI CAPA DE O POTI


Cristina Tinôco faz recital quando da inauguração do Espaço
Cultural Luís Carlos Guimarães, na Câmara Municipal do Natal

Woden Madruga acabara de assumir, com gosto de gás, a presidência da Fundação José Augusto pela primeira vez. Com a sisudez que bem o caracteriza, além da prosa inteligente de grande jornalista, Woden é reconhecido criador de caprinos, a varar semanas com o assunto na pauta de sua coluna. Como dirigente cultural, no entanto, WM era neófito, termo que o seu antecessor, Valério Mesquita, gostava de usar.

Por mais que Woden se esforçasse, as coisas estavam custando a caminhar na Afundação, como amanhecera pixado um muro da avenida Deodoro.

Foi aí que Plínio Sanderson e Pedro Pereira mostraram brilho de criatividade: fizeram a passeata do "Bode Woden" que provocou as maiores gargalhadas já reservadas a um Dia da Poesia. A foto de Plínio com o inocente animal, ilustrou, naquela semana, capa de O Poti, numa prova mais do que inconteste de que essa função lúdica com o social a poesia também cultua.

- Desamarre o bode, Woden! Foi o grito de guerra desse ano na Passeata Poética.


NO MEIA

MEIA QUATRO

DEPOIS DE DOIS VERSOS

A PROSA VIRA CERVEJA

15.02.1996



Newton Machado Wanderley


JOÃO CINQÜENTÃO

Matéria publicada no Verso X Versos
Diário de Natal, 14 de Março de 1997

Tribuna do Norte


"o que me resta de dor
é preguiça ou é vício
sou do século o início
não tenho computador"

João Gualberto da Cunha Aguiar, ou simplesmente Gual, é daqueles que sabem e fazem. Amante de Othoniel Meneses e Eduardo Medeiros, canta, pelas noites da cidade, a Serenata do Pescador. Se provocado, é capaz de recitar Auta de Souza, Henrique Castriciano, Gothardo Neto e, até, os poemas "parnasianos" enumerados de Jorge Fernandes.

Boêmio inveterado, não é difícil encontrá-lo na prainha amada, a Redinha, em pleno mercado, a trocar idéias com pescadores e nativos do paradisíaco balneário. Ou no Lourival, no Bar do Naldo, Bar do Coelho, Meia Meia Quatro ou Pedrinho. Hoje cinqüentão, passagem comemorada no último dia 5, na verdade, João é senhor de todos os bares, de todos os botecos e botequins da cidade. Do Bar das Bandeiras ao Canto do Mangue, da Bodega da Praça ao Pé do Gavião, não importa, o que vale é o aperitivo de lado e uma boa conversa para comemorar o dia, especialmente, se "na piscina azul do mar".

Máquina de fazer poemas, João produz cotidianamente e sua obra, infelizmente, ainda é pouco conhecida do público natalense por falta de editores na cidade. Um nome que poderia ser nacional e não é, pela pura fatalidade de Natal a ninguém consagrar, como tantos querem.
Cinqüenta anos de idade. Quantos de poesia, João?
Hoje, neste Dia da Poesia, João é a cara da cidade. Por isso, trazemos ao público leitor deste DN Verso X Versos, uma coletânea de poemas seus que falam de gente e poetas potiguares, homenageados em sua poesia:

Na piscina azul do mar (fragmento)

João Gualberto



em inspirada seresta
meu Brasil é uma festa
na piscina azul do mar
A cultura nos convence
de nossa sabedoria
uma vez era um dia
a poesia natalense
é a melhor há quem pense
Veríssimo epistolar
Cascudo vem assuntar
Mário de Andrade sorriu
"Macunaíma" dormiu
na piscina azul do mar


Navegos em mar em profundo
de Zila um exercício
para cumprir seu ofício
encontrou o fim do mundo
a palavra vai ao fundo
a manhã vai mergulhar
a poesia vai nadar
na força do pensamento
ministrou um sacramento
na piscina azul do mar


Celso Dantas da Silveira
do nosso Açu fescenino
neste Brasil nordestino
Paraíba de Zé Limeira
poesia sem pó e poeira
por absurdo versejar
a rima só vem em par
em nossas cores natais
alpendres e carnaubais
na piscina azul do mar


Diva terra natalina
de Auta, Maria, Clarice
Zila Mamede me disse
a poesia é feminina
Nivaldete nos ensina
a Nathalie estudar
vem Clotilde, vem rimar
Myriam Coeli admira
Tem Marize, tem Palmira
na piscina azul do mar


Do povo faz Galeria
Alexandre grande bardo
Com seu prenome Eduardo
de renomada mestria
das artes faz alegria
com o seu quadro no ar
onde posso pendurar
a mais fina abstração
com as tintas da emoção
na piscina azul do mar


Castro Alves nos atesta
dos cais Sanderson Negreiros
afro-negros brasileiros
Bahia é uma festa
a minha Pátria é esta
o mundo todo a dançar
em casa, na rua, no bar
um país de retirantes
das espumas flutuantes
na piscina azul do mar


Na praia de cor silvestre
com a Mulata Rosinha
a fina flor da Redinha
Gil Barbosa é um mestre
aprovada por semestre
a lua queria cantar
com acordes acordar
a beleza que dormia
com Pau de Arara bebia
na piscina azul do mar


"A República" vai mal
Clóvis Santos fotografa
Olívio abre a garrafa
para o pintor de Natal
Navarro excepcional
é safra para provar
a tarde toda a falar
a entrevista gravava
o repórter caprichava
na piscina azul do mar


A Deodoro ainda prima
em ser do Lácio a fonte
vendo a linha do horizonte
José Melquíades faz rima
numa décima que exprima
seu valor vernacular
sabe o verbo conjugar
ele aprendeu no convento
o mais sábio pensamento
na piscina azul do mar


Quando você me amava
eu era um ser de alegria
a tímida lua ouvia
Edson Péres encantava
dona noite ainda estava
com vontade de sonhar
a lua vinha deitar
numa nuvem mais escura
licença da Prefeitura
na piscina azul do mar


Um canto de pescador
praieira dos meus amores
recebi os seus favores
de Othoniel sofredor
o peito cheio de amor
pela praia a murmurar
meu bom Deus quero voltar
nessas ondas de verão
tem cachaça com limão
na piscina azul do mar


Na poesia da história
Othoniel desce o pano
Henrique Castriciano
com o valor da memória
o seu aboio é a glória
a Branca de Itajubá
vem Açucena abraçar
os cantores de modinha
de Muriu a Redinha
na piscina azul do mar


Minha poesia repousa
em um cantinho do céu
a musa descobre o véu
da mártir Auta de Souza
ponho meu verso na lousa
o seu "Horto" vou regar
para os antigos honrar
com o valor da memória
escrevi a nossa história
na piscina azul do mar


Compositor de cordel
agora mudou de plano
só quer ouvir ao piano
versos de Carlos Gurgel
xará de Carlos Gardel
com rock, vinho e luar
até o sol declamar
o melhor psicanalista
violeiro repentista
na piscina azul do mar


São divinos os pintores
Madê é uma aquarela
vejo Thomé numa tela
inventam todas as cores
como deuses criadores
Dorian Gray é avatar
Fernando Gurgel, Renoir
de expressão modernista
um pincel expressionista
na piscina azul do mar


Amigo dos pescadores
dos sertanejos patrono
da poesia está no trono
lua cheia de amores
mestre da arte das cores
numa sala-de-estar
um sanfoneiro a tocar
uma garrafa de vinho
Francisco de Assis Marinho
na piscina azul do mar


Marcelinho de avião
com seu lápis colorido
ganhou um sexto sentido
um "hippie" de ocasião
deixou em exposição
um trancelim, um colar
um brinco só, a brincar
com as luzes do Farol
foi na Ladeira do Sol
na piscina azul do mar


A paisagem se descreve
com força de profecia
faz a nova travessia
meu amor de ultra-leve
dá um aceno tão breve
um potengi de acenar
vem um navio atracar
Odaíres toma alento
canta Milton Nascimento
na piscina azul do mar


Modernistas do Brasil
em cada rua uma bela
uma vaga na escola
o comunismo infantil
da miséria a mais vil
pela cidade a rondar
aprendeu a soletrar
Jorge Fernandes verter
deste verso em louvor
na piscina azul do mar


Tem um mote seu poder
na pintura é Grande Ponto
em ficção canta um conto
Quem é que pode esquecer
poeta de raro saber
de tudo isso que narro
o boêmio tira um sarro
veste a poesia se acalma
um verso nasce da alma
do pintor Newton Navarro


Está aberto o caderno
folhas do pré-concretismo
vindas ao pós-modernismo
um poeta ultramoderno
do soneto faz um terno
um nome e temas afins
um rio cheio de alfinins
coisas nossas de criança
a palavra de lembrança
na linha Jarbas Martins


Fernando a tinta reparte
do Brasil a Alemanha
Com ele a pintura ganha
Uma família de arte
Com sua poesia à la carte
Do natalense vergel
Cláudia prepara seu mel
Deífilo é folclorista
Carlos é um vanguardista
Todos eles são Gurgel


Diz o cartaz na vitrine
uma platéia assumida
por tanta gente aplaudida
O Teatro do Racine
de Santos Reis fez um cine
a peça "made in" Natal
ao inverso de Cabral
uma nova travessia
no palco da fantasia
vai descobrir Portugal


A noite alta me aprova
esperava por você
tendo ao lado Volontê
um violão bossa-nova
Manoel Fernandes é prova
da minha psicologia
amanhã é outro dia
tenho mesmo de estudar
logo mais volto do mar
com um cesto de poesia


A poesia vem com rima
mas sem rima também vem
ouço o apito de um trem
Diógenes da Cunha Lima
na Academia ele prima
assinou meu alvará
homem de fé - saravá!
com um dúctil instrumento
fez um bom investimento
Abraçou um baobá


Com seu estro mais profundo
Luís Carlos Guimarães
é plural, rima com mães
As grandes coisas do mundo
seu verso é o mais fecundo
traz ao homem um porvir
o poeta ao traduzir
o sal da palavra amor
com justiça é um senhor
para a poesia aplaudir


Woden Madruga, doutor
das chuvas pelo sertão
protetor da criação
A cultura tem valor
no jornal é professor
nos estudos é um leme
a notícia é um creme
para ver seu gabarito
a voz do povo é um grito
No "Jornal de WM"


Tem o feirante um cesto
poemanúncio eficaz
Ney Leandro de Castro faz
um horizonte do texto
"Flauta de Pã" é pretexto
"Voz Geral" da liberdade
"O dia das moscas" invade
"As pelejas" rio Açu
Decomposição do nu
Em nua verticalidade


Pode dizer é um luxo
um Romance de Natal
pois Nazareno é real
em "Reduto Pelabucho"
bota fogo no cartucho
da melhor literatura
faz a ficção com bravura
como pintor ele pinta
a "Revolução de Trinta"
da nossa história mais pura


A velha Ribeira cria
um humano panorama
da literatura chama
José Alexandre Garcia
"Gol de Placa" delicia
as melhores consciências
homens de fé e ciências
dos boêmios um reduto
é o valor do homem culto
"Delícia", reminiscências


Lendas, mitos brasileiros,
possuem um valor infindo:
são estudos verdadeiros
do professor Gumercindo.
Veríssimo professor
ensina antropologia,
no folclore é doutor,
da vida sabe a magia.



Eduardo Alexandre


O PRIMEIRO DIA DA POESIA EM NATAL

Praça da Poesia – Turma do Beco
Inauguração da Praça da Poesia, Turma do Beco, Natal, 2004


Menino ainda, Jota Medeiros já era conhecido no movimento cultural da cidade. Adepto do Poema Processo, seu nome já figurava em catálogos e exposições Brasil afora, havendo participado até de eventos internacionais. O seu contato maior, no entanto, era com o pessoal da Paraíba e de Pernambuco, com quem mantinha intensa correspondência.

Em 1977, Jota realizou, na Biblioteca Pública, exposição comemorativa ao aniversário de surgimento do Poema Processo, a qual compareceu Eduardo Alexandre, o dito Bobo da Corte, que arrancava, na Praia dos Artistas, os cabelos da ditadura, combatendo-a com arte a céu aberto, no muro da Galeria do Povo, surgida recentemente e a arrebanhar amantes da poesia, do desenho, da pintura, da fotografia e do jornalismo. comemorava-se a data, noticiava ele, mostrando jornal que trazia Paulo Bruski em uma performance comemorativa na terra dos Guararapes.

O movimento da Galeria do Povo andava pela vigésima exposição no mural da praia, sempre aos sábados e domingos, e já dispunha de um grande acervo de poemas, deixados pelos participantes.

O 14 de Março estava próximo e ficou então decidido que Natal aderiria ao movimento do Dia da Poesia. Juntos, Eduardo Alexandre e Jota Medeiros trataram da programação comemorativa. Apresentariam à TELERN o Projeto "Poesia por Telefone", jogariam poemas do alto do Edifício 21 de Março e, no muro da Catedral nova, ainda em construção, realizariam exposição com o acervo da Galeria do Povo. E assim foi feito.

Jota ficou responsável pela gravação do clipe que seria levado à TELERN, "Florestas - Animais - Nuvens - Concretos", no qual se ouviam ruídos animais produzidos eletronicamente com címbalos. No 14 de Março, quem discasse o nº 136 ouviria a mensagem eletrônica do Jota. O Projeto chegou a ser testado pela empresa telefônica um dia antes do Dia da Poesia, mas os seus diretores, apesar de mostrarem-se interessados, não gostaram do abuso futurista do endiabrado performer vanguardista potiguar e recusou o trabalho.

Na tarde do dia 14, porém, poemas de 31 poetas brasileiros e de outras nacionalidades, participantes da publicação POVIS - Projeto/Documento 4/5, foram lançados ao ar, no centro da cidade, do último andar do seu edifício mais alto àquela época. E, no muro da Catedral nova, que dava para a rua Jundiaí, local de um dos maiores fluxos de trânsito de Natal, foi realizada a maior exposição de poemas já vista pelos natalenses. Todo o extenso muro lateral da igreja em construção ficou coberto de poemas de autores potiguares.

Daí em diante, todo 14 de Março, comemora-se, em Natal, O DIA NACIONAL DA POESIA.


Newton Machado Wanderley


ANTEVISÃO



...e um dia eu vou morrer
para meu próprio espanto
E aquele decorado-rápido
espanto dos meus amigos.

Um dia eu vou morrer sabendo
que amanhã será tarde demais
e que a lembrança não resistirá
ao curto tempo.

Morrerei de vez, definitivamente.
Olhares compungidos
e furtivas lágrimas
serão apenas exercício de velório.

Vez em quando, nos bares ou botecos
Um samba, um choro, a valsa,
levarão a que o copo seja alçado
e a lembrança em líquido transformada

Uma foto entre tantas encontrada,
de esguio, o olhar mais generoso
e a palavra do tempo resgatada,
dirão, que um dia
fui um ser teimoso.



RUBENS LEMOS


PÃO, POESIA E ALEGRIA

(Os principais ingredientes, depois do amor, recomendados pelo Mestre Jesus)

Alexandro Gurgel
Dia da Poesia 2005



14 de março. A cidade amanheceu em festa. Na ruela antiga, o povo desfrutou um desjejum regado à poesia. Ladeira abaixo, na antiga construção que abriga tanta arte, o cenário não era diferente: mesa posta, olhos bem abertos e ouvidos atentos; gestos estudados, outros, nem tanto; muita espontaneidade. A poesia fluiu sem rodeios. Irmã do palavrão. Ali, no meio do café da manhã. Como tempero do pão. A plebe, o rude e a burguesia, todos reunidos em torno de um único tema. Uma única mesa.

O evento transcorria com muita movimentação e burburinho. Até que, de repente, o prefeito escutou:

- Pegue O Beco !

Ele gelou. Ficou lívido. Até a ficha cair e entender que o beco que estava sendo indicado, isto é, oferecido, era O Beco, o jornal da turma do Beco da Lama. Aquela mesma que entre uma cervejinha/caninha e outra discute questões sociais, ambientais, sentimentais e fofocais. E, assim, foi transcorrendo o dia. Com muita comida, bebida, poesia e alegria. O projeto Fome Zero de Poesia, da Amarela Produções, bem sucedido em todos os detalhes.

Meio dia, sol a pino. O sarapatel em Nasi, no caldeirão, para acalmar outras vísceras. Então, de barriga cheia, poeta se põe em pé. E tivemos mais poesia. A cervejinha para refrescar os ânimos e soltar o corpo. A tenda para proteger o coco, pois os miolos, com tanta quentura, poderiam passar do ponto. E, então, a poesia sairia queimada, ou queimando alguém. E, por escrever queimada, a bandeira de cor preta tremulou aos ventos nos dias que antecederam e precederam à data: um protesto fúnebre para uma orla que pode estar à beira da morte. Ou causar a de alguém. Um grito negro que rasgou o azul do mar, da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências –SAMBA - contra a indiferença das autoridades frente aos dejetos jogados em Areia Preta e Miami. Atenção banhista ou surfista: qual a quantidade de coliformes fecais que seu corpo suporta até que você sucumba às doenças?

À tardinha, outro panelão. E desta feita de sopa, cortesia do Restaurante do SESC. Não uma sopa qualquer, mas uma sopa de letrinhas faladas, recitadas. Ritmadas ou não, elas saíram em profusão como agora saem da minha recordação. Ave Maria! Parece até que fiquei contaminada com tanta poesia! E, logo depois de muito blues entre livros, MPB e chorinho alegre no meio da rua. O microfone ficou à disposição para declaração de amor insistente, porém desistente: Emanoel Marinho, Baudelaire, Garcia Lorca e Elisa Lucinda para os mais queridos. Muitos outros ícones da poesia regional, nacional e universal foram lembrados. Todos quiseram participar e, pelo microfone, também passou Chico Science, que se antecipou a Augusto dos Anjos. B.B. King fez fundo para a poesia de Márcia Maia (a pernambucana intercambiante), que fragmentou espelhos para refletir todas as luas e suas infinitas estrelas. Newton Navarro pilou paçoca e Antoniel nasceu, morreu e se fractou em preciosidades mil.

Ah! Se eu soubesse fazer poesia! Iria vomitar essa agonia, que me incomoda dia a dia. Mas, poesia não é só rimar. Poesia é muito mais: é um pedido de paz. O brilho nos olhos do rapaz.

Bom, vou ficando por aqui. O espaço já acabou, a inspiração também. Vou continuar treinando em outro lugar. Quem sabe no próximo ano?




Natal, 15 de março de 2005.

Ana Cristina Cavalcanti Tinôco


A CARTA




Agora que é de tarde e já é tarde para arrependimentos, pergunto-me em silêncio: quanto de mim se foi naquela tarde? Ônibus lotado, seis e meia, quase noite. Sem lua.

Onde estaria se tivesse cedido, largado casa e filhos e a mãe já velha, doente?

A mãe disse pra eu ir, é verdade. Que amor não se encontra de novo se deixa-se partir. Que amor corre sempre pra frente, como rio. E perde-se na vida.

Mas, fiquei.

E agora, esta carta. Tanto tempo depois.

Caminho até a praça de onde partem os ônibus. (Pra mim, eles sempre partiram.) E dali ao cais, beira de mar bravio.

Novamente é tarde, seis e meia, quase noite. Sem lua. Azul denso. Maresia.

E ao surgir a primeira estrela, pequenina e minha, como tu dizias, deixo que a carta caia entre as ondas nas águas da noite-mar.

Sem abri-la.


Márcia Maia


TEMPOS 10



Saudade da Ribeira,

Da sineta do Salesiano.

Saudade da Cidade Alta.

Do Cinema Rex.

Dos jogos Atheneu x Marista,

Com o Palácio dos Esportes lotado.

Do Ginásio São Luis:

“Padre Eimard

Foi na casinha

Se esqueceu de se limpar

O papel ficou dizendo

Limpa a bunda

Padre Eimard”

Mas saudade mesmo é do Alecrim.

Alecrim das Lojas Utilar,

Do Armazém Triunfo

Da Farmácia dos Pobres,

Do Alecrim Clube e seus carnavais,

Da Movelaria de Seu Bráulio,

Do Hotel Caiana,

Dos Cinemas São Luiz e do “pulguinha” São Sebastião,

O Alecrim da Avenida 10,

Do Bar Ouro Verde,

Do caldo de cana de Seu Milton,

Do depósito de cal de Seu Oséas,

Do Externato Potiguar,

Da Miscelânea.

Do Café Vencedor.

Hoje até a avenida não é mais 10,

É Rua Leonel Leite,

É loja,

É banco,

É camelódromo.

Só o shopping é 10.

Só o nome.




Tadeu Neri


PARALELEPÍPEDA POESIA

Luís Henrique
Dia da Poesia 2005


Nos anos 70, a turma da poesia teve a idéia de comemorar o seu dia. Não me lembro exatamente qual o ano. Só sei que caminhamos, recitamos e folheamos os umbrais da década que reviraram e revigoraram os artistas e as pessoas com inúmeras idéias na cabeça. Lembro-me como se fosse hoje: movimentos aconteceram para sedimentar vozes, versos e sintetizadores.
Tudo, na sua maioria, de improviso. Poesia mimeógrafo, marginal. Arte alternativa. Poesia vertida e vestida em bares, lares e nos mares da nossa incontinência coletiva. Festejamos luas, ruas e vendavais. E as caminhadas com faixas, na faixa de pedestre ou avançando os sinais da voracidade londrina e provinciana.
Era tudo muito mestiço. Regado a véus, vinhos e vielas. Esse pessoal que toma conta da paixão pela palavra, que escreve em guardanapos, toalhas seminuas, que assessora corações e lentes, é cria, é filho da geração da graça incontida. Imã e cúmplice de alforrias verbais. Simpatizante da sopa de letras que agrega e consagra pecadores do tempo.
Somos inúmeros poetas. Veniais e virtuais. Marginais e abdominais. Consagramos a fome do estômago da nossa fértil usina tropical, a fortaleza de um paraíso pedido, tão amplificadamente gauche. Carregamos, como pessoas e poetas, a gravidez de um texto, o crepúsculo das f(r)ases soltas e penitentes.
E testemunhamos como lírios e humanos, a nitidez da vida. Cálida e pálida. Cinematográfica e recheada de ilusões.
Por isso, que dos suores que escrevo e que escorre da testa e da língua de quem ensaia revelações, de quem come o pão que o dicionário amassou, biscoitos são fermentados: vértices e ícones de um mesmo saco: escrever e ler é divino e é profano.
Assim, a saga de quem caminha e fala versos, é rascunhar na rua os estribilhos de uma esquina que não peca. Igual a versos soltos. Revoltos. Envoltos em reclames, alfarrábios da simétrica fé.
E já não era sem tempo, durante todos esses anos, caminhadas aconteceram, livros foram lançados, saraus apareceram, poesias foram musicadas, poetas foram falados, cantados, lembrados, amados.
Portanto, ver a vida com poesia é como sentir uma fisgada. Profunda e reveladora. Semelhante a uma crença quando engatinha. Ou ao burburinho de uma cidade do litoral nordestino. Forte e tão bela. Que por suas ruas passeiam rosas e reisados. Relicários e botequins.
Enfim, vestir a camisa da poesia, que pode ser amassada, engomada ou esgoelada. Ela pode levar chuva, bala, beijo e porão. Só não pode faltar paixão. E o perdão que só os nossos olhos alcançam.



Carlos Gurgel




quarta-feira, março 23, 2005

REGISTRO

Luís Henrique
Luís Henrique



Como havia um Beco no meio do caminho, fiz dele o beco que passou em minha vida.
Do beco, por ser viço, fez-se vício que, como droga, contagia e arregimenta, multiplica-se.
Como na sarjeta do vício havia um corpo, no beco, o bolero entoado em desafino juntou-se a um violão que juntou-se a uma caixa de fósforos, que se fez percussão. Alimento.
Do bolero nasceu a banda e da banda fez-se espetáculo.
E vieram festas e vieram vozes e veio o coro no meio da noite em serenata.
A menina, linda menina, fez-se encantada praieira ao som da flauta, que fez-se harmônica, que fez-se sinfônica, que um dia chegará ao Beco que desnuda-se em todas as madrugadas.
No meio da cidade, da minha cidade, havia um beco. Um beco tão grande que tinha nome de rua e era pai de todos os becos. Não os da cidade, mas pai de todos os becos do mundo, abençoado Beco.
Sua cidade decerto tem um beco como a minha. Um beco da lama como o meu.
Se não tiver, deve ser triste a sua cidade.
E deve ser triste porque na sarjeta do vício feito beco não haverá um bêbado cantando a volta do boêmio. Volta ao beco, ao álcool, ao vício maior que é o próprio beco.
Não por ser o Beco pelo Beco, mas pelo que ele guarda em suas canções tristes ou baladas alegres, beco que se desfaz em sorrisos e tem pernas de apaixonada amante, sempre aberta a amar por amar. Como vício.
Vício de ser e querer ser sempre beco. Ou beco ser enquanto ente: vivo, pulsante, feito ribombares de zés-pereiras em sábados de carnaval.
Nesse Beco, rio de minha vida, por sorte ou ventura, havia um tamborete e havia uma mesa que pedia uma cerveja que pedia companhia.
Da companhia, o beco fez-se confraria e a confraria tomou a cidade por não se bastar a si mesma.

E foram tantos os becos, tantos os bêbados trôpegos que não se pode mais: de beco da cidade, a cidade tornou-se beco de seu próprio beco, pois dele encantou-se para poder ser, com nome, identidade e todas as digitais guardadas - registro de antigamente em cartórios de saudade: poesia.


Eduardo Alexandre


DO BLOGUE DA BETH



http://pontoge.zip.net/

O amor, quando se esvai




das coisas
do amor
nada ficou


quando
você me despe
nem nua
me sinto mais

beth almeida




terça-feira, março 22, 2005

PORQUE ONTEM FOI O DIA INTERNACIONAL DA POESIA, DOIS POEMAS DE MÁRCIA MAIA

Argemiro Lima
Argemiro Lima

Márcia Maia


Deixem que se perca o poema
apenas pressentido
antes que o aprisione
a pena.
Deixem que flutue
assombrando as noites de poetas
que ainda não o são
e entre
confusos e encantados
se escusem às palavras.
Até que algum desavisado
julgando-se herdeiro da Musa
encerre-o em versos
desfazendo o fascínio da
multiplicidade
inesgotável
do sentir.


o teu corpo meu


comum a tantos olhos
não aos meus

mais um se em outros braços
não nos meus

teu corpo é-me perfeito
pelo fato simples
de a ele em perfeição se
ajustar o meu

em cada pelo em cada poro
em cada ruga em cada cicatriz

e por sabê-lo em mim e meu

(mesmo quando adormecido
corre despido por vales e mares
: só seus.)



Márcia Maia


SOBRE TUDO

Marco Túlio Rêgo
Marco Túlio Rêgo

"QUANDO NÃO CONHEÇO A LÍNGUA, BRINCO ELA"


Estou escrevendo SOBRE o violão. Já tinha escrito uma crônica SOBRE ele, mas não foi SOBRE o instrumento, foi SOBRE as costas dele. Escrevi apoiando o papel em sua base, fazendo-o de mesa. SOBRE o violão, continuo escrevendo, na tentativa de justificar a falta de uma mesa. Se dispusesse da mesa, e o violão estivesse SOBRE ela, eu continuaria na mesma? Ou será na mesa?
Já escrevi SOBRE um livro de capa dura de Manoel Bandeira, e já escrevi SOBRE uma capa de disco de vinil. Já escrevi até SOBRE um azulejo branco. SOBRE estes encostos escrevi muitas crônicas. Parece cômico, mas é mesmo crônico. Será que é arte da língua SOBREpor palavras que não explicam o óbvio? Ou será que SOBRE estas coisas preciso escrever, mesmo sem ser SOBRE elas, digamos, SOBRE uma escrivaninha?
Confesso que pode ser a falta de um tema temático, redundante como quase tudo que se passa SOBRE minha cabeça agora ou simplesmente falta de inspiração. O fato é que esta é primeira vez que escrevo SOBRE o violão, SOBRE ele mesmo. Penso que, para partilhar igualmente os bens, vou ter que escrever também SOBRE um livro de Manoel Bandeira, uma capa de disco de vinil e um azulejo branco. SOBRE eles vou decerto dissertar algum significado que me livre deste impresso fardo.
SOBRE quase tudo nessa vida dediquei palavras. SOBREtudo ainda não gastei todas as prosopopéias necessárias para se chegar a um acordo lógico SOBRE o verdadeiro significado da preposição SOBRE. Que me venham todos os professores Pascoales. Ítalos, lusitanos, latinos e brasileiros. Todos os que saibam mais do que eu SOBRE o que é SOBREpor SOBRE a mesma
coisa.
Sei que a última Flor do Lácio de Bilac, a Língua Portuguesa que o poeta chamou de inculta e bela, é matreira como amor sem vocabulário, amor mudo, amor sem dicionário. Sei, como todo louco que escreve, que quando escrevemos, ao mesmo tempo descrevemos. Então, expliquem-me por que SOBRE o SOBRE escrevo, subscrevendo-me, se, no final, eu vou ter que assinar embaixo do papel? Assinar embaixo do papel, não seria assinar sob o papel?
Meu Deus das letras, que incógnita é esta que está no meu português em vez da matemática? Que dúvida é esta que me dá SOBREnome antes do primeiro nome? Devo ter faltado à aula neste dia. Só pode ter sido. Se meus mestres tivessem me alertado SOBRE o que encontraria de tão SOBREnatural em um texto deste, além das metáforas, não teria SOBREpujado tanto a minha (in)capacidade lingüística; teria sido apenas um mero leitor. Mas que culpa tenho eu se minhas flexões literais atrapalham minhas reflexões literárias?
Faz minutos que tento justificar-me porque escrevo SOBRE as coisas. Acabei escrevendo uma crônica SOBRE o que do SOBRE mais se SOBRE-aproveita. Cousas da minha língua, a do paladar, e a do palavrar. SOBREtudo escrevi SOBRE tudo que me veio dúbio, e, acreditem: em Natal, com este calor, ainda tem gente vestindo um SOBREtudo. Graças a Deus, arranjei SOBRE o que escrever, mesmo sabendo que escrever SOBRE preposição é subestimar a língua pátria. Desculpem-me os que não me compreendem. Desculpem-me se saio deste ensaio sóbrio e SOBRE a sombra das dúvidas. Não valeria a pena tanto desgaste se não fosse para
SOBREssair-me aos porquês. Que sempre me sobrem palavras, prepositivas ou
não, quando me faltar a inspiração.


Mário Henrique Araújo, sóbrio e SOBRE o papel


UMA LUZ NO FIM DO BECO

Hugo Macedo


Lívio Oliveira

(Para Antoniel Campos)



Outra esfera me colheu.
A senda buscada firmou-se
e as folhas ressecadas dançando no beco
foram recolhidas após a partida de todos.

Gatos perambulavam perto do osso,
perto do oco
que deixei à porta do bar.

Esperando a nota blue da madrugada,
homens jogados fora jogavam.

Recolher-me todo é plano
que não consigo empreender.
Restos meus, já espalhados,
não se juntam mais, só chacoalham,
misturas de tudo,
de tudo que sou, do nada,
inconstante,
inquieto
e incauto.

Volto logo, vou-me embora.
Vou e volto, saio e dentro.
Fico e nunca.

Fazer o quê desta máscara,
máscara que ecoa mais um grito?

Onde fica mesmo o fim do beco?
Que deusa louca me guiaria?
Que musa tosca me daria a mão e a luz?


SANTO ANDARILHO DO NORDESTE

Alexandro Gurgel
Alexandro Gurgel
Clotilde Tavares, aqui com Moacy Cirne

A escritora Clotilde Tavares lança em João Pessoa neste sábado de Aleluia o folheto de cordel “A Vida e a Obra do Padre Malagrida, o Santo Andarilho do Nordeste”, contando a vida do Padre Gabriel Malagrida, missionário que viveu no Brasil no século XVIII e dedicou-se à catequese e a obras sociais.

O folheto, editado pela Engenho de Arte, será lançado durante o lançamento da Confraria do Beco da Faculdade, que ocorrerá no próprio Beco, rua Gabriel Malagrida, ao lado da Faculdade de Direito. A programação terá início às 19 horas e é aberta ao público. O preço do folheto é R$ 5,00 (cinco reais).

Com 24 páginas, o folheto conta em 57 estrofes toda a vida do Padre Malagrida, desde o seu nascimento na Itália, em 1689, o ingresso na Companhia de Jesus e o trabalho missionário feito no Brasil. Palmilhando a pé o interior, desde o Maranhão até a Bahia, Malagrida fundou colégios, igrejas, escolas e abrigos. Protegeu os índios, os pobres a as prostitutas, a quem dedicou a sua obra. Já idoso, chamado a Portugal, desentendeu-se com o poderoso Marquês de Pombal, que o fez condenar à morte pelo garrote vil, sendo depois seu corpo queimado, em 1761.

Clotilde Tavares é paraibana de Campina Grande e mora em Natal, Rio Grande do Norte, onde exerce intensa atividade cultural. Tem vários livros publicados, escreve em jornais, é atriz e diretora de teatro, dramaturga e desenvolve estudos na área da cultura popular. É moderadora da lista de discussão Cidade & Cultura, criada pela arquiteta Rossana Honorato, que tem como temática aspectos culturais da cidade de João Pessoa.

SERVIÇO:

O que? Lançamento do folheto de cordel “A Vida e a Obra do Padre Malagrida, o Santo Andarilho do Nordeste”

Quando? Dia 26 de março, sábado, a partir das 19 horas.

Onde? Durante o lançamento da Confraria do Beco da Faculdade, à rua Gabriel Malagrida, Centro, João Pessoa.

Quanto: R$ 5,00 o exemplar.

Contatos com a autora para entrevistas e esclarecimentos:

(84) 9984-3310

Clotilde Tavares - Natal - RN
http://www.clotildetavares.com.br
http://clotilde-tavares.fotoblog.uol.com.br


MADRUGADA III

Roberto Duarte




Ver o pôr-do-sol, com você, no Albacora ...

Um passeio, descalços, na calçada da Costeira,

Um frugal jantar lá no Badaladeira

E depois, insinuante, perguntar: "-vamos embora?"



E não sentindo o avanço célere das horas,

Na varanda, aconchegados numa mesma cadeira,

Sentir a súbita vontade de subir a "ladeira

do sol", para ver os róseos dedos da aurora ...



E nessa madrugada quente de janeiro,

Depois de estar contigo um dia inteiro,

Só querer te abraçar junto ao peito e mais nada ...



Subir a Getúlio! (no rosto um vento forte) ,

Apreciar o monumento arquitetônico do Forte

E amanhecer contigo na balaustrada ...



Antoniel Campos


CONFISSÕES

Oswaldo Ribeiro


Entre prédios estreitos, o casario
A lua chega no entardecer
Artistas pintam, no chão já frio
E o escuro anuncia o anoitecer

Entre os copos de bebida sobre a mesa
As pinturas tão bonitas, limpam a vista
E entre tragos de cachaça e de cerveja
Tem o carinho e o talento do artista

Em silêncio, anonimato e sem ter fama
Belos papos, rizadas e confissões
Entre um gole e outro, uma pincelada

Derramam nas telas os corações,
E a lua já bem alta e prateada
Se espraia sobre o meu Beco da Lama.

Chagas Lourenço

12/10/2004


POR SORTE, FUI MENINO



fui menino perto da cidade
a cidade me banhando
me arrebanhando aos morros da cidade
menino bem ouvido
ouvidor de estórias encantadas e assustadoras
corra menino
que a viúva machado vem ali
ela come figo de criança
fui menino me assustando com o véi otacílio
segurava na saia da minha mãe
e pedia
mãe não deixe ele me pegar
menino dos ói arregalado
me butaram até o apelídio de papa-figo
menino da periferia da cidade
menino das dunas
dos camboim
dos pula barreiras
do sítio do soldado
menino vendendo din-din
menino istudando
raimundo soares
celestino pimentel
de menino virei home
fui até pro centro da cidade
em frente do cemitério
pade miguelinho
menino sem dente
banguelo
só istudava
quiria sê doutô
não fui doutô
hoje me chamam de poeta
inventor de frases
na maioria das vezes mentirosas
não me enganei com a vida
nem tanquanto abraço a morte
a sorte é que fui menino
e de menino
me transformo em saudade

oreny júnior


rio, trecho
10.12.2004




segunda-feira, março 21, 2005

O MUEZIM DE CAPIM MACIO



(Mensagem para Sanderson Negreiros)

Laélio Ferreira de Melo

Poeta, ex-repórter, pesquisador

Escavacando papel velho, dei, por cá, com uma folha de anotações que diz respeito a você e à Poesia.

No final dos anos oitenta, a pedido de amigos, organizei numa clínica de saúde mental, em Natal, uma pequena biblioteca. Sugeri aos diretores um nome, imediatamente aprovado: “WALFLAN DE QUEIROZ”. Era, o próprio, um dos pacientes mais antigos do lugar, parente dos donos da instituição. A um dos irmãos, pedi a doação dos livros do poeta e nas estantes os arrumei com carinho. Do homenageado, com muito jeito e agrado, auxiliado por um fotógrafo sorrateiro e camarada, descolei razoável fotografia colorida e ampliada, para a indispensável entronização na sala acanhada. Finalmente, na data aprazada, foi uma festa e tanto, Mestre Sanderson.

Conhecia Walflan há mais de quarenta anos – tinha eu uns seis ou sete - desde a casa do meu Pai, na Avenida Rio Branco, cercanias do velho Mercado. Sempre de terno de linho branco impecável, na gravata encarnada um alfinete de pérola, sapato “Fox”, brilhantina nos cabelos, com fala grave e sonora, ao cair da noite papeava com meu Pai, velho amigo do seu. Uma algaravia, um charabiá repleto de erres que eu e meu irmão, um pouco mais velho, curiosos, não entendíamos. Era, descobrimos perguntando, tão somente dois Poetas falando francês, o belo idioma de Hugo, Verlaine e Rimbaud! Bom mesmo, para nós, meninos, era a moeda de mil réis que o rapaz risonho nos dava “para comprar confeito”, terminada a conversa.

Anos depois, a luta pela vida me afastou de Natal e de Walflan por muitos lustros. Por onde andei, poucas notícias tinha do moço culto de terno branco que me dava moedas, do filho do Doutor Letício, bacharel no Recife, promotor público, monge trapista, sábio, embarcadiço, aventureiro, diretor de museu – que confessava em versos ser “poeta maldito” e ter “pedido esmola na porta de Notre Dame”.

Nos ocasos de alguns dias, quando o reencontrei na clínica de Capim Macio – abatido, o rosto cavado pela magreza, os dedos finos manchados pela nicotina -, nas raras ocasiões para o diálogo, instado, provocado, reconhecia-me, pedindo cigarros ao “filho de Othoniel”! Recitava salmos e suratas, indagava pelo “Grande Ponto”...

No pico das doses mais fortes de aldol, no prelúdio do sossego, ainda agitado, subia a um dos bancos do jardim e, numa mescla de cantochão gregoriano e pregão de muezim, desandava o querido vate a declamar, com sofrível dicção, palavras e nomes do seu gigantesco vocabulário, algumas e alguns por mim gravados, à época: “Alá, Adonai, arrabil, Aluízio Alves, Apolinaire, Aramis, acadiano, Baudelaire, Gotardo, apocalipse, Miriam Coeli, Baal, Bel, Li Po, Vale de Josafá, Iavé, Jeová, Eloím, Trapa, Otoniel, Rancé, Cister, cisterciense, Dalton Melo, humanista, Djalma, Soligny, Islã, trapista, eloísta, mulçumana, Roldão, Brama, Parnaso, geena, faiança, Giralda, runa, Excalibur, Saladino, durindana, Natan, Betsabé, deambulatório, Leviatã, consitório, Patmos, Jó, Rimbaud, Patagônia, João Café, Moisés, Tânia, Genilda, paladino, Walt Whitman, Dom Quixote, Irene, França, Ulisses Cavalcanti, mamãe, Sheaskspeare, amidalite e - deixei para o final – Sanderson Negreiros...

Este é o registro, dou fé.


METAMORFOSE

Alexandro Gurgel
Dia da Poesia 2005 – Beco da Lama
Márcia e Dunga em Dia Nacional da Poesia

Noite morna de domingo. A cidade adormecia enquanto, pela mão, ele me conduzia por desconhecidos caminhos de antigamente. E, dizendo seus nomes, como que os despertava. Rua da Palha, Igreja do Galo, Caminho de Buscar Água, Beco da Lama, Praça da Alegria. E o Grande Ponto, perguntei? Calma, ele disse, chegaremos lá. E me mostrou prédios antigos em estado de pré-decomposição. Espectros de antes. Janelas cegas. Fachadas desfiguradas. Contou-me histórias de ontem e de agora. Caminhemos, dizia. Caminhávamos. À Praça Kennedy, parou sorrindo. Veja, é ali o Grande Ponto. Não sei pôr em palavras o que senti. À medida que ele, calmamente, me explicava a história dos prédios e das gentes daquela esquina, algo mudava. Era como se as fachadas se modificassem. Pessoas surgissem sentadas à calçada. E um burburinho de vozes e risos, do nada, em meus ouvidos, se elevasse. E, conforme a noite avançava, era como se a Natal antiga despertasse e se me revelasse, conquistasse, incluísse. A mim, que viera de outro estado, que a ali não pertencia. E quando refizemos o caminho, de volta aos amigos, em cada canto uma face antiga nos sorria. Não sei se ele as viu. Eu nada disse. Sei que a mim, me acompanharam até a hora da partida. E que Natal nunca mais tornou a ser a mesma. Nem mesmo quando, tendo amanhecido, derramou-se, em versos e risos, celebrando mais um Dia da Poesia.

Márcia Maia


TEMPO DE BIS?



Para Carmelo

De todos os meus amores, um se mantém, sem fotos: só lembrança.
Recordações de entregas devolutas, volutas de cubanos esperando a chama de outras abordagens, inéditas, sussurradas, marcadas pela surpresa imposta pela libido; sugeridas e feitas, sem palavras a dizer assim.
Louco amor sem compromisso ou posse.
Santo amor santo de homem de deus sem batina, sem ordem ou desordem: só desejo e gozo recíprocos, pároco de Thaiti e noviça, em transe; frêmito.
Aquele jornal de tarde de poesia acendeu-me noites de juventude rebelde, desgarrada de igrejas.

Naveguei bares de saudade; deitei camas levadas pelas traças úmidas de tanto amor.
Frei confessor confessado: ficaste como parede de ruína que se mantém – a mais rígida, a mais forte; permanente num tempo que insistentemente se vai e esvai-se em mim, que não esqueço e emparedo.
Tomamos rumos distintos. Nossos destinos não nos quiseram em tempos de provação. Reencontrei-me na escrita que deixaste branda como alô sem eco.
Alô que reverbera em mim como a pedir tempo de bis.


Neuza Margarida Nunes
Pipa, 21 de Março de 2005, deitando sobre mim um jornal que me trouxe prazeres tidos como mortos.


Depois da enxurrada

águas de março

tanto faz se chuva fina
temporal ou mar
de lágrimas

Márcia Maia

Fernanda Tavares
Ora a luz ora a treva sem que avise-se. Márcia Maia

Mais um dia de águas de março.
A água da chuva escorre pela rua como se lavasse a cidade, levando impurezas e pecados.
Pecados em mim incrustados sem culpa ou remorso: fiz da vida o que bem quis e por escolha. Talvez por escola: em quantas Marilyn fiz-me espelho? Morri no desastre que levou Leila?
Ficaram os sutiãs queimados, os seios soltos, hoje caídos e a não mais despertar o desejo dos homens.
Ficaram posturas que sedimentaram-se e mostraram um ser mulher capaz. Especialmente capaz da ousadia de ser sem sonhos. Estes fizeram-se práticas cotidianas, doces, amargas, mas práticas sedimentadas em vida.
Hoje, não temo o vôo.

Minhas filhas, largo-as ao mundo sem medo ou remorso. Sei, sobreviverão sem a condição do corpo; sem marcas de entregas involuntárias.
A chuva que lava a alma da cidade leva a lama que não restou em meus escombros. Recolho de mim o passado medroso do futuro e me faço Amélia em fantasia para rir de um tempo de submissão ida: meus pecados, quero-os todos para mim.
Essa chuva? Ela passa como passaram os dias da lavagem.

Em mim, apenas ficou o cheiro da alfazema dos lençóis e a boca entreaberta para os amores que me farão nova como a velha calçada, agora limpa e pura, depois da enxurrada.

Neuza Margarida Nunes
Pipa, 21 de Março de 2005


Instalação em Areia Preta

Marcelo Barroso

Instalação teve a participação de Jacson Garrido, Valderedo Nunes,
Eduardo Alexandre e contribuição de várias pessoas do grupo do beco




domingo, março 20, 2005

Mundo de poesia

Alexandro Gurgel
Alexandro Gurgel
Poeta Helmut Cândido

FRANCISCO BANDEIRA DE MELLO

Sempre sonhei, quanto à literatura, literalmente, um mundo em que toda pessoa fosse amásia de poesia. E em que quase todas as pessoas cometessem os seus poemas - frutificassem um pomar de poemas - na mesma viciosa e inocente atenção (às vezes intensa) com que ouvem/vêem novelas, fumam cigarros, lêem revistas e jornais (às vezes livros), jogam dama ou dominó (às vezes xadrez) e vão ao futebol. Poesia de quase todos, poesia para todos. Sem qualquer excesso de fronteiras ou besteiras. Poesia de dentistas, médicos, jornalistas, soldados, padeiros, farmacêuticos (por que não?), flautistas, advogados, pintores, agrônomos, deputados, vereadores etc. Claro que, sobretudo, pois mais verdadeiras, poesias de poetas profusamente/profundamente literatos, usando as musas com lirismo e racionalismo. Sempre desejei um mundo cheio de quadrinhas (e não apenas de quadrinhos), sonetos, haicais, elegias, baladas, odes, epigramas, sextilhas, galopes a beira mar, ditirambos, redondilhas, repentes, versos livres etc. (Quem apoia a liberdade, deseja também o verso livre). Aprecio espectralmente todos os poemas, com ou sem rimas e com bons rumos. Verto-me, portanto, àquela vertente que vê o poeta desmitificado. E, o fazer poético, uma coisa peculiar/familiar. Não como varrer a casa ou escovar os dentes, mas como uma coisa que esteja sempre na ponta da língua (na conta do cérebro). Que esteja bem treinado liricamente e literariamente. Sempre com uma linguagem de sonho e uma precisão matemática. Num jogo de imagens, com flores e frutos na linguagem. Sempre me interesso por um amor ao pomar de poemas. Que alimente a alma de todos os cidadãos do mundo. Seja um “monumento do instante”, como um soneto de Carlos Pena Filho, ou uma “vertigem lúcida”, seja uma constante monumental como “Os Lusíadas” de Camões, uma “Educação pela Pedra” ou “Uma Faca Só Lâmina” de João Cabral, ou “O Fazendeiro do Ar” de Carlos Drummond etc. Essas considerações nasceram a propósito de um livro para o qual me foi solicitada uma apresentação. Na verdade, as apresentações cooperam na boa leitura do livro - cujo interesse maior, claro, é o seu texto, que vale ou desvale por si mesmo. Embora os elogios lhe promovam e as boas explicações lhe esclareçam. É claro. Achar que o livro precisa de apresentação, contudo, é uma prova de humildade que dá simpaticamente esse ou aquele escritor. Terá raciocinado o autor: -Se o meu livro for bom resistirá a qualquer tipo de mau apresentador e de crítica contrária, mas terá, claro, um impulso positivo com uma boa apresentação e uma crítica favorável. Quanto a mim, como leitor, tenho me exercitado quase apenas, nos últimos anos, pela poesia que incorpore o aparato técnico/racionalizador disponível em nosso tempo - modernista e pós-modernista. Uma poesia de vanguarda (não de vã-guarda). Que tenha sempre um jeito de primeira, algo de primeva (não primitiva), um tanto primaveril, romântica, concreta, experimental. Como já disse várias vezes: embora aprecie poesia de todos os tipos, estou mais ligado a uma poesia de protótipos. Ou seja desse ou daquele tipo, mas embelezada de bons tópicos, dessa ou daquela escola, mas numa boa escala, com belo estilo. Que seja bem inserida e não enxerida num contexto, realista ou surrealista, numa técnica parnasiana, romântica, impressionista, modernista etc. (Seja a poesia que se improvise ou, melhor, a de laboratório mental). Chegar à poesia com o anelo de quem está com fome e exigir cada vez o melhor do seu cardápio. Numa bela versatilidade da linguagem. Pois poesia não é só o que está escrito em versos, é o que é substancialmente poético. Em suma, o bom autor é uma pessoa inteligente, racional (não apenas animal) e sim versátil (sem trocadilho) e muito bem aprofundado nos seus versos. Impulsionado na literatura - ler muito e escrever, na verdade, “escreviver”. E assim poderá se sobressair entre esses milhões de poetas que desejo para o mundo. Literatura, concluo com José Lins do Rego, encarada “como coisa substancial à vida e essencial para a grandeza do homem”. Por certo a poesia, quando verdadeira, atua diretamente sobre a linguagem e é através dela, portanto, que os homens se acrescentam ou alicerçam - “poesia, fundação do ser mediante a palavra”/Heidegger.



Jornal do Commercio, Recife, 20/03/2005.

Francisco Bandeira de Mello, jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras.


Molhada para o amor


Vontade de mudar meu mundo, ser diferente. Me experimentar em outro corpo.
Ana Paula Cadengue


Apesar de todos os bares, a noite não me bastou.
Nem a bebida, o fumo, as companhias, os homens. Não que estivesse em TPM. Não.
Cansada de mim mesma, queria-me outra. Nova. Um novo corpo em mim. Uma nova alma.
Queria uma noite nova. Talvez uma cama nova. Um novo homem.
Em mim, os dias têm passado cansados. As horas são as mesmas. A novidade? No brejo da cruz.
Queria escrever versos como minhas amigas. Queria mudar meu próprio mundo, atônita, em desespero? Queria explodir-me em bombas; experimentar gosto novo, noutra boca.
Já em casa, no meu quarto, desejei a chuva de São José. Queria despertar sentindo cheiro de terra molhada. Queria-me molhada para esse novo amor.

Neuza Margarida Nunes
Pipa, 19 de Março de 2005, depois do conserto do lepitope.


unabomber

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Ana Paula Cadengue

Vontade de mudar
meu mundo,
ser diferente.
Me experimentar
em outro corpo,
outra vida.
Sei lá...
Só vontade
de acabar com tudo
que não é.
Eu,
destrutiva,
feito uma bomba,
atônita.


Luar



Chagas Lourenço

A lua surgiu imensa
Cor de fogo
Longínqua, arredia
Temerosa e bela.
O amor apareceu
Ardente e forte
Queimando como fogo
Corajoso e belo.
A beleza do luar
O calor do amor
O medo
De tudo acabar.


três sonetos (quase) começando em para

Argemiro Lima
Argemiro Lima

Márcia Maia

1-

Para ser um poeta respeitado
há que ter a modéstia que ensina
que a Poesia se faz em separado
que não é uma escolha mas é sina.
Que às vezes é fardo bem pesado
outras vezes é vinho que alucina
é estar vez em quando apaixonado
por um mundo que inteiro o abomina.
Ora a luz ora a treva sem que avise-se
ao poeta o que nele se inscreveu
o que faz com que sempre ele motive-se
a escrever sem pensar se alguém o leu
vendo a vida através de um outro olhar
indo além dos que o nunca irão notar.

2-

Mas para ser um poeta engajado
use a cabeça. Freqüente a mais fina
inteligentsia. E esqueça o passado
(nele o futuro se perde e termina.).
Os lançamentos? Esteja antenado
e vá a todos. Poeta (ah!) opina:
esta é a regra. Não fique amuado
se por acaso o que leu não combina
com o seu gosto: que pena! Atualize-se!
(Sem esquecer de fingir que entendeu
e que curtiu.) Sendo assim: vanguardize-se!
E vez em quando declame algo seu
sem pretender algum 'mestre' ofuscar
: queiram ou não haverão de o notar.

3-

Já para ser um poeta aclamado
há que tecer um plano na surdina
comparecer ao brunch combinado
sem esquecer de usar roupa bem fina
(Prada — decerto! — parece adequado).
Diga de cor Proust Pound e Coralina
o Finnegans wake Dante e Machado:
sem hesitar! (E fecha-se a cortina).
Fundamental é ter: bem valorize-se
enaltecendo assim o que escreveu
e lá e aqui ressalte alguns matizes
originais de algum poema seu.
Um imortal pode ouvi-lo e gostar
: grande poeta! enfim hão de o chamar.


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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