quinta-feira, junho 02, 2005

FOTOFOBIA

Image Hosted by ImageShack.us
Claude Monet


a catedral de rouen
pleine du soleil
fere meus olhos de bruma
:
por que não a pintou
monet à luz da lua?


Márcia Maia


O PRIMEIRO BRASILEIRO 7




Os índios Potiguares espreitavam as caravelas portuguesas desde que elas se apresentaram na enseada. Nenhum movimento daqueles seres estranhos, parecidos vir de outro mundo, passou despercebido aos olhos dos comedores de camarão, exceto aos do Homem da Canoa Grande, desaparecido na noite.
Quanto a ele, melhor observá-lo, evitando envolvimento. Aquilo poderia ser perigoso, ensinava a sabedoria e a prudência do velho chefe, que há muitas luas, já não se recordava quantas, havia visto algumas embarcações como aquelas cruzarem horizontes de suas praias.
Aquelas canoas estranhas pareciam trazer maus presságios. Potiassu parecia até antever o conflito, e, por isso, bem antes daqueles acontecimentos, convocou seu povo, todos ao centro da aldeia, a lua cheia a iluminá-los, a anunciar o perigo: as naves passaram ao largo, bonitas, misteriosas, iluminadas pelo luar, mas poderiam trazer perigo. Seus ocupantes, com certeza, não eram como eles. Os problemas viriam. Mais dia, menos dia. E naquela semana seus presságios se confirmaram: em tudo, aqueles seres eram diferentes dos seus, nas embarcações, nas vestes, nos armamentos que cuspiam fogo e grandes bolas de ferro.
- O homem que não voltou à canoa grande, deixem-no em paz, sob vigia permanente. Devemos saber a que veio, disse-o no seu idioma, o Tupi, e seguiu para a praia onde ficou a examinar a pedra deixada pelos homens das grandes canoas, intrigado com aqueles símbolos gravados em relevo.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes agora já não tinha o enorme nome: era Homem da Canoa Grande. Ele caminhou despreocupado pelas praias, certo de que a escuridão o protegeria. Havia visto as caravelas sumirem no horizonte, pequeninas, e continuou sua caminhada também com destino sul. De longe, escondidos pela vegetação, os nativos já o acompanhavam silenciosamente, curiosos, sem mais temer aquele homem sozinho.
Homem da Canoa Grande dormiu, naquela noite, em grutas formadas por arrecifes à beira-mar, e só acordou pelas 8:30h da manhã bem quente do dia seguinte, quando vislumbrou com mais sossego a imensidão daquelas águas verdes, serenas, bem límpidas e mornas. Ele tirou os apetrechos do corpo, largou as botas sobre os arrecifes e correu para o mar. Queria experimentá-lo, senti-lo, saber o gosto do mergulho naquelas águas. Deixou-se ficar despreocupado por bom tempo. Pensava sobre a vida passada, devaneava, como se esquecido de sua nova realidade: só, naquele mundo imenso, desconhecido.
Já não olhava a paisagem, olhava para dentro de si e lembrava o passado, a pobreza que o obrigara à infância de tantas privações na cidade do Porto. O trinado de três parelhas de periquitos verdadeiros quebrou o silêncio da manhã. Homem da Canoa Grande recordou que estava na Terra dos Papagaios, acompanhou o vôo alto das aves rumo ao interior da terra e voltou-se para aquela que seria a sua paisagem pelo resto da vida. Iria construir cabana e começaria, aos poucos, a investigar o lugar. Voltou aos arrecifes, pegou suas coisas, dependurou as botas no pescoço e continuou caminhada. Precisava encontrar lugar onde tivesse água doce para ali estabelecer-se, depois caçar, pescar, conhecer frutos comestíveis, as raízes, viver sua solidão, sua aventura, caçar tesouros.
Caminhou por duas horas, havendo visto córregos a desaguar no Atlântico, lagoas próximas às praias, mas fixou-se num ponto central de uma grande enseada onde um rio de águas cristalinas chegava ao mar em boa corrente de desembocadura, de cinco, seis metros de largura. Muita água. Ali ficaria, à margem direita, quinze metros além da praia, cinco metros da margem do rio, em terreno um pouco elevado.
A vegetação se fazia menos rala, mais graúda mesmo próxima ao litoral arenoso, aqui e ali aparecendo em maior concentração, quase como na mata além do litoral, porém não ousou experimentar frutos desconhecidos, só aquele amarelinho, doce, que depois viria a saber chamar-se cambuí. Melhor seria aprender com as aves e animais. Deitou à sombra de um cajueiro e adormeceu, despreocupado, feliz com sua atitude, maravilhado em estar naquelas terras.
Os guerreiros do cacique Potiassu continuavam a observar o visitante. Nenhum passo do Homem da Canoa Grande passava agora despercebido dos Potiguares, índios comedores de camarão, a habitar grande parte daquela costa nordeste. Noticiado, o próprio Potiassu ia sempre a frente da indiada, trabalho melindroso, correrias e rastejamento por dunas, vencendo espaços em mata virgem, cheia de galhos, cipós, muitos de consistência difícil de ser vencida.
- Será aqui a minha primeira morada, disse Homem da Canoa Grande para si mesmo, enquanto estudava o terreno em volta, certificando-se da existência de árvores com troncos apropriados a construção do seu primeiro lar. Cuidou de limpar o chão que dali por diante seria seu, pelo menos enquanto quisesse, pensava, sem aperceber-se de que os índios o espiavam, cabendo a eles o destino do pequeno homem da canoa grande, ali, tão só!

Eduardo Alexandre


NHENCIARA, A MAIS FERMOSA DOS POTIGUARES


Fernanda Tavares

Os cabelos de Graziela, finos, dourados, cativos de sua cabeça, embora ao vento... lembram... aqui na margem destas terras... lembram... ia iniciar um pensamento, do que Graziela lembrava.
Assim, cabelos esvoaçando, figura de Nhenciara. Agora, hoje, daqui a pouco passado, olhando uma baleia passante, que todos gritaram pra eu olhar, uma monstra, como Cícero-Boga agarrou meus braços num chamamento. Reparei que ele estava sofrido de algum motivo. Me puxou no rumo de a gente ficar sozinho, até que na hora que a baleia voltou à tona, todos reparando nela, ele levantou o estrado do porão e desceu atrás de mim a escada e cobriu de novo o estrado. Lá em cima, eram umas garras me apertando. Nos dedos dele não havia aquela forma de amar que eu conhecia. Nem esperou eu tirar o vestido e ficar olhando de longe até me chamar putinha dez vezes, como ele se acriança de fazer, e eu andar na ponta dos pés pra ele gostar mais da antecipação. Era mesmo um doido se jogando em mim, que eu desconheci ele pra fugir e não tinha saída, faminto, faminto, descontrolado mesmo, e não se cansou de me querer muitas vezes.
Capitão Lúcio lembra-se, lembra sim... figura de Nhenciara, mulher como Graziela...
Ali, naquela enseada por onde há pouco passamos, às margens do rio Apodi, num pouco que é pouco mais que o tempo desta viagem, na origem das criaturas que aqui estão, a maldição de Nhenciara. O sangue dela está lá na areia que o mar não limpou, do povo dos potiguares, senhores destas bandas, quando aqui chegou o estrangeiro.
Nhenciara, a bela, a mais bela do povo dos potiguares, reservada, por ser a mais fermosa, assi assi, para a engorda do suplício dos cativos. Pera que cuando lhe se dava aos gentios cativar um estrangeiro, consta de sua justiça o manter cativo numa taba, atado como um touro com cordas de algodão, de pernas e de punhos, e em redor da taba as velhas lhe cantam que se farte de ver o sol, pois num breve perderá de lho ver.
E ao dia primeiro do suplício reservam a o estrangeiro a mais fermosa moça que há no povo da casa, a qual tem por dever regalar seu corpo com o corpo dela e lhe dar do alimento até que os velhos o tenham ao cativo como engordado pera o saboreio de ser comido em festa, entre danças donde, em morrendo o cativo com o golpe do matador, com feras settas, as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e fressuras que mal lavadas cozem para comer e repartem-se as carnes por algûas casas e hóspedes que hã chegado pera a festa da matança e della comem assada e cozida, e do pouco que guardam, muito assada, a que se chama moquém, pera mais depois renovarem o seu ódio e darem logar a outras festas, até que a presença do cativo estrangeiro se há afastado da lem-brança de todos os de aquella casa do povo dos potiguares.
Do brigue que fundeou naquella enseada, o capitão-mor foi cativo e se prepararam as festas numa das casas potiguares e Nhenciara logo entregue aos encômios do cativo com o dever de regalar seu corpo, e morto este, banqueteado entre os hóspedes e transformado em moquém pera festas futuras, Nhenciara guardou no ventre um filho do cativo.
Como as outras mais fermosas de outras casas, tinha por seu dever entregar o filho que nascesse do cativo a um parente mais próximo pera que este o matasse e a mãe seria a primeira a repartir suas carnes e de a ele guardar também fero e cego ódio. Mas Nhenciara escondeu o filho nas matas, porque o queria e lhe guardava amor, a despeito de ser filho de cativo estrangeiro.
Vinte frecheiros a perseguiram e ao seu filho no colo, e na foz do Apodi esquartejaram a os dois.
Nhenciara, a mais fermosa da casa dos potiguares, vendo o sangue seu e do filho cair no encontro das águas do rio e do mar, amaldiçoou seu povo, que seria, por tã cego error, também cativo e todo o sangue dos potiguares desceria o rio e mancharia o mar...
... Graziela, a que se deu a Bernardo, a que se deu a Cícero-Boga... Nhenciara se dava aos que morriam.
Os vultos de Nhenciara e de Graziela se fundem no espelho do sextante. Lúcio tem a idade das duas épocas e diminui o ângulo para as aproximar e a elas se misturam os gritos do cativo estrangeiro e os de Cícero-Boga, atravessando a noite e espargidos pelo vento.


Moacir C. Lopes

In, Belona, latitude noite, 1968,
romance a ser reeditado, na 3ª edição, em 2006.


EM DEFESA PRÓPRIA



A poesia está no bico do pássaro
(faminto e calmo)
que passa sobre o homem

apenas o poeta
inconcluso
momento
instrumento

inacabado artesão
que se permite
vitimar a palavra
com honradez


a honradez do pássaro
que voa em legítima defesa.


Rubens Lemos


BANQUETES LITERÁRIOS DAS ALMAS DO BECO

Hugo Macedo

Valderedo, Leonardo, Alexandro, Fernandão,Ricardo Brito
Rosélis, Marcelus Bob, Nagério.

Nas primeiras décadas do século XX, os iniciados modernistas, capitaneados por Oswald de Andrade, tinham um reduto de encontros etílicos e culturais na Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista, o qual denominavam “A Garçonière”, onde aconteceram os registros das primeiras discussões modernistas que antecederam à Semana de 22.
Nessa confraria, os modernistas escreveram um diário coletivo, culminando no livro “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”, com duzentas páginas, expondo a intimidade daquelas pessoas com cartas, recados, recortes, colagens, cores, tintas, desenhos, poesias, prosa e um pouco do pensamento pré-modernista do grupo, que, mais tarde, explodiriam com a Semana de Arte Moderna.
Este “Diário d’A Garçonière” é um embrião do livro “Miramar e Serafim”, em cujo tema Oswald de Andrade buscou registrar o espírito modernista num mundo em transformação, cabendo esperanças para uma nova forma de fazer poesia. “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo, que, fraternalmente, se misturam para formar, no ambiente colorido e musical desse retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida”, escreveu Oswald sobre aqueles encontros modernistas.
Resguardando as devidas proporções, o Beco da Lama, no centro da capital potiguar, tem sido a veia nevrálgica da vanguarda cultural do Estado. Para o leitor ter uma idéia da importância da confraria bequiana, quando em São Paulo, os modernistas proclamavam o novo estilo literário vigente com o “Manifesto Antropofágico”, o poeta Jorge Fernandes fazia versos modernos como “O banho da Cabocla”, “Tetéu” e outros, no Beco da Lama.
Vale ressaltar que o poeta Jorge Fernandes morava na rua Vigário Bartolomeu, rua paralela ao Beco, portanto um freqüentador assíduo da boemia natalense. Alguns professores da UFRN costumam dizer que Jorge Fernandes fez poesia modernista na própria "fase heróica" e, na época que Jorge Fernandes lançou seu “Livro de Poemas”, a idéia de modernismo ainda era muito frágil no Brasil, sobretudo no Rio Grande do Norte.
De acordo com os estudiosos da literatura local, Jorge Fernandes foi recomendado por Manoel Bandeira tardiamente, quando soube da poesia jorgiana, escrevendo em carta a Veríssimo de Melo: “Precisamos urgentemente da poesia do poeta Jorge Fernandes. Urgentemente!” O poeta Jorge Fernandes teve seus textos veiculados nas principais revistas modernistas paulistas, no glamour do modernismo.
Quando Oswald de Andrade se formou em Direito pela Universidade de São Francisco, seu pai, percebendo o talento jornalístico do filho, patrocinou a abertura do periódico “O Pirralho” para que Oswald pudesse escrever e expressar seu pensamento. Na mesma época, em Natal, o pai de Câmara Cascudo recuperou o jornal “A República” logo depois que o Príncipe do Tirol se formou em Direito, pela Universidade de Recife.
Cascudo era freqüentador costumeiro do Beco da Lama. Era sempre visto entre amigos pelas ruelas adjacentes ao Beco ao cair da tarde, buscando inspiração para mais uma “Acta Diurna” que seria veiculada nas páginas d’A República no dia seguinte.
Segundo a historiografia da literatura local, Luís da Câmara Cascudo é considerado "a ponte" entre Jorge Fernandes e Mário de Andrade.
Cascudo é quem introduziu as idéias sobre modernismo no Estado, afirmando na sua obra que Natal havia nascido no século vinte, tendo "dormido literalmente" nos séculos anteriores. Para o escritor e crítico literário Moacy Cirne – morando no Rio de Janeiro, e um freqüentador esporádico do Beco –, só há dois momentos importantes na Literatura Potiguar: o primeiro com o modernismo de Jorge Fernandes, em 1927 e; o outro, com o advento do “poema processo”, em 1967.
Nas paredes d’A Garçonière oswaldiana haviam quadros de Di Cavalcante, Tarcila do Amaral, Anita Malfatti, entre outros artistas modernistas. Entre os freqüentadores daquela confraria paulista, haviam as musas que freqüentavam as tertúlias literárias e uma delas era a normalista Maria de Lourdes Douzani Castro, que os modernistas chamavam de Daisy (ou Miss Ciclone), símbolo da mulher moderna, independente, jovem, bonita e talentosa.
Ao longo do tempo, o Beco da Lama tem sido palco para as mais diferentes beldades que vêm inspirando poetas, prosadores e recheando os textos de alguns contadores de sonhos. Gardênia Lúcia foi durante muitos carnavais a sereia dos mares metafóricos dos poetas bequianos.
Nas artes plásticas, a primeira exposição norte-riograndense, assumidamente modernista, foi realizada pelo artista plástico Newton Navarro, em 1948, numa sorveteria no centro da cidade, adjacências do Beco da Lama. Na contemporaneidade becodalamense, quadros de artistas plásticos potiguares do quilate talentoso de Valderedo Nunes, Assis Marinho, Franklin Serrão, Marcelus Bob, Léo Sodré, Gilson Nascimento, Fábio Eduardo, Marcelo Fernandes e outros, retratam, nas paredes do bar de Nazaré, o cotidiano do Grande Ponto e expressam as marcas da vanguarda cultural dos freqüentadores do Beco da Lama.
Enquanto os fragmentos literários produzidos durante o tempo d’A Garçonière pelos modernistas viraram um diário coletivo, anotações poéticas que se transformaram num livro registrando a inquietação daqueles intelectuais, a Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – Samba – mantém uma lista de discussão na internet aonde recortes e colagens antropofágicas vão registrando a ebulição cultural vivida nesse recanto da Cidade Alta.
O pensamento dos freqüentadores da “Garçonière becodalamense” está estampado nas páginas de um blog na internet, “Alma do Beco”, cujas idéias são as mais profundas tentativas de revisão crítica e de reconstrução da cultura potiguar, que demandou a pesquisa e a abordagem poética de fontes do passado.
O Alma do Beco é a junção dos recortes literários produzidos através dos sonetos de Antoniel Campos, das glosas fesceninas de Laélio Ferreira, dos pés-quebrados de Chagas Lourenço, dos poemas de Eduardo Alexandre, Luiz Carlos Guimarães, Márcia Maia (poeta pernambucana), Nei Leandro de Castro, Yasmine Lemos, Barbinha dos Santos, Ferreira Itajubá, Newton Navarro, Cristina Tinoco, Élder Heronildes e tanto outros que passam pelo Beco.
Neste mundo virtual, também há espaço para as crônicas, ensaios, pesquisas, história do Estado, fotos de quase todos os confrades e confreiras dessa Garçonière potiguar.
Uma das mais interessantes descrições sobre o Beco da Lama é a epígrafe do blog na internet: “Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo”.
Com o lançamento do jornal impresso “O Beco”, os confrades ganham uma voz para registrar os fartos banquetes literários das almas virtuais deste mundo bequiano. Um instrumento capaz de abrir o verbo e gritar a essência da vanguarda do Beco da Lama: Poti or not Poti, that’s Potengi!



Alexandro Gurgel




quarta-feira, junho 01, 2005

ACABOU?


Dunga

Hora de falar em sucessão. Não a do Beco, que esta é besta e lúdica e por isso maravilhosa.
Sucessão presidencial. Esta que é pra valer e pode mudar o destino de uma nação.
Elegemos Lula num sonho que durou anos.
Uma mostra de que podemos.
Hoje, onde em meio aos escombros de decepções nos encontramos?
Onde a solução?
O PSDB e PFLs derrotamos porque não representavam nossos sonhos. Eram os algozes de todos eles. Muitos dos quais, partidos chamados à base do governo que elegemos sem eles.
Os novos? PSOL e, aqui insiro porque ainda jovem, o PSTU?
Quem ou qual ou quais partidos comandariam uma campanha de volta ao sonho pelo PT – governo Lula desfeito?
Porque, ao contrário do dito de Lennon, para o povo, o sonho jamais acaba.
Talvez sim para os que se rendem diante dos gigantes e fazem jogo de poder imposto.
Como quem cala e consente. Obedece porque tem juízo. Usufrui e gosta da ceia.
O governo Lula, governo de PT e aliados, estará na vitrine em 2006, eleição daqui a pouco mais de um ano.
Lula é candidato, não se têm dúvidas.
À sua direita, o PSDB cantando de oposição social democrata de esquerda e com gogó e milho para tentar.
À esquerda, Heloísa Helena e socialistas unificados?
A ser esta a conjuntura, foi-se o sonho e Lennon tinha razão: acabou.
Acabou?

Eduardo Alexandre




terça-feira, maio 31, 2005

O PRIMEIRO BRASILEIRO 6



Na manhã seguinte, as três naus portuguesas levantaram âncoras e partiram rumo sul, deixando em desassossego aquela gente primitiva.
Na memória dos embarcados, a cena degradante da comilança à beira-mar, voraz, terrivelmente bárbara. Os índios, com aquilo, mostraram aos navegantes lusitanos que defenderiam seu chão, não se entregariam sem luta. Mas no coração de cada um deles, saltava a certeza de que uma era de paz estava finda. Nunca mais ficariam livres daqueles homens pálidos, saídos do mar em canoas gigantescas.
O cacique Potiassu ordenou a três grupos guerreiros que seguissem as canoas grandes até onde as perdessem de vista. Seus ocupantes poderiam aportar em outra praia e voltar por terra para surpreendê-los. Queria que erguessem acampamento em pontos estratégicos do litoral, até bem perto de terras tapuias, onde deveriam permanecer até que a segunda lua grande iluminasse os céus escuros da noite de sua aldeia. Qualquer sinal de que estivessem de volta, imediatamente um índio corredor deveria trazer a notícia. Ao fim do prazo, outro grupo iria substitui-los na vigília. Cuidou de ordenar também a outros dois grupos que rumassem para o norte, imbuídos de mesma preocupação, já que o inimigo podia sumir no horizonte e surpreendê-los fazendo a volta.
Quanto ao homem da canoa grande que ficara em terra, não deveriam molestá-lo. Queria que descobrissem o seu paradeiro e passassem a observá-lo em suas atitudes. Aprender com ele talvez fosse valioso para a segurança de todos. Por isso, destacou dois grupos para procurá-lo, um rumo sul, outro rumo norte. Homem da Canoa Grande não seria louco de adentrar a mata, sabia. Se ousasse, com certeza seria devorado por alguma onça faminta, das muitas que rondavam aquelas cercanias.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes tinha 22 anos e fora bom aluno de escola naval. Quando as notícias da descoberta das Índias, trazidas por Cristóvão Colombo, anos antes, correram mundo e depois foram confirmadas como um continente desconhecido, os olhos dos adolescentes voltaram-se para os encantamentos desse Novo Mundo, e João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes não fez diferente. Seria marinheiro. Iria ver de perto essas terras tão famosas, faladas de boca em boca, talvez a Atlântida, assunto diário de todas as conversas das cidades européias. Quando do embarque, dois meses antes, já sabia tratar-se das Índias Ocidentais, um continente desconhecido, misterioso, onde não havia cidades, só aldeias de silvícolas, seres primitivos, de cultura rudimentar.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, ainda fascinado pela beleza das praias, tomado de uma curiosidade que parecia fazê-lo em perplexidade, olhava fixo aquele marco de mármore branco, brasões lusitanos a conferir ao Reino de Portugal a posse daquelas terras, a areia fininha, empurrada pelo vento, batendo-lhe nas pernas, nenhuma saudade dos tempos de civilização. Aquele, sim, era um mundo novo, e era ali que ficaria para explorá-lo, conhecê-lo, vasculhar os seus mistérios, viver verdadeira aventura.
Ainda escondido em sua trincheira, ele acompanhou a retirada da esquadra. Logo que anoiteceu, pegou seus apetrechos, roupas, armas e desapareceu na praia, protegido pela escuridão. Aprendera as regras de sobrevivência dos náufragos e saberia onde e como encontrar comida, enfrentar os perigos da noite à beira-mar e também na floresta. Em sua caminhada, sorria satisfeito, certo de que um dia voltaria às terras de Portugal, rico e famoso, pois que seria o primeiro habitante europeu daquele mundo novo.
Voltaria e teria uma vida para contar, uma história que deixaria fascinada toda a gente da Europa.


UMA CIDADE, O BECO E A MAGIA


Festa Pratodomundo trouxe a poeta Civone Medeiros
(em primeiro plano) de volta ao Beco

Natal é uma cidade de dunas e magia.
Um lugar que nos convida ao aprazível, à utopia. É uma cidade feminina, com uma maioria populacional de mulheres. Uma cidade de luz, numa claridade estonteante. De sol, que chega mais cedo por aqui. De brisa, num privilégio sem par. De poesia – “em cada rua um poeta, em cada esquina um jornal”. É uma cidade de guetos, grupos, divisões. Uma cidade de valores elitistas, burgueses. Como, talvez, todo aglomerado humano. Uma cidade de muitos conflitos, como todas, talvez. Uma cidade que desconhece o seu. Uma cidade que desconhece a sua. Uma cidade que ignora o centro, os arredores... Contudo, é uma cidade que inebria.
De tudo o que me comove, sempre, são os três reis magos. De tudo o que me invade sempre são os mares mornos, azuis, verdes, intensos e suaves. De tudo o que instiga é o centro, o beco, os poetas, os loucos, os sons e a melodia. O beco como centro do centro numa resistência ímpar. O beco da lama, maldito, excluso, concluso de nós. O beco da cidade sem beco retido na lama, no escárnio, na ausência de visão. Há em tudo a ausência. Ausência do poder público, do que representa o centro, o beco. Há sobre tudo um não sei o que de nada. Fazemos as contas e pouco se conta a favor. Fazemos os acertos e nos encontramos de novo de frente em frente a um reboliço de gente: poetas, artistas plásticos, músicos, cantores, cantadores, bailarinos, boêmios, moradores dos arredores, intelectuais, e os loucos de todo o gênero. Ali, naquele lugar, uma terra de ninguém, um território obscuro. Olha-se sem ver como se tudo fosse isso mesmo, lugar de alguns transeuntes, passageiros do lugar que não se vê. Observo a cidade, alheia a tudo, ou quase tudo que ocorre por lá, como se não fizesse parte de parte de nós.
Tudo isto nos remonta às condições de abandono que está submetido o centro de Natal. Ali, os moradores se isolam numa proteção invisível. Ali, os defensores da cultura, da arte, do patrimônio histórico resistem como a dizer da vida, da preservação.
Estamos iniciando uma articulação de parceiros na perspectiva de ativar uma rede para preservação, manutenção, e mudança favorável para os que ainda crêem no centro, mais precisamente, no beco da lama.
Aquele lugar é palco e cenário de uma efervescência artística e cultural, a partir da culinária regional até as demais manifestações culturais. Esta parceria une setores diversos. Esta iniciativa busca restaurar e tornar viável o que já ocorre no beco da lama e no centro, de maneira que garanta a cidade para todos como uma referência de nossa cultura, nossa arte e nosso lugar. O beco da lama emerge como um grande ponto onde nos deixamos esquecer.
O centro sucumbe no beco resistente na arte e no sabor da embriaguês artística. Como não nos vemos no espelho, um enorme espelho reflete inconteste a cara, os gestos, os costumes, trejeitos, a loucura da ausência de visão, da falta do olhar, da falta do afeto, afago e amor. Ausência de amor coletivo numa demonstração de ocultação de nós e de si mesmo.
Nos desmontamos no beco e refazemos nele como sujeitos ausentes de nós. Uma cidade sem cara escondida no beco que pulsa na tela mascarando o personagem ausente.
Somos, enfim, um beco de saída. Somos, enfim, o Beco da saída.

Amélia Freire


POESIA MORTA



Morreu pra mim a poesia
Por maior verdade que ela diga,
E ela era a melhor maneira de expressar
Minha verdade –
Há quem a destrua:
Num gesto
Numa palavra
Numa mentira.


Rubens Lemos




segunda-feira, maio 30, 2005

O CLARÃO E A SOMBRA

Beco da Quarentena - Velha Ribeira



Zuza desasna beócios e os lorpas instigantes são castigados por um decurião de maus bofes, caso promovam azáfama e balbúrdia nas salas de aula.
Gothardo Neto, filho do professor, instrui-se no castiço vernáculo, onde a pureza e a forma lingüística são a busca maior da perfeição poética. O soneto em alexandrinos o atrai. As belas morenas o inspiram. Um amor proibido o consome.
Sorumbático, sai à noite, com seu sari indiano, entre as veredas dos aningais que ladeiam o Tissuru, e para além da Cruz da Bica descamba para a Salgadeira, lugar de tugúrios, mansarda, botecos pobres, onde, entre tragos, sacia sua desdita. É também Zé Fidélis, o poeta das sombras.
Viram-no para os lados da nossa última tatajubeira — divisa entre Ribeira e Rocas — de fraque azul desbotado, botas rotas, chapéu fora de moda, chapinhando em poças de lama, uma corda de caranguejos entre os dedos. É Ferreira Itajubá, Azinho.
Vem dos pastoris, das lapinhas, dos fandangos. E seu violão é coberto com folhas-de-flandres. Feito de luz, o poeta é a festa maior da cidade. São suas as alvadias dunas. São seus os cajueiros e javaris solitários.
Nessa noite, Azinho está insone e com sede. Quem sabe, nas barracas da Feira do Salgado — futura estação ferroviária — não haverá um caritó aceso e um bom copo de aguardente?
— Não tenho nenhuma bebida — disse o bodegueiro.
— Bote água na garrafa, fica o gosto — redargüiu Itajubá.
— Não dá mais, poeta: Gothardo Neto passou aqui e já bebeu a lavagem...


Aroldo Martins

O Potiguar 42


ESCONDE, ESCONDE

Alex Uchoa

Praia dos Artistas, Natal/Brasil

O sol quando se Poe
Amanhece cedo
Depois
Quando vem a gritaria do mundo
Ele se esconde

Carlos Gurgel


O PRIMEIRO BRASILEIRO 5



Logo ao amanhecer, vendo as mulheres de volta ao marco, o comandante da esquadra resolveu mandar um degredado à praia.
Se voltasse, como prometera ao outro, ganharia a liberdade. A reação adversa dos índios poderia ter acontecido em razão dos muitos homens que tentara desembarcar. Experimentaria. Se não desse certo, rumaria para o sul no dia seguinte, dando nome aos acidentes geográficos, realizando anotações cartográficas, chantando pedras de mármore de Lisboa naquelas terras.
O escolhido para o desembarque partiu decidido. Estava condenado a degredo de vinte anos em terras africanas e nada tinha a temer diante da situação. Preferia mesmo morrer a continuar com aquela vida, humilhado, maltratado, sofrendo horrores diários nos porões abafados das embarcações lusas, onde muitos já haviam sucumbido. Pelo menos, tinha a possibilidade de comutação da pena. Se voltasse, seria livre novamente e poderia voltar à família para cuidar dos filhos deixados em Portugal.
O degredado foi se chegando à praia em remadas decididas e velozes. Queria acabar com aquela expectativa. As índias foram buscá-lo na arrebentação, conduzindo seu barco à terra. O homem, sempre cercado pelas mulheres, dirigiu-se à esteira de oferendas e começou a analisá-las. As mulheres índias, curiosas, tocavam seu corpo, puxavam seus cabelos, arrancavam botões de sua roupa. No topo da duna, a indiada guerreira observava. Ele tinha por missão buscar um contato com o chefe da tribo e por isso demorou-se no lugar, enquanto as mulheres faziam festa, dançavam em seu derredor.
O pajé da tribo, carregado de maus presságios e já cansado da situação, desceu a duna, parecendo, para os que estavam distantes, nas embarcações, tratar-se de uma mulher que trazia consigo, na mão direita, um pedaço de pau grosso, parecendo um porrete. Enquanto as índias dançavam em torno do português, o pajé, aproveitando que o degradado estava de costas, com o pau, desferiu-lhe violenta pancada na cabeça, fazendo-o desfalecer. Logo a seguir, as mulheres tomaram seu corpo e, em meio a grande gritaria, levaram-no para o topo da duna, onde o cacique Potiassu se encontrava em companhia dos demais guerreiros.
De longe, os portugueses viram o chefe da tribo a gesticular diante daquele corpo estendido na areia fina, enquanto a indiada partia para a mata trazendo grande quantidade de madeira. Os silvícolas amarraram o degredado português ainda vivo em um tronco fincado à terra, fizeram uma grande fogueira a sua volta e atearam fogo. Durante um bom tempo, aquela imagem pavorosa ficou na retina dos embarcados, provocando mau estar e revolta. O degredado teve depois seus membros decepados e levados para a beira da praia, onde foram devorados pelos índios em gritarias.
Nas embarcações, a marujada revoltada queria vingar aquela morte horrenda, mas Gaspar de Lemos se antepôs.
De nada adiantaria aquele gesto. Seria apenas mais derramamento de sangue, provavelmente de ambos os lados. Ele não queria perder marujos. Tinha uma difícil missão pela frente e queria cumpri-la à risca. Com certeza, os homens desembarcados cinco dias antes tiveram o mesmo fim daquele coitado, teriam servido de alimentação àquela gente bárbara, comedora de carne humana, canibal.

Eduardo Alexandre


PONTUAÇÃO



Se eu morresse agora,
Seria um ponto final?

Não creio.

Deixei distante uma vírgula,
Minha continuação.

Além disso,
As reticências havidas
Sugerem interrogação:
Parar?
Pra quê?


Rubens Lemos


DONA

Eduardo Alexandre

Ana Yasmine Lemos e Rubens Neto

tentei fazer um poema
dizendo tudo que sinto
não consegui
as letras tropeçam e se repetem num eu te amo, te amo, te amo
as palavras são conhecidas, usadas.
tentei fazer um poema
com regra
concordância correta
lógica encaixada e pontuação perfeita
não consegui
as frases banais que possuo são minha maior verdade
mas usadas por quem não sabe.
descobri que o amor verdadeiro
não cabe numa folha
tentei fazer um poema que merecesse aplauso
não consegui
o que sinto é tão simples e puro
não sou poeta, sou a dona da poesia
que saiu de mim
e hoje em minhas mãos
completa olha pra mim,
sorri e chora
me abraça e dorme.
descobri:
tentei fazer um poema e consegui!

Yasmine Lemos




domingo, maio 29, 2005

HABEMUS



Dia 23 de abril marca o Dia Mundial do Escoteiro.
E um, senão o maior, dos incentivadores potiguares dos princípios de Baden-Powell foi o Professor Luiz Soares, hoje merecidamente homenageado com o seu nome em Escola, Hospital e Grupo de Escoteiros.
Acontece que, no começo da década de 60, o já famoso professor e chefe maior do escotismo local foi convidado para a cerimônia de juramento à Bandeira Nacional dos novos recrutas no então 16 RI, hoje 16 BIMtz.
Nessa mesma ocasião, estava iniciando seu serviço militar José das Neves, jovem recruta oriundo de Pedro Velho e, justamente naquele festivo dia, tirando seu primeiro serviço na guarita do portão principal, na entrada do quartel.
Tentando manter-se o mais calmo possível diante das inúmeras autoridades que adentravam o quartel, o Sd Neves cumpria rigorosamente o que lhe tinha sido exaustivamente repetido e ensinado: “Civil, posição de sentido; Praças, ombro armas; Oficiais, apresentar armas”.
E lá ia o Sd Neves, “ombro armas”, “sentido”, “apresentar armas” a cada visita que chegava ao 16.
Mas não demorou muito e “a coisa pegou”.
Vinha chegando, caminhando vagarosamente o prof. Luiz Soares.
Quando o Sd Neves viu aquela figura se aproximando do portão, com o peito e a farda cheios de condecorações, estrelas, constelações, galáxias inteiras, medalhas aos montes (só faltava a tampinha premiada da Crush), aloprou, entrou em parafuso.
Qual seria sua atitude frente àquela revolucionária autoridade?
Sem saber o que fazer, largou o fuzil, saiu às carreiras da guarita, correu em direção ao professor e, lembrando-se que há pouco tempo tinha falecido João XXIII, ajoelhou-se, beijou os pés do mestre escoteiro, fez o sinal da cruz e exclamou:
- Só pode ser o novo Papa.

Tadeu Néri


O PRIMEIRO BRASILEIRO 4



Aos poucos, os índios voltaram ao topo das dunas, até que nenhum mais foi visto na praia. Eram centenas. Um número bem maior do que o do dia anterior. A maioria sentada ou de cócoras, como se esperassem que os visitantes viessem buscar suas oferendas. Gaspar de Lemos, no entanto, precaveu-se. Nenhum passo seria dado até que algum sinal dos portugueses em terra surgisse. À sombra do cajueiro em que dormira, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes cavou um buraco de um metro de profundidade, dois de extensão e meio metro de largura, e fez, em dimensões um pouco maiores, um tampo de varas e folhas. Ali ficaria entrincheirado, observando os movimentos da orla marítima.
No meio da tarde, um grupo de mulheres índias desceu a duna com mais oferendas, depositaram-nas sobre a esteira e iniciaram uma dança estranha, de roda, com rodopios sobre o próprio corpo, e gestos como se a convidar os visitantes à terra.
Na nau capitânia, os comandantes confabulavam. Não atenderiam àquele convite. Enquanto não soubessem o paradeiro dos homens desembarcados, não responderiam aos silvícolas. Em terra, quando ultimava o revestimento de sua trincheira com varas, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes foi surpreendido por um dos índios que o procuravam.
Antes que o silvícola corresse a denunciá-lo aos demais, o mancebo disparou sua garrucha contra ele, matando-o. O estampido despertou a curiosidade de outros selvagens nas imediações, que, assustados, foram dar a notícia ao chefe Potiassu. O português, vendo o perigo iminente, jogou seus apetrechos na trincheira, foi até o corpo do índio abatido, arrastou-o até o buraco e empurrou-o para o seu interior. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes tremendo, cuidou de apagar os vestígios de sangue deixados sobre as folhas pelo silvícola. Colheu-as do chão e levou-as consigo para dentro do esconderijo subterrâneo, puxou o tampão que preparara para encobri-lo e deixou-se ficar ali em silêncio, dentro da terra, observando o movimento através de uma das pequenas fendas, preparadas para servirem à vigia.
Um grupo de índios logo estava em volta do local, vasculhando, mas de nada se aperceberam, nem deram pela falta do companheiro morto. Logo esqueceram aquele barulho estranho, jamais antes por eles escutado. Voltaram às suas posições na duna, despreocupados em caçar o fugitivo, enquanto outro grupo de mulheres voltava ao local do marco, acenando mais uma vez para as naves ancoradas na enseada. Voltaram uma vez mais antes do entardecer, e, de sua trincheira, tudo João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes observava.
As tentativas de aproximação dos índios com os brancos, naquele dia, foram vãs. Antes do anoitecer, retornaram às suas aldeias e não mais se preocuparam com o português em terra, até que deram pela falta do guerreiro morto. Poderia ter ficado na mata ou estava prisioneiro do Homem da Canoa Grande, como estava sendo chamado João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes pelos silvícolas. Potiassu destacou um grupo para procurá-lo, outro para fazer a vigília na praia, próxima ao marco, e dormiu intranqüilo e cansado.
As buscas ao índio desaparecido levaram os guerreiros ao local onde escutaram o ruído estranho. Vasculharam o lugar e lá se detiveram por mais de duas horas. Na sua trincheira, tendo ao lado o cadáver do silvícola morto, Homem da Canoa Grande tremia. Quando os movimentos da indiada cessaram, finalmente João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes conseguiu dormir, apesar da imensa fome que sentia. Dormiu ao lado do morto, naquele buraco por onde passeavam formigões pretos e formigas menores, vermelhas, que começavam a devorar o corpo frio e rígido do morto.
Quando João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes acordou, dia seguinte, o sol já estava alto e o movimento na praia já era intenso.
Dezenas de índios dançavam em volta da pedra chantada. Outros, nos morros ou nas dunas, faziam fogueiras, como se a anunciar suas posições ao chefe. Potiassu estava intrigado com o desaparecimento de seu guerreiro. Reforçara o grupo de busca e recomendara mais uma vez o aprisionamento do fugitivo. Queria-o vivo. Morto, só se colocasse em risco a vida de algum dos seus. Nos navios, a curiosidade aumentava entre os membros da tripulação. Por todo o horizonte de terra, viam-se rolos de fumaça subindo os céus.
Gaspar de Lemos, por volta do meio dia, ordenou que três barcos fossem lançados ao mar. Não iriam à terra, ficariam próximos às embarcações, apenas para dar mostras aos nativos de que estavam percebendo a movimentação que faziam. Em sua cabine de comando, o português chefe da tripulação discutia com Américo Vespúcio o que fazer. Esperariam os cinco dias combinados e só então mandariam seus homens à praia, bem armados e em grande número, as canhoneiras apontadas para o topo das dunas.
Aproveitando a curiosidade dos nativos diante dos barcos no mar, ameaçando rumar à praia, Homem da Canoa Grande saiu de sua trincheira, cavou, às pressas, um buraco raso, e enterrou o corpo do índio morto, tendo o cuidado de espalhar folhas secas no lugar remexido. Água, ele tinha para mais alguns dias, mas nada tinha para comer. Se tivesse armas silenciosas como as dos índios, decerto se arriscaria à caça, mas se contentou com alguns frutos amarelos, pequeninos, que vira índios comendo no dia anterior, ali perto do seu esconderijo. Experimentou o sabor da fruta e gostou. Coletou uma boa quantidade e voltou para seu abrigo, onde comeu-os com voracidade.
Na praia, os índios renovaram as frutas da esteira, assim como os animais abatidos. Esperavam a vinda dos visitantes para qualquer momento. Desde que os barcos foram lançados ao mar, mudaram de tática, deixando na praia apenas mulheres. Nas idas e vindas dos barcos, os portugueses chegavam cada vez mais próximos da arrebentação. Mas não ousavam pegar os presentes. Como não viam os dois tripulantes idos à terra já por três dias, parte da marujada começava a mostrar cansaço com a situação e sugeria ir-se embora dali, de vez. O comandante, contudo, manteria a promessa de esperar por cinco dias.
No quarto dia de espera, Gaspar de Lemos, atendendo sugestão de Américo Vespúcio, resolveu ir ter com os indígenas. Preparou barcos suficientes para cinqüenta dos seus homens, todos bem armados, levantou âncora de uma das naves fundeadas, aproximando-a mais do litoral, em posição de tiro, e comandou ele mesmo o desembarque. Ao perceber a movimentação dos visitantes indesejados, o cacique Potiassu ordenou que todos saíssem da praia e se preparassem para o ataque. Quando os portugueses chegaram próximos a terra, a indiada partiu em correria, descendo as dunas disparando uma chuva de flechas contra os invasores.
Os portugueses jamais tinham visto algo semelhante e bateram em fuga desesperada, sem esboçar reação de fogo, de forma atabalhoada e perigosa, mas logo resolvida quando as canhoneiras da nave mais próxima dispararam, assustando a indiada que desapareceu na mata para não mais voltar nesse dia. Em seu refúgio subterrâneo, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes a tudo assistiu, e mais uma vez tremeu ao ver o estardalhaço que os índios, em fúria e aos gritos, fizeram.
Humilhado, Gaspar de Lemos adormeceu naquele dia pensando em como resolver a situação no outro dia, o quinto e último da espera.

Eduardo Alexandre


SEMANA PARA LEMBRAR RUBENS


Francisco Welfort, Lula, Rubens, Bruno Maranhão e Dix-Huit Rosado Maia (vice-governador do Estado) no Aeporto Augusto Severo. Rubens, candidato a governador pelo PT, recebe Lula candidato a presidente, em 1982.




Rubens Lemos (1941 - 1999)



Rubens Manoel Lemos nasceu em Santana dos Matos/RN no dia 07 de junho de 1941, filho de José de Lemos e D.Mariquinha Lemos.
Autodidata, fez do jornalismo o seu ofício: trabalhou na Rádio e na Folha de Londrina, 1958. Em 1962, trabalhou na sucursal do jornal Última Hora, no Paraná, ao lado de Samuel Wainer.
Sindicalista, liderou o primeiro movimento grevista do rádio brasileiro no Paraná.Em 1964, assumiu a direção da Rádio Atalaia de Maringá.
Com o golpe de 64, exilou-se no Chile, só retornando ao Brasil no ano de 1973 com a queda do governo de Allende. Com a sua volta foi preso e levado para os porões do DOI-CODI, em Recife. Libertado por falta de provas, passou a escrever no jornal Tribuna do Norte e fazer comentário esportivo na Rádio Cabugi.
Fundador do Partido dos Trabalhadores – PT, disputou o governo do Rio Grande do Norte em 1982. Tempos depois, aceitou o convite para ser Secretário de Comunicação de Cuiabá, assessorando o prefeito Dante de Oliveira.
Em 1978, publicou, pela Editora Clima, o seu primeiro e único livro de poesia - Ciclos da Pedra e do Cão.
Para o crítico Ivan Maciel, “Os poemas de Rubens Lemos são, fundamentalmente, de extrema contenção verbal .As palavras nelas exercem dupla função:sensorial (por sua valorização visual e auditiva) e codificadora (por representarem sempre uma resposta à experiências aparentemente vivenciadas)”.
Faleceu em Natal /RN no dia 04 de junho de 1999, aos 58 anos de idade.


Dois poemas de Rubens Lemos:


ONDE , QUANDO E POR QUÊ?

E de repente, mulher,
Onde aquela face intemporal
tão prometida?

Quando, mulher, parou
O tempo de espaços
conquistados?

Por que, mulher,
Não nos soubemos ser
Abstração de um real sentido?



RETA FINAL


Um gosto sem sabor,
Um mal amargo,
Um justo medo.

Um amor no quase escuro,
Um bem antigo,
Um ódio cedo.

Uma vida
Ávida
De parar
E sem segredo.

E um poema em sua homenagem:



Sua História foi mais que um poema

I

Trago agora das tumbas do passado
A imagem de um homem que foi homem
E que as letras no nome não se somem
Nos escritos do conto mal contado
Do tinteiro burguês, príncipe e fardado
Que transforma bandidos em heróis
Quero dar voz a quem foi voz
De quem não tinha voz, nem vez, nem vida;
De quem viu a liberdade a todos nós!

II

Ele deu sua vida em prol da vida
Dos milhões de sem–vida da nação;
Dos sem- terra, sem–teto, pátria e pão,
Dessa classe explorada e oprimida.
Que os sem classe da classe embrutecida
Nas finezas do lucro e do domínio,
Giroflex, ganância e extermínio
No temor do terror da igualdade
Assombrados com a luz da liberdade
Lhes queriam até sem raciocínio!

III

Rubens Lemos nasceu em Pixoré,
Em Santana dos Matos, nosso estado.
Onde o pai, enfermeiro dedicado
Receitava a ciência junto à fé,
Pra curar, prevenir e para até
Ensinar a saúde espiritual
Junto ao povo, era líder natural
No DNOCS lutando em prol da vida
Ensinando pra massa tão sofrida
Convivência com a seca tropical.

IV

Em quarenta e um, século passado,
Veio ao mundo, pra ser um lutador
Viu criança o sertão, onde o labor
Foi sinônimo de fome e pé-rachado
Onde o fio da vida era farpado,
Sede à solta e o sonho atrás da grade,
A cancela e o mourão sobre a verdade
Demarcando o poder e o acinte
Dos domínios feudais do século vinte
Sufocando o sonhar e a liberdade!

V

Dali foi pra o País de Mossoró
Respirar sentimento libertário
Resgatando Torquato, o proletário
Que arrastou o garrancho sobre o pó;
Se sentiu sem sentir-se solto e só,
Com Canário e Guilherme achou respaldo
Se somando a Joel, Góis e Vivaldo
Vendo o sangue no cérebro e nas retinas
O vermelho do sol dos Reginaldo!

VI

Em seguida partiu pra Garanhuns
Onde viu o leão pernambucano
Levantar sua pata contra o engano
Desde o mar ao limite e aos Inhamuns,
Onde Castro com gente e goiamuns
Demonstrava para o mundo a aspereza
De uma terra de fome e farta mesa
Do contraste do açúcar e a amargura
Onde o mix dureza com ternura
Forjou o aço da liga camponesa!

VII

Foi então que seguiu pra Paraná;
O seu peito já era comunista.
Em Londrina tornou-se jornalista
Viu também injustiça e dor por lá...
Meia quatro, chegou a rodo e pá,
Com o silêncio da noite longa e escura
A história a sofrer vômito e tontura
A nação sob trevas, tanques, “demos”...
E a prisão do irmão Wilson Lemos
Começando o azar da dita dura!

VIII

Em Natal encontrou normalidade
O emprego, o esporte a família
Sem sentir os rugidos de Brasília,
Cabugi e Tribuna... e ninguém há-de
Conspurcar sua clandestinidade
Partidão, Poti/rádio e O Diário,
O BR e o racha proletário
Mário Alves, Marcelo Mário Melo,
Aparelho estourado, ação, duelo
E o destino revolucionário!

IX

Cai Marcelo em Pium, casa em seu nome;
Inquilino na grade e quem aluga
Com milicos no encalço, sai em fuga;
Odilon, bigodão, força e renome
Ao livrá-lo da “cana”, em cana o some...
Do coiteiro Coutinho quando arriba
Pendurado, pintado pindaíba
Rasga as sombras do ventre do elefante
Vai sumir do coturno escoiceante
No calor do sertão da Paraíba!


X

A prisão, a tortura e o degredo
O exílio nas terras de Allende
Solidão, sofrimento... não se rende
Ao poder cruel general medo.
Retornou ao País, sob segredo
Em missão de resgate a um companheiro
De São Paulo partiu para o terreiro
Pra o abraço à amada e ao novo fruto,
Novamente o canhão do poder bruto
Lhe cortou o vôo livre em seu roteiro.

XI

Presos ele e Isolda, isolados;
A família e amigos sem saber
Era cabra marcado para morrer
No açougue infecto dos fardados
Foi preso pedir a um dos soldados
Que avisasse à família e aos amigos.
Veio a luz com benção dos antigos
Seu padrinho Ramalho a quem dou louvo
Que fez Rubens nascer e nascer de novo
Ao cobrar ele vivo aos inimigos!

XII

Novamente a tortura, a sombra, a dor.
Utopia quebrada, mundo em escombros
Todo o peso do mundo sob os ombros
Depois luz a soprar sobre o horror
Anistia, PT, greve, calor
A campanha ao Governo do Estado
O trabalho com marketing, o esporte amado,
A direta que Lula lá não pôs
O filósofo do mal que não se impôs
Por denúncia do grito ex- torturado!

XIII

Tempos loucos de angútias, não risonhos.
Fleuma e trauma angústia, amor, revolta,
Mesmo livre, a cadeia à sua volta
Lhe impondo limites tão bisonhos;
Morreu lúcido de amor, ébrio de sonhos,
Foi morar nas mansões da liberdade,
Onde tudo é comum, fraternidade,
Igualdade, ingoverno e não poder,
Não-lugar, onde enfim se pode ter
O direito à total felicidade!.

XIV

Nos anais da história da verdade
Sua dor há de ser recompensada
Com a vida por ele projetada
Para a massa sorrir felicidade
No raiar de uma nova sociedade
De igualdade, justiça, luz e calma...
O futuro vai rir-lhe e bater palma
Porque Lemos foi leme,Lênin e lema
Sua história foi mais que um poema...
Foi um texto de sangue, amor e alma!!!



Crispiniano Neto


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

.. .. ..

Contatos Imediatos

.. .. ..

Recentes


.. .. ..

Praieira
(Serenata do Pescador)


veja a letra aqui

.. .. ..

A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

layout by
mariza lourenço

.. .. ..

Powered by Blogger

eXTReMe Tracker