Nos anos 70, a turma da poesia teve a idéia de comemorar o seu dia. Não me lembro exatamente qual o ano. Só sei que caminhamos, recitamos e folheamos os umbrais da década que reviraram e revigoraram os artistas e as pessoas com inúmeras idéias na cabeça. Lembro-me como se fosse hoje: movimentos aconteceram para sedimentar vozes, versos e sintetizadores.
Tudo, na sua maioria, de improviso. Poesia mimeógrafo, marginal. Arte alternativa. Poesia vertida e vestida em bares, lares e nos mares da nossa incontinência coletiva. Festejamos luas, ruas e vendavais. E as caminhadas com faixas, na faixa de pedestre ou avançando os sinais da voracidade londrina e provinciana.
Era tudo muito mestiço. Regado a véus, vinhos e vielas. Esse pessoal que toma conta da paixão pela palavra, que escreve em guardanapos, toalhas seminuas, que assessora corações e lentes, é cria, é filho da geração da graça incontida. Imã e cúmplice de alforrias verbais. Simpatizante da sopa de letras que agrega e consagra pecadores do tempo.
Somos inúmeros poetas. Veniais e virtuais. Marginais e abdominais. Consagramos a fome do estômago da nossa fértil usina tropical, a fortaleza de um paraíso pedido, tão amplificadamente gauche. Carregamos, como pessoas e poetas, a gravidez de um texto, o crepúsculo das f(r)ases soltas e penitentes.
E testemunhamos como lírios e humanos, a nitidez da vida. Cálida e pálida. Cinematográfica e recheada de ilusões.
Por isso, que dos suores que escrevo e que escorre da testa e da língua de quem ensaia revelações, de quem come o pão que o dicionário amassou, biscoitos são fermentados: vértices e ícones de um mesmo saco: escrever e ler é divino e é profano.
Assim, a saga de quem caminha e fala versos, é rascunhar na rua os estribilhos de uma esquina que não peca. Igual a versos soltos. Revoltos. Envoltos em reclames, alfarrábios da simétrica fé.
E já não era sem tempo, durante todos esses anos, caminhadas aconteceram, livros foram lançados, saraus apareceram, poesias foram musicadas, poetas foram falados, cantados, lembrados, amados.
Portanto, ver a vida com poesia é como sentir uma fisgada. Profunda e reveladora. Semelhante a uma crença quando engatinha. Ou ao burburinho de uma cidade do litoral nordestino. Forte e tão bela. Que por suas ruas passeiam rosas e reisados. Relicários e botequins.
Enfim, vestir a camisa da poesia, que pode ser amassada, engomada ou esgoelada. Ela pode levar chuva, bala, beijo e porão. Só não pode faltar paixão. E o perdão que só os nossos olhos alcançam.
Carlos Gurgel