Na feira do Alecrim
O marchante grita: “Chã de dentro”
E eu lá por fora...
Na barraca de seu Malaquias
Tinha ratoeira, candeeiro, alpercata, fumo de rolo,
Querosene, peixeira miúda, retalho de fazenda...
Na calçada a lata de mel de engenho, a rapadura,
O alfenim, a cocada, o açúcar mascavo...
Na Avenida Dois
O siri, o caranguejo, a galinha caipira,
O porco, o carneiro capado...
Para a feira do Alecrim eu levava cinco cruzeiros
E comprava Raiva, Sequilhos, confeito barato,
E ainda sobrava troco para uma lata de umbu.
A cesta de palha da minha mãe vinha ‘cheinha’ de tudo:
Carne de sol, farinha, goma, alface, mocotó de boi, tripa...
Na feira todos se encontravam.
Era o professor de matemática, o carteiro,
O vigia do colégio, o colega de sala
E até a Madre Superiora...
Todos com sandália de dedo,
Todos eram iguais na feira do Alecrim...
José Correia Torres Neto
Alexandro Gurgel
Em um belo casario erguido nos idos de 1900, imponente e bem conservado, construído em forma de chalé, na subida da ladeira da Ribeira, morava o escritor e historiador Câmara Cascudo. Por muito tempo, o “Solar dos Cascudos” ficou fechado, escondendo relíquias culturais sobre a vida do escritor. Agora, a neta do mestre, Daliana Cascudo, abre as portas do ninho cascudiano para visitação pública, sem cobrança de taxa.
É uma oportunidade ímpar para aqueles que querem desvendar os mistérios do lugar onde o gênio morou e escreveu a maioria dos seus livros. Envolvidos pela atmosfera do ambiente, o casario nos faz voltar ao tempo, enquanto Daliana nos mostra em detalhes a Casa Câmara Cascudo.
Na entrada da Casa, uma placa em bronze avisa: “Aqui, Luis da Câmara Cascudo serviu ao Rio Grande do Norte pelo trabalho intelectual mais nobre e mais constante que o Estado já conheceu”, uma homenagem do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ressaltando a importância de Câmara Cascudo.
A biblioteca foi o cômodo da casa onde o historiador passou a maior parte do seu tempo. Nas paredes, marcas de intelectuais e pessoas famosas que o visitava em casa, deixando uma mensagem assinada, como: Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Assis Chateaubriant, Juscelino Kubitschek, Carlos Drummond de Andrade, Dorival Caymmi, Djalma Maranhão, Sylvio Pedrosa e muitos outros. Foi naquela parede que Ary Barroso escreveu um compasso de Aquarela do Brasil, seguido de uma dedicatória: “Ao gênio e amigo”.
Dentro da biblioteca encontram-se, além de móveis coloniais, coleções de arte indígena, arte popular, arte estrangeira, etnografia africana e uma coleção de arte sacra. Santos de tamanho natural continuam sobre a escrivaninha que o mestre usava, inclusive um São Sebastião de barro, com flechas encravadas ao corpo e amarrado a um xique-xique caatingueiro.
De acordo com Daliana, quando Câmara Cascudo estava produzindo em sua biblioteca, Dona Dáhlia evitava que qualquer problema corriqueiro chegasse perto daquele lugar encantado. “Todo esse cuidado era para que vovô pudesse escrever em paz,” lembra Daliana. Objetos pessoais e todo o acervo livresco de Câmara Cascudo podem ser apreciados no Memorial Câmara Cascudo, ao lado da Matriz Santa Terezinha, na Cidade Alta.
A cama e a rede, onde cascudo repousava, ainda estão no mesmo lugar. Retratos de família na parede, uma bacia d’água de ágata na cabeceira da cama, um armário e uma cômoda, completam a singeleza do quarto do casal Cascudo.
Segundo Daliana, a cozinha era o lugar que Câmara Cascudo mais gostava. “Era aqui que ele recebia os amigos”, disse Daliana, lembrando que qualquer pessoa que se aproximasse da janela lateral, Cascudo se levantava da mesa onde almoçava, para atender as pessoas. “Ele atendia de pescador, mendigo à deputado ou governador”, ressaltou Daliana.
A parede da cozinha é forrada de quadros, uma galeria de artes raras – parte de um acervo riquíssimo. No canto, uma petisqueira guarda dezenas de medalhas, comendas, títulos, placas, honrarias conquistadas no Brasil e no mundo, em reconhecimento ao seu trabalho intelectual. A cadeira de balanço, que Cascudo usava para fazer a cesta e fumar um charuto, é um convite para sentar e se emocionar.
“O Estado e o próprio país possuem uma imensa dívida com esse homem que dedicou sua vida a engrandecer e valorizar esta terra. Tudo que se faça para saldar esta dívida ainda é pouco se comparado com o legado deixado por ele, que se auto intitulava um provinciano incurável e cujo maior orgulho era a cidade de onde nunca arredou o pé”, desabafa Daliana, em um texto informativo, distribuído aos visitantes.
Ao descer as escadarias, o visitante tem a sensação que deixou de observar algo, saindo da Casa Câmara Cascudo impregnado de histórias cascudianas, memórias de uma vida dedicada ao conhecimento e a cultura do nosso Estado.
"As mulheres de Maria Boa (famoso prostíbulo de Natal) tem uma predileção pelo grego, em detrimento do latim. Usam a palavra "gala", e não esperma. Gala é leite em grego."
Luís da Câmara Cascudo
Natal, década de 40 - A cidade fervilhava de militares americanos e brasileiros. Aviões, hidroaviões, Catalinas e Jeeps patrulhavam a vida dos natalenses.
Instalava-se na cidade a paraibana de Campina Grande, Maria Oliveira Barros (24/06/1920 - 22/07/1997). Começava neste ínterim a história da mais conhecida casa de tolerância do estado (do país ou do mundo?).
Entre as movimentações na Ribeira, nas pedidas de Cuba Libre no saguão do Grande Hotel, nas notícias pelas Bocas de Ferro, na Marmita, em Getúlio e em Roosevelt e na nova geração de meio americanos e meio brasileiros, lá estava Maria Barros enaltecendo-se na Cidade do Natal como a proprietária do melhor (ou maior) cabaré.
Tornou-se conhecida como Maria Boa. Mesmo com pouco estudo ela despertou o gosto por música, cinema e leitura. O seu "estabelecimento" era o refúgio aos homens da cidade, com residência fixa ou, simplesmente, por passagem por Natal.
Jovens, militares e figurões acolhiam-se envoltos as carnes mornas das meninas de Maria Boa. Muitas mães de família tiveram que amargar, em silêncio, a presença de Maria Boa no imaginário de seus maridos em uma época de evidente repressão sexual.
Vários fatos envolveram a personagem. O episódios mais comentado foi a pintura realizada pelos militares em um avião B-25. Um dos mais famosos aviões da 2a Guerra Mundial, os B-25 eram identificadas com cores características de cada Base Aérea. Os anéis de velocidade das máquinas voadoras da Base Aérea de Salvador eram pintados com a cor verde. Os aviões de Recife, com a cor vermelha, e os de Fortaleza, com a cor azul. Para a Base de Natal foi convencionada a cor amarela.
Os responsáveis pela manutenção dos aviões em Natal imaginaram também que deviam ser
pintados no nariz do avião, ao lado esquerdo da fuselagem junto ao número de matricula, desenhos artísticos de mulheres em trajes de praia.
Autorizada pelo Parque de Aeronáutica de São Paulo, a idéia foi colocada em prática. Pouco tempo depois, os B-25 de Natal surgiram na pista com caricaturas femininas e alguns até com nomes de mulheres.
Alguns militares da Base escolheram o B-25 (5079), cujo desenho se aproximava mais da imagem de Maria Barros. Outras aeronaves também receberam nomes como "Amigo da Onça" e "Nega Maluca".
Quem custou a acreditar neste fato foi a própria Maria. Até que alguns tenentes decidiram levá-la até à linha de estacionamento dos B-25 logo após o jantar para não despertar a atenção dos curiosos. Ela constatou o fato. As lágrimas verteram de seus olhos quando viu à sua frente, pintada ao lado do número 5079, a inscrição "Maria Boa".
O mito "Maria Boa" rendeu trabalhos acadêmicos como o da Sra. Maria de Fátima de Souza, intitulado: "A época áurea de Maria Boa (Natal-RN 1999)". O trabalho aborda o
"fenômeno da prostituição infanto/juvenil, suas conseqüências e causas no desenvolvimento físico e psicossocial de crianças e adolescentes(...). Com o aprofundamento dos estudos percebemos o importante papel dos bordéis na prostituição, bem como o fechamento dos mesmos(...). Chegamos então ao cabaré de Maria Boa, já fechado. Tivemos, assim, a oportunidade de conhecer um pouco da saga da Sra. Maria de Oliveira Barros, uma profissional do sexo, com grande importância na história da prostituição de adultos, ou ainda, tradicional; das histórias contadas a seu respeito chamou-nos atenção para sua representação social, seu "mito" e sua ligação com o imaginário masculino. Com isso, passamos a averiguar mais profundamente uma participação na sociedade da época e buscamos reconstruir parte de sua história enquanto meretriz, cafetina, e proprietária da mais famosa casa de prostituição que o RN já conheceu."
Em 26 de março de 2003 o cantor Valdick Soriano, quando entrevistado por Everaldo Lopes, registrou que quando esteve em Natal, pela primeira vez, cantou até para as meninas de "Maria Boa".
Hoje bebe-se Maria Boa em alguns bares de Natal. Uma mistura de creme de cassis, vinho branco ou champanhe embriaga as lembranças da maior cafetina da cidade.
O Professor Assistente do Departamento de Letras Márcio de Lima Dantas publicou e 28 de abril de 2002 o texto "Retratos de silêncio de Maria Boa".
"(...)Para além da atitude ética de proteger sua família, o que faz parecer um jogo com a hipocrisia da sociedade, penso que, na atitude de se manter reservada, se inscreve um outro aspecto digno de ser ressaltado. Falo do mito que entorna a personagem Maria Boa, de certa maneira, criado e ritualizado por ela mesma, dimensão de fantasia para além do empírico vivenciado. (...).
(...) Astuciosamente se fez conhecer por "Maria", o antropônimo mais comum no universo feminino, genérico e pouco dado a divagações semióticas. Ironicamente é o nome da mãe de Jesus... Quem não tinha conhecimento no Estado de uma proprietária de um requintado lupanar, e que se chamava Maria, a Boa. O mito, da constituição do éter, era aspirado por todos, preenchendo necessidades, ocupando lugares no espírito, imprimindo fantasias nos adolescentes, despertando em jovens mulheres às aventuras da carne, engendrando adultérios imaginários. Integrava, assim, o patrimônio individual e coletivo. (...)"
Eliade Pimentel, no artigo "E o carnaval ficou na memória" destaca a presença de Maria Barros nos carnavais de Natal:
Lá pela década de 50, os desfiles passaram a acontecer na avenida Deodoro da Fonseca. Maria Boa desfilava com Antônio Farache em carros conversíveis,"
O Jornalista Agnelo Alves quando escreveu o artigo "A Natal que governei e o 3º Milênio" citou o cabaré de Maria Boa como ponto de referencia geográfica para informar sobre as suas obras quando prefeito de Natal.
"(...)Desobstruir para crescer. Alargar para trafegar. Conversei com os arquitetos João Maurício Miranda e Daniel Holanda. Como fazer? Lancei o desafio. Sem a contra-partida de nenhum pagamento, os dois me apresentaram o esboço da solução, surgindo daí o primeiro Plano Viário de Natal com a primeira estação metropolitana da cidade. Asfaltar a Hermes da Fonseca até o contorno com a Praça Aristófanes Fernandes, seguindo daí em linha reta até a Duque de Caxias. Ponto um. Asfaltar a Duque de Caxias, subindo pela Junqueira Aires, via Praça das Mães, pegando a lateral por trás do Tribunal de Justiça (hoje OAB) até a Praça André de Albuquerque, prosseguindo pela Praça das Laranjeiras, Padre Pinto, sobrando em Maria Boa para sair na lateral do cemitério, já no Alecrim, ou numa primeira etapa prosseguir pela Padre Pinto até o Baldo e aí tomar o rumo do Alecrim.(...)"
Maria Barros é história. Mesmo sendo paraibana é a Primeira Dama (ou anti-Dama) de Natal. Impera nas lembranças dos seus contemporâneos e se faz presentes nos prostíbulos que ainda resistem nas periferias da cidade ou travestidos de casas de "drinks" nos bairros mais nobres.
Maria Barros é citada no filme For All - O Trampolim da Vitória (vencedor do Festival de Gramado em 1997, com os prêmios de melhor filme brasileiro, melhor filme do júri popular, melhor roteiro, melhor direção de arte e melhor trilha sonora de filme brasileiro), de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz. O filme retrata a cidade do Natal em 1943 quando a base americana de Parnamirim Field, a maior fora dos Estados Unidos, recebe 15 mil soldados, que vão se juntar aos 40 mil habitantes da cidade.
Para a população local a guerra possuiu vários significados. A chegada dos militares americanos alimentou fantasias de progresso material, romance e, também o fascínio pelo cinema de Hollywood. Em meio aos constantes blecautes do treinamento antibombardeio, dos famosos bailes da base aos domingos, dos cigarros americanos, da Coca-Cola e do vestuário estavam os sonhos natalenses. Sem questionamentos, "Maria
Boa" foi uma das principais atrizes no elenco desse belicoso teatro. A Primeira Dama Maria Boa...
José Correia Torres Neto
Natal-RN, 17 de outubro de 1947
Estudo de gestos
Os nossos gestos com a mão, braço, cabeça, significam atitudes de
inteligência, pensamento, frases, opiniões, têm sua história através do
tempo e não foram inventados por quem está empregando naquele momento. O
prof. Hermann Urtel, da Universidade de Hamburgo, estudou esse
“Gebardenspraihe” assim como F. H Cushing o fez com gesto da mão auxiliando
a conversação Manual Coniepts. Ninguém fala sem gestos. O gesto é uma
linguagem auxiliar, instintiva, natural, indispensável. Cláudio Bastos, o
folclorista e filósofo português falecido há dois anos no Porto, publicou
dois estudos curiosos na espécie: — Linguagem dos gestos em Portugal e
Gestos com a cabeça. Essas sing-langage ainda não merecem pesquisas maiores
no Brasil, João Ribeiro, que me conste é o único (Curiosidades Verbais,
XVIII), com um artigo de jornal. Certos gestos têm uma convenção quase
universal – expressando uma determinada imagem. Bater com palma da mão na
outra é aplaudir. Pôr a língua de fora é insultar. Por que? Esses gestos têm
milhares de anos de existência protocolar, valendo o que valem hoje. Há
dezenas de séculos convencionou-se sua significação. Não houve lei nem
exigência executiva. Por idéias religiosas o gesto ficou sendo essa ou
aquela imagem. E até hoje resiste, imperturbável. Ninguém os aprende nos
livros mas na vida. Desde crianças aprendemos seu uso, e nossos filhos
também. Assim, ad imortatitatem... Há dias, numa manhã de chuva, um
automóvel salpicou o menino que vendia pirulitos. Ficou parado, ruminando a
raiva impotente. Do outro lado da calçada um companheiro do mesmo tope e
função, balançou para ele a mão espalmada na altura da orelha. O agredido
arrancou, como um cavalo de raça, perseguindo o opressor para desagravar-se.
Não houve uma só palavra. Um gesto bastou para provocar a guerra.
Houve, como sabem, um poeta latino chamado Aulus Persius Flaceus que
morreu em Roma no ano 62, depois de Cristo, tendo apenas 38 anos. Na Sátira
Primeira, versos 58-60, ele elogia o Deus Janus por ter dois rostos, um para
frente outro para traz porque ninguém poderá ridicularizá-lo pelas costas. E
cita, entre gestos proibidos: — “Nee manus auriculas imitantes, est mobilis
altas”. É, exatamente o que o menino fez, neste ano de 1947, na avenida
Junqueira Aires, na cidade do Natal. Imitou com a mão os movimentos da
orelha do burro!... O mesmo se fazia, há vinte séculos, em Roma.
PARA MÁRIO DE ANDRADE
O SOL LHE BATE DE CHAPA
D’UM BESOURO O BRILHO ESCAPA
BRANCO, NEGRO, OURO E MEL.
ROLA, RECUA E SE ATIRA
VOLTA, SE ENCOLHE E SE ESTIRA
O DORSO DA CASCAVEL.
O CORPO INTEIRO PALPITA
A PELE SE ARRUGA E AGITA,
A LÍNGUA FINA DARDEIA
E TREME E ESTORCE E AVANÇA
E ESTACA, E DEMORA E CANSA
ONDULA, VAGA, VOLTEIA.
SILVA, RONCA, BUFA E SOA
O MARACÁ QUE REBOA
E TUDO DANÇA NO PÓ.
ALONGA A BELEZA TOSCA
DA PELE QUE VAI E ENROSCA
E FICA TREMENDO SÓ...
O DORSO ACURVA, SE ENROLA
COMO O FIO DE UMA MOLA
INCHA, SOPRA, ENGORDA, CRESCE,
SOBE, PARA, VOLTA E CORRE
O BRILHO NO LOMBO ESCORRE
VIBRA, ESTALA, ESPICHA, DESCE...
VAI PARANDO O MOVIMENTO
O MARACÁ CEDE AO VENTO
E FICA SOANDO MAL.
DE PRONTO SACODE O LAÇO
COMO UMA MOLA DE AÇO
SUBINDO NUMA ESPIRAL.
INDA VIBRA, MEXE E BOLE
O CORPO ANEGRADO E MOLE
SUSTÉM O COMPASSO ENFIM.
CEDE A CADÊNCIA DA DANÇA
PARA O CHOCALHO, DESCANSA
E TUDO CESSA POR FIM.
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
Catedral do Assu
Chagas Lourenço
Li um causo do Poeta Renato Caldas no Natalpress e lembrei da seguinte história:
Um feirante que vendia batatas no Açu, num certo dia de feira, não estava conseguindo vender nada, quando viu Renato Caldas.
- Ô seu Renato, venha até aqui, por favor!
- Pois não, meu amigo. Em que posso ajudar, disse Renato.
- Não tô conseguindo vender minhas batatas e queria que o sinhô disesse um velso, que as suas eu dô de graça.
Era tudo que Renato queria:
Batata, batata doce
Batata que o povo gosta
Um quilo dessa batata
Dá vinte quilos de bosta.
Depois disso, o feirante deu dois quilos de batata a Renato e, em menos de uma hora, vendeu todo o estoque.
POESIA TAMBÉM É MARKETING....
Poesia do mato
Tribuna do Norte
06/10/02
Franklin Jorge - Colaboração
Renato Caldas e Franklin Jorge
Transcorre no dia 8 de outubro o centenário de nascimento de Renato Caldas, autor de uma verve espontânea, irreverente e fecunda, que por muitos anos surpreendeu e deliciou gerações. Nascido no Assu, onde está enterrado, Renato forma com Fabião das Queimadas e Moysés Sesyom a tríade dos nossos poetas populares mais representativos. Inspirado pela circunstância, sua cultura era toda empírica.
Eu teria oito ou dez anos quando o conheci, freqüentando a casa dos meus avós à rua Moisés Soares 89, um casarão comprido, velho de mais de cem anos. Educado e amável, Renato tinha a fama universal de boêmio e de notável improvisador. Por essa época, em conseqüência dos achaques que prenunciavam a velhice, vivia confinado ao Assu, após uma vida de aventuras pelo mundo afora.
Em 1987, como parte de uma série jornalística que urdi para colocar a terra de minha infância em evidência, o entrevistei longamente para o Caderno de Domingo, suplemento que então se publicava em "Tribuna do Norte", onde fiz minha estréia no jornalismo local. As duas matérias incentivaram inúmeros telefonemas, cartas e bilhetes dos fãs do poeta, cumprimentando-me pela iniciativa de trazê-lo outra vez à vida. Também lhe dediquei capítulos em "Assu, mitologia e vivências" e "Almanaque do Assu", livros que continuam inéditos.
Já bastante alquebrado pela doença e pela velhice, o poeta continuava freqüentando diariamente o Bar de João Nogueira (por essa época já falecido), onde, num reservado, ao pé de uma escada, consumia de cada vez, metade de uma cerveja servida por Cândida. Após uma vida de boêmio impenitente, pagava com juros e correção os esbanjamentos da mocidade despreocupada e sonhadora. Consolava-o, conforme me confessou, não sem uma certa emoção, o afeto e a dedicação de Dona Fausta, com quem se casou e foi feliz.
Nesse que seria o nosso último encontro, Renato contava 85 anos e, apesar da má saúde, conservava a memória e a lucidez. Ele me fez então algumas revelações surpreendentes, autorizando-me a usá-las de acordo com meus interesses de jornalista empenhado no resgate da cultura potiguar que se diluía sem que nenhuma instituição lhe aplicasse qualquer freio.
O poeta ainda se ressentia de um episódio que lhe ocorrera em 1940, embora não guardasse ódio de ninguém, sentia profundamente o desgosto de ter sido chamado de "vagabundo" pelo deputado Theodorico Bezerra ao recusar o exemplar autografado de "Fulô do mato", atualmente, na sétima edição. Disse-me também que, ao contrário do que se contava, jamais estivera pessoalmente com o governador Carlos Lacerda, não obstante ter escrito os versos que deram margem a esse equívoco.
Renato contou-me ainda que a sua noite de núpcias com Dona Fausta fora adiada em quinze dias, por causa de uma "despedida de solteiro" promovida por seus amigos, que o levaram de casa após a cerimônia na matriz de São João Batista, padroeiro do Assu. A noiva já havia se deitado quando ele voltou, altas horas, apenas para pegar o violão...
Amigo do poeta Jorge Fernandes, na época um dos sócios e depois o único proprietário do Café Majestic, de onde saiu para uma sinecura numa repartição pública, Renato tinha um vago parentesco com Luís da Câmara Cascudo, que certa vez, por motivo que ele não lembrava mais, o chamou de "filho da puta". Donana Cascudo, muito aflita, repreendeu imediatamente o filho mimadíssimo. "Não diga isto, Luís; Renato é filho de uma boa mãe e nosso parente"... Tudo isto ele me contava numa voz lenta e cheia de pausas que não prenunciavam nenhum bem.
Quando já me despedia, ele levou-me até o terraço da sua casa, na praça Pedro Velho, e voltou a tocar na questão da velhice, tema que o obsediava. Aí me fez anotar uns versos que improvisara havia pouco, no Mercado, em resposta aos conselhos que o poeta João Fonseca lhe dera a propósito de doenças e terapias. Ei-los: Prisão de ventre, quiabo.../ Cerveja preta ou Pitu.../-- Tomei até o diabo./Só falta tomar no c...
Quando prefeito do Assu, em 1993, Lourinaldo Soares quis fazer um memorial em honra do poeta, falecido não fazia muito tempo. Coube-me então a tarefa de organizar e classificar os papéis de Renato, que se resumiam a umas poucas cartas escritas durante seu noivado com Dona Fausta e uma ou outra fotografia. Não havia nenhum livro, nenhum manuscrito; nada, enfim, que justificasse a criação de um memorial. Da sua copiosa produção, dispersa ao longo dos anos, não restara nada.
Quando a palavra não pode
traduzir a dor da gente,
então a lágrima acode
E diz tudo quanto sente
Tanta dor o mundo invade
Que está certo quem nos diz
Que a própria felicidade
Tem medo de ser feliz
Tu sangras? Não fiques triste
Em toda estrada há espinho
Mérito é o de quem insiste
E reinicia o caminho
Quando Deus criou o mundo
Das praias fez-se rainha
Meu nome é doce, profundo
Nome de embalo: Redinha
O Mártir da Galiléia
Esta verdade traduz:
Não morre nunca uma idéia
Mesmo pregada na cruz
Edgar Allan Pôla
Na sinuca de pano verde desbotado, o velho Helmut põe a bola branca mais uma vez na cassapa. Esbraveja, bate o taco contra a mesa e solta um palavrão impublicável. A gargalhada é geral. Jottoh Desmoulin toma-lhe o taco e anuncia a sentença dos derrotados: perdeu, sai! Coisas de quem sabe. Doutor Aírton abre outra cerveja para o capitão Dennis Touran, enquanto Leninha reclama da quinta saideira chegada à mesa. Satisfeita, Sandra Shirley toma a oitava Brahma paga pelo apaixonado e inebriado Volontê, que sonha possibilidades.
O escultor Jordão barganha com Paulinho pagamento para a conclusão do pórtico central de entrada do bar. Toma outra e comenta a frescuragem das meninas em festa - Gardênia a comandá-las. Ramos anuncia show de Carlinhos Bem no seu bem cuidado espaço cultural, o Balalaika, também de Antônio Carlos, do Sinte, em conversa com o homem da CUT, Zizinho, que, rápido, toma rumo do Bar do Pedrinho, em frente, à cata de um fígado acebolado. O professor Bira, concentrado no tabuleiro de xadrez, ensaia um mate no já quase grogue Cornélio Neto. Pedro Pereira diz preferir as damas e sai para uma conversa com Liége, empolgada com a apresentação do General Junkie, de Paulo e trupe.
A calçada em frente ao Meia Meia Quatro está apinhada de punks tatuados, todos proclamando liberdades e vida de amor e paz. Ao som de Janis Joplin, Help comanda a pista de dança num Cry, Baby, Cry. João Gothardo, cheio de poeira do Instituto Histórico e Geográfico, de Enélio Petrovich, conta suas descobertas do dia, enquanto Harrison Gurgel declama sua modernidade para Giovanna Pê. Tadeu Litoral, tateando entre as mesas, procura os óculos deixados não se sabe onde. Luzia pede um guaraná. Luciano de Almeida, um Macieira. Mathias circula no pedaço.
O movimento é crescente. Dorian Lima traz notícias do Profinc e da Capitania: Marise Castro, Rose Aimée, Rejane Cardoso, Carlos Furtado, Cínthia Lopes. Assis Marinho conta a Marcellus Bob como foi a queda de moto sofrida em não programada ida ao Seridó. Marcelo Fernandes tenta vender a um circunstante cartões de natal. Com uma pasta quase maior do que ele, Aires Marques adentra o recinto a procura de Dunga. Senta, pede a Clésia uma Antarctica e diz que vai ligar para a capeta Gigliola, a sua espera, na sempre atuante Babilônia. Sylvia dá mais um amasso em Fábio do PT e não muda de conversa: só tem ela pra mudar. É Fátima, Mineiro, Hugo, Juliano, não quer nem saber se a campanha já terminou. Moisés de Lima passa ao largo; traz notícias dos italianos Cacá, Fon, Lola e Carlinhos Moreno. Cida Lobo pinta no pedaço. Traz consigo, em animado papo canino, Raul da Alcatéia Maldita e Edinho da Banda Matilha. Catarina está arredia. Civone radiante com perspectivas teatrais.
Nino chega e puxa conversa com o velho Mossa pendurado em Andréa. Berg abraça mais uma e dá notícias de Caicó: finalmente Laia esqueceu amores antigos e namora desajuizadamente, dando o que falar na cidade. Na mesa ao lado, como se o assunto não interessasse, o careca e rechonchudo André Pereira escuta atento a conversa. No balcão de tamboretes altos, os fotógrafos Marcus Ottoni, João Maria Alves e Ivanísio Ramos trocam figurinhas sobre personagens da cena política e gargalham atropelos. João da Rua chega com conversas de festivais paraibanos de artes, traz notícias de Jommard Muniz de Brito - Natal é a Londres nordestina - e atrai a atenção de Ojuara, João Barra e Guaraci Gabriel, numa mesa onde também estão Astral, Hermano Figueiredo, Venâncio Pinheiro e Antônio Ronaldo conversando sobre saudosos Festivais do Forte.
Notícias de Plínio Sanderson? "Nenhuma. Parece mesmo que ganhou o prêmio dos sumidos. Ele, Moura Neto, Rose Marie, Carlos Gurgel, Analba Brazão e Carlos de Souza", comenta o poeta Alberon, numa roda onde se encontram Henrique José, Roberto Monte e Mosquito, do PCdoB, em conversas de direitos humanos, Sérgio Dieb, Chico Miséria e impunidade em pauta. De Miami, vem o cartão: Maurílio Eugênio está chegando com novidades "e Cristina Jácome à tiracolo", dizem os maledicentes. Escorado à parede, vendo a apresentação d`Os Quatro em companhia do esquerdista de esquerda wilmista Osório Almeida, Racine Santos fala do seu Auto de Natal a ser encenado quando da inauguração do Largo da Rua Chile (registre-se: luta de Haroldo Maranhão).
Falves Silva - é de Leide - traz o panamá na cabeça e diz que Jota Medeiros já não é mais o mesmo: "deu até pra fazer poesia linear..." Olguinha sorri e sai, feliz da vida, acompanhada pelos poetas Bianor Paulino e Paulo Jorge Dumaresc. Vão tomar uma no Nazareno. Com o Jornalzinho do Sebo Vermelho homenageando Myrian Coely debaixo do braço, Abimael Silva chega com o também sebista Ricardo e já entra procurando a sinuca. Com certeza, vai dançar a cada tacada desferida. Trejeitos a acompanhar trajetórias que buscam cassapas desvairadas. Nas paredes, a mensagem: sorria, você também é poesia. Ou outra: ser - inevitável razão da existência. Ambas, remanescentes do Dia da Poesia próximo passado.
O mural ontem pintado a carvão por Helmut já desbotou com a neblina caída a noite. Todos os demais afrescos já sofreram a erosão de parede de reboco antigo e pobre. É noite e, à noite, todos os gajos são parcos. "Às 22:40 horas, Eduardo Alexandre deve chegar", anuncia esperançoso Jottoh, sonhando com noite acervejada. O Meia Meia Quatro é osso ou isso: a própria etilicidade espelhada no estacionamento da tarde calorenta e interminável dos abismos profundos das trevas da noite. Todos são pardos, falam coisa com coisa e tomam o caldo da casa, iguaria única do vasto cardápio. Da Escola Sebastião Fernandes, vêm, além das Rainhas, os professores Paulo Moraes, Soares, Francisco de Souza, o negão da Refesa Zé Fernandes e Toinho Couto. Falam as últimas do "Sebastian News" e avaliam o desempenho do sindicato.
Numa mesa isolada, um solitário menestrel canta "Praieira dos Meus Amores". Ninguém ali conhece o Pavarotti, mas, com certeza, Francinha o ama. É a Sharon Stone do Jacumã.
Natal, dezembro de 1996
A feira do Alecrim é uma das mais tradicionais de Natal. Todo sábado, debaixo de sol e chuva, vem gente de todo lado para vender ou trocar mercadorias, dos mais variados gêneros. É, também, um passeio através do tempo. Em alguns momentos, entre barracas coloridas e vielas lamacentas, temos a sensação que estamos em um interior longínquo, onde o progresso teima em chegar. É um lugar perfeito para captar algumas imagens, que servirá para abrilhantar uma futura exposição fotográfica. A tarde cinzenta, nublada e com uma chuvinha tímida, obrigava a utilização de um filme com máxima sensibilidade. O ISO 400, Kodak Gold, é o ideal para essa situação. A câmera, uma Cânon EOS 300, com lente objetiva de longo alcance, já estava no ponto quando as primeiras cenas começaram a surgir. Na barraca de carne, um senhor cortava bifes com a perfeição de um “shushiman” tarimbado. Usava um boné branco, encardido pelo tempo, que cobria parte de um rosto cansado. Enquanto ele cortava e pesava a carne, segurava pelos lábios um cigarro cuja cinza já estava perto de cair em cima das carnes, que se encontravam no primeiro plano. Dependurados na frente da barrava, costelas, toucinho, lombo, carne de sol, e até a metade um bode completavam a moldura da foto.
Alguns passos à frente, no meio da passagem, uma família inteira em volta de um carro de mão, vendia alface, cheiro verde, cebolinha, limão e feijão verde. Duas crianças, um menino e uma menina, chamavam a clientela que passava para comprar naquela tenda improvisada. A menina, com um vestidinho de chita surrado, o qual já não lhe cabia mais, era mais esperta na lida com os clientes. Com as mãos cheias de cheiro verde e cebolinha, ela oferecia aos passantes por um Real, o “mói”. O garoto, usava apenas uma bermuda preta, furada debaixo do zíper, deixando escapar os “documentos” em qualquer movimento mais brusco. Além de chamar a atenção das pessoas para seu comércio, o menino ainda se oferecia para carregar as sacolas das madames. Atrás do carro de mão, uma senhora sexagenária desbulhava feijão verde pacientemente. Usava um lenço velho e úmido, de tanto coçar a cabeça, seus cabelos prateados estavam, em parte, para fora do lenço. Grandes olhos azuis, numa pele morena, castigada pelo sol, dava a impressão de que, em outrora, ela fora uma mulher bonita. Hoje, o rosto enrugado e maltratado pelo tempo, trazia marcas de sofrimento e cansaço. Sentada ao seu lado, uma jovem ainda na puberdade, toda risonha e simpática. Ela Trajava apenas uma camisa do Flamengo, grande o suficiente para servir de vestido, o qual levantava discretamente para amamentar uma criança recém-nascida. Panos de neném sobre as pernas, cobria as partes mais íntimas e protegia-lhe do frio daquela tarde chuvosa. As crianças com as mãos abarrotadas de cheiro verde, sentaram-se entre a velha e a jovem, todos preparados para o clique que iria eternizar aquele momento. Atrás das barracas, um casarão antigo chamava a atenção pela sua arquitetura secular. Dentro, uma mercearia que vendia de tudo um pouco. Sacos com os mais variados tipos de feijões, adornavam à entrada do comercio. Garrafas de cachaça, empoeiradas e cheias de teias de aranha, davam um ar de esquecimento as prateleiras. Uma balança do tipo Filizola, antiga e conservada, esperava os clientes para pesar o queijo, a manteiga e outras mercadorias vendidas avulso. Pilhas dos mais variados tipos de queijos do sertão, amontoava-se próximo a balança. Em cima de uma dessas pilhas, um gato siamês, dormia profundamente sobre uma barra de queijo de coalho, quando um freguês que ia entrando exclamou: “Seu João, tem um gato em cima do queijo!”. Seu João do Queijo, um senhor simpático, de aspecto interiorano e com extrema inocência falou: “Tem nada não, ele não vai comer o queijo, o bichinho é ensinado”. Disperso-me daquela cena com a sensação de ter captado as mais belas composições, rostos e costumes de uma feira livre. Já é noitinha, na parada de ônibus, o cego Aderaldo ainda empunhava sua sanfona, com melodias que ao longe se ouvia.
Sentado num banquinho de madeira, alegrava a espera das pessoas pelo transporte urbano, em troca de algumas moedas depositadas no seu chapéu de palha. Em canções e versos, ele entoava o pedido do poeta: “Já qui tu vai lá pra fêra, traga di lá pra mim, água do fulô qui chêra, um novelo e um carrin. Trais pra mim vãs brividades, qui quero matá a sôdade, fais tempo qui fui na fêra. Ai sôdade!”.
Alexandro Gurgel, Jornalista
Laélio Ferreira de Mello
Conheci Damasceno Bezerra pouco antes da sua morte, aí pela metade da década de 40. Morava na Praia do Meio, quando ainda não existia a Avenida Circular, hoje “Sílvio Pedroza”, que a construiu, (ou “Café Filho” ?). Casas de alvenaria, “de veraneio”, somente aquelas, poucas, da Ponta do Morcego ! Nada, ainda, de “Praia dos Artistas”. Fui, de bonde, com Papai, descendo ali, no início da ladeira, hoje dita “do Sol”. Tuberculoso, as pernas feridentas,alto,magérrimo, cabeleira despenteada, enfiado num velho e roto calção de banho, cheio de cana, recebeu-nos com alegria na casinha de taipa modestíssima, de pescador, o chão batido.
Em 27 ou 28 (Cláudio Galvão sabe precisar), ele, Othoniel Menezes e José Janini, numa carraspana terrível, vieram do Alecrim até ao Beco da Lama, para a saídeira, atirando na iluminação pública – escândalo monumental! Papai perdeu o emprego supimpa de Primeiro Oficial da Secretaria do Governo (de Zé Augusto); ele, Damasceno, o de Redator da “A República”; Janini, a família deportou para o Rio, onde se deu bem.
Era, o infeliz poeta, conversador admirável, pilhérico, fescenino!
Nunca conseguiu dinheiro nem apoio oficial para publicar um livro prefaciado por Othoniel e de nome belíssimo: “Dias de Sol”!
Não sigo as linhas do mando,
Nem mando as linha a seguir.
Sou ser.
Sou gente.
Presente da mãe-natureza,
Ciente,
Do seu bem-querer.
Bem quero.
Bem amo.
E ando
Sem me prevenir.
Apanho.
Não ganho.
Confesso:
Não sei se sei resistir !
Me armo de flores na mão.
No verso,
Eu sei,
Aqui não há solidão.
Há clima.
Há luta.
Esperança de não ser em vão
O canto,
A vida,
O dia de dor do poeta,
Dia de dor da canção !
Cabrito na festa de 10 anos da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências
Sobre a foto de muitos anos, amarelecida, desvendo passos e lembranças. O velho Beco da Lama, que eu também poderia cantar num dístico cheio de elipses mentais. A foto tem dez anos. Eu passava ali, repórter de um jornal. Amigos simples descobriam a cabeça, tirando o chapéu. Invariavelmente, meus amigos do Beco usavam chapéu. Chapéu de feltro, chapéu de pano, chapéu de palha, como havia chapéu para ser tirado à passagem do pobre repórter.
No bolso, pouco dinheiro. Mas havia riso na alma. Contava as notas e via que dava para comer um bife de fígado no “Restaurante Pérola”, onde comi os melhores bifes de fígado de toda a minha vida. Eram espessos, generosos, sangrentos e acebolados. E o garçom caprichava comigo, de quebra, uma enorme cebola extra deitada em um prato e dois vidros de pimenta: um de molho inglês, outro de malagueta. (Agora, lembro que, quando eu era menino, ouvia lá em casa os mais velhos chamarem o molho inglês de molho vegetal, e eu fiquei com uma curiosidade incrível para conhecer o mineral e o animal, até hoje...)
No Beco, encontrava Seu Pedro, o tanoeiro, mestre na arte de fazer bicas. Gordo, usava umas camisas enormes que pareciam verdadeiras bandeiras a envolver-lhe o corpo. Quando me via, abria o rosto num riso como sua alma e eu sabia que era hora de tomarmos uma meladinha no boteco de Nasi. Mestre Nasi, descendente de árabe, narigão a despencar-se sobre o rosto, era o dono das melhores meladinhas do Beco. Senão da cidade inteira. Caninha, mel de abelha e dois pingos de limão. Havia sempre para tira-gosto um caldo de feijão de alegrar os corações mais duros, ou uns miúdos de galinha que eram a graça da casa.
Até o mestre Nasi mudou-se do Beco. Esse Beco que, nas quebradas da noite, ficava soturno como uma alma penada, três ou quatro lâmpadas, soltas aqui ou ali, a iluminar a sua solidão. Era a noite dos bêbados trôpegos e das mulheres errantes. Na foto de 1968, o poste que não existe mais, com o velho abajur de ágata a guardar uma lâmpada cheia de enigmas. E parece que ouço o vento, solitário vento, correndo por ali, para desfazer-se num sopro só, lá adiante, na Rua Ulisses Caldas. Beco da Lama, nunca te louvaram, te louvo agora na lembrança que essa velha foto desvenda.
Extraído do livro O Menino e Seu Pai Caçador. Natal, 1980
Oreny Júnior
Beco da lama
Beco da fama
Cama dos excluídos
Berço dos alcoólatras
Sala dos catedráticos
Beco
Meu cartão postal
Meu jardim de flores
Beco da lama
O beco que clama por poesia
Por rebeldia
Beco do Nasi
Beco do gavião
Beco do major
Beco do Bosco Lopes
Beco das Kengas
Beco do lamento e da rosa
Perfumada do Pixinguinha
Beco
Meu ponto de encontro
Meu point
Meu observatório
Beco
Minha tela pós-moderna
Beco estreito
Mas comprido qual o Tietê
Rio de risos e lágrimas
Beco
Você é só nascente
Você não é poente
Você é dízima
Você é infinito
Beco
Meu eterno Beco.
por J. MEDEIROS
... remonta aos nossos ancestrais, o "Grupo G", antecessores dos índios Cariris, Potiguares, Paiacús, Janduís, que expressaram o seu imaginário poético através da iconografia impressa nas paredes das cavernas, a exemplo do grande poema-mural, do lajedo de Soledade, na chapada do Apodi, Rio Grande do Norte. Seria o poeta baiano Gregório de Matos, o pioneiro da nossa visualidade poética, ainda no século XVI.
O artista/correio Paulo Bruscky, autor da importante mostra de "Poesia de Vanguarda do Nordeste Brasileiro", ocorrida em 1995, em Recife, João Pessoa e Natal; descobre os poemas acrósticos, de Frei João do Rosário, datados de 1753, e cita mais adiante o poeta piauiense "Da Costa e Silva", o mais inventivo simbolista brasileiro, sem esquecer um determinado soneto do baiano Castro Alves, precursores da nossa poética visual.
Em 1927, Câmara Cascudo edita através da Typografia d'A Imprensa, o marco zero da poesia marginal dos setentas, o revolucionário "Livro de Poemas de Jorge Fernandes", em que evidencia-se a invenção semântico/formal, o objeto
(precário) como expressão meta-irônica, além da forma caligramática com que grafou o verso "Suspensa...", no poema "Rede".
Em 1941, é publicado o livro "Poemas de Bolso" do poeta/pintor pernambucano,Vicente do Rego Monteiro, autor do "Poema 100% Nacional", de nítido caráter visual conceitual, no mesmo ano em que o alagoano Jorge de Lima produzira as suas poesias foto-plásticas. Em 1952, Rego Monteiro publica em Paris o livro "Concreción", poemas-minutos contemporâneos do potiguar, José Bezerra Gomes, atentando para uma antropofagia oswaldiana de ascência minimalista concreta.
Nos anos 1957/59, foram realizadas duas mostras de poesia concreta no Estado do Ceará, tendo à frente o poeta José Aucides Pinto. Entre os poetas nordestinos que participaram direta e/ou indiretamente do movimento concreto, podemos citar o maranhense Ferreira Gullar, autor do neo-concretismo; o baiano Clarival do Prado Valladares; o alagoano Edgard Braga e os pernambucanos Manuel Bandeira, Pedro Xisto e Joaquim Cardoso. No Rio Grande do Norte, o poeta Luiz Rabelo produz o livro "O Espaço Concretista", em 1957. O poema "Lãmina" antecipa em quase uma década as futuras experimentações visuais/processuais, em que o poeta expressa conceitualmente o branco absoluto, em plena sincronia suprematista malevitcheana.
Em seu livro "Por uma Vanguarda Nordestina", Anchieta Fernandes discorre acerca do "Grupo Dés" (homenagem mallarmeana), que em dezembro de 1966 "anunciava o lançamento da Poesia Concreta " no Estado do Rio Grande do
Norte, "a I Exposição de Poesia Concreta do Natal, reapresentando poemas-cartazes de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Wlademir Dias Pino, Ronaldo Azeredo, Edgard Braga, Osmar Dillon e José Lino Grenwewald e apresentando poemas dos norte-rio-grandenses Nei Leandro de Castro, Dailor Varela, Luis Carlos Guimarães, João Bosco Almeida e Anchieta Fernandes".
"Depois de um ano de atuação/criação da Poesia Concreta no Rio Grande do Norte, estava preparado o terreno para o surgimento de pesquisas mais amplas, ou seja: para um novo movimento revolucionador do campo operatório do poema, além da literatura, além dos limites estruturais da Poesia Concreta. Em 11 de dezembro de 1967 simultaneamente com o Rio de Janeiro, acontecia em Natal a primeira exposição do Poema/Processo, denominada entre nós com o título de "Explo-2".
Em 1970, o poeta cearense Pedro Lira lança através do Jornal do Brasil, o "Manifesto do Poema Postal". No início dessa década, surge o movimento internacional da Arte Correio, do qual participaram ativamente, do Rio Grande do Norte: J. Medeiros, Falves Silva, Carlos Jucá, Venâncio Pinheiro, Avelino de Araújo, Roberto Sant'anna, Carlos Humberto Dantas, entre outros; da Paraíba, Unhandeijara Lisboa, Pedro Osmar, Paulo Ró e outros; de Pernambuco, Bruscky e Santiago, Leonard Frank Duch, Montez Magno, Ypiranga Filho, Ivan Maurício, entre outros; da Bahia, Almandrade; do Ceará, Maynand Sobral, Hélio Rola, Bené Fonteles...
Foram muitos os eventos multimedia realizados no Nordeste, especificamente no "triângulo amoroso" Natal, João Pessoa, Recife. Festivais de Arte, intercâmbio de idéias, performances, entre outras ações. Data de 1975 a "I Exposição Internacional de Arte Postal", organizada por Paulo Bruscky, Daniel Santiago e Ypiranga Filho. Seguiram-se outras mostras e eventos postais. Foram criados os Cambiu (Centros da Arte Marginal Brasileira de Informação e União), tendo como suporte múltiplas publicações, como Povis/Projeto (RN), Multipostais (PE), Karimbada (PB)... num permanente intercâmbio com o mundo.
A "Expoética 77" ocorrida em Natal, mostra comemorativa dos 10 anos de poema/processo veio revelar as novas tendências poéticas praticadas no mundo, evidenciando-se a Arte/Correio como meio (internet) da época propulsora desta grande rede (network) da atualidade.
Um ano após, 1978, J. Medeiros realiza o "Poema por Telefone", censurado. Em Recife os "10 anos de poema/processo foram comemorados antecipadamente em 14 de março (Dia Nacional da Poesia), com o projeto "Poesia Viva", idealizado por Paulo Bruscky e Unhandeijara Lisboa. São inúmeros os eventos realizados, que aqui não caberia mencionar. De passagem, podemos citar momentos importantes, propulsores de novas práticas poéticas, a exemplo dos Festivais de Inverno da Unicap, em Recife e os Festivais de Artes do Natal. Em 1982 acontece o I Seminário de Semiótica e Arte na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a criação do Setor de Multimedia, do NAC/UFRN e em seguida, 1983, a I Multimedia. A década de 80, portanto, se caracterizaria com essa forte e atuante presença dos multimeios artísticos: art door, vídeo art, computer art, intervenções urbanas...
Durante a década dos noventas, dois importantes eventos marcaram o nosso panorama poético. O primeiro, foi a Mostra Nacional de Poesia Visual (1995), realizada na Galeria Conviv'art/NAC/UFRN e que teve como curadores J.
Medeiros, Bianor Paulino, Falves Silva e Avelino de Araújo, culminando no ano seguinte com a Mostra Internacional (comemorativa dos 40 anos da Poesia Concreta), inaugurada por Décio Pignatari, sob a nossa curadoria. São muitas as experiências realizadas pelos poetas (multimedia) nordestinos, utilizando-se de todos os meios possíveis, dos processos mais primitivos aos mais contemporâneos nesta era da e-mail art.
Caberia destacar o vídeo "Galáxias", (Joel Carvalho e J. Medeiros), uma versão "estrutural" do poema homônimo, de Haroldo de Campos. As instalações ambientais de Sayonara Pinheiro aliada a mais sofisticada poesia sonora do poeta experimental português Américo Rodrigues; ainda as experiências dos norte-rio-grandenses Henrique José, Franklin Capistrano e Fábio di Ojuara, e os experimentos eletro-acústicos de Carito e Edu Gomes. Em Pernambuco, surgem outros novos produtores, a exemplo de Murillo, Delmo Montenegro e Bruno Monteiro; Na Bahia, o poeta Almandrade continua atuante, com a sua proposta Conceitual, evidenciando-se toda uma tradição poética de vanguarda registrada nos números da Revista Código, editada por Erthos Albino de Souza.
No Piauí, podemos mencionar nomes como Francisco Miguel de Moura e mais recentemente Rubervan du Nascimento, que coordenou em 1994 a Mostra Visual de Poesia Brasileira, uma homenagem aos cinquenta anos do poeta Torquato Neto - ícone da antropofagia marginal dos 70's. Este quase-perfil cronológico aqui traçado vem afirmar toda uma tradição de vanguarda, desde a visão futurista do potiguar Manuel Dantas (ver conferência "Natal daqui a 50 anos") realizada em 21 de março de 1909, no mesmo ano da publicação do "Manifesto Futurista", originalmente no jornal Le Figaro, de Paris e logo em seguida, no Brasil, no jornal "A República", em Natal, através do supracitado autor.
Eis, a POESIA NORDESTINA DE INVENÇÃO.
O retorno dos filhos pródigos
Luiz Gadelha e Simona Talma, depois de uma "temporada de aventuras" em Salvador, voltam para Natal valorizando a cultura e o espaço conquistado pelo artista potiguar
Simona
Marcílio Amorim
Repórter
O Jornal de Hoje
A reclamação sempre foi generalizada: dez entre dez artistas potiguares são insatisfeitos com a cena cultural da cidade. Na área musical, apesar do campo e das possibilidades de trabalho serem mais amplas e a execução do seu fazer artístico envolver um aparato bem menos complexo do que artes como o teatro e dança, os músicos também fazem parte do grosso coro da insatisfação. De A a Z, todos têm um pouquinho do que se queixar. Falta de espaços para shows, baixos cachês, falta de reconhecimento do público, dificuldades com patrocínio e o desinteresse das rádios são algumas das reclamações.
A migração é comum na classe artística, muitos se cansam de tentar e partem - com seu trabalho, sonhos e talento nas costas - para arriscar uma carreira em outras praças. Este foi o caso da dupla de cantores Luiz Gadelha (Ex-Wellington Luys) e Simona Talma, que largaram tudo em Natal, para descobrir em Salvador que o nosso Estado não é o vilão da arte nordestina e que aqui se valoriza sim a arte que produz.
Luiz e Simona fazem parte da nova geração da música potiguar, têm um dos trabalhos mais inovadores da cidade, com uma proposta de composição apontada para o futuro e uma tendência forte a musicar poemas. Luiz Gadelha ainda era Wellington Luys quando lançou o seu único CD ("Flor de Mim"), em 2001, e logo em seguida passou uma temporada de dois anos no Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa ele trabalhou bastante, flertou com a música eletrônica e se deixou influenciar por ares mais cosmopolitas. Já Simona sempre foi parceira de Luiz em sua trajetória. Aluna do curso de música da UFRN, a cantora é novata na noite potiguar. Embora já venha maturando seu trabalho com uma veia forte de composição, a cantora só mostrou a cara e voz de verdade em 2003, com o show "A lua e eu".
A dupla partiu em direção a terra do axé em novembro do ano passado. "Foi tudo na aventura, tínhamos curiosidade em conhecer a cena baiana, para saber o que acontece com a música de uma cidade tão movimentada como Salvador", afirma Luiz Gadelha. O interesse girava em torno de gêneros específicos, como o Rock Baiano que revelou grupos como Penélope e a cantora Pitty e num passado mais distante, mudou o rumo do rock and roll tupiniquim com o performático Raul Seixas; sem falar na MPB temperada com dendê de Caetano, Gil, Gal, Bethânia e os Novos Baianos, todos influenciadores do trabalho dos dois artistas.
Na bagagem, violões, letras, força de vontade e duas demos, uma de cada. E assim a dupla partiu rumo a 'terra da felicidade', como dizem os próprios baianos. Não havia expectativa exata, mais sim uma disposição de viver outras coisas e talvez entabular uma carreira numa capital mais próspera musicalmente do que Natal. "Não fizemos contatos prévios e nem buscamos informações. O que sabíamos não nos dava segurança", afirma Simona Talma.
A época escolhida não foi das melhores, o início do verão e a proximidade do carnaval - a folia baiana começa muito antes do reinado de momo, quando não dura o ano inteiro - descaracterizam o cotidiano da cidade. "Chegamos numa época complicada", relembra o cantor. Mesmo assim, os dois alugaram um apartamento e foram à luta. De cara, eles notaram a ausência de MPB ao vivo nos bares que encontravam, mas logo conseguiram abrir o show do cantor de blues Júlio Caldas, sobrinho do 'Rei do Fricote' e pai do axé, Luiz Caldas. No restante dos meses eles fizeram uma temporada num bar do circuito underground do Centro Histórico do Pelourinho, o bar "Mercury"; mas qualquer ligação com o sobrenome da cantora baiana é mera coincidência. "Ficamos tocando no Mercury enquanto estávamos em Salvador", disse Simona. "O interessante é que de onde tocávamos dava pra ver uma quantidade gigantesca de pessoas passando para lá e para cá, parecia até uma espécie de trio elétrico", complementa Gadelha.
A cidade de Salvador realmente surpreendeu os dois cantores. O cachê não era lá essas coisas, os espaços para shows idem e não existiam possibilidades para a carreira da dupla. Tudo era tão difícil quanto Natal, quando não parecia bem pior. "A relação do baiano com a MPB é sem muito compromisso, tudo que envolve o gênero se concentra em pequenos guetos de admiradores. Talvez, seja a vertente baiana que menos se desenvolve musicalmente", afirma Luiz Gadelha, com sua nova visão.
Mas num ponto positivo a cidade supera Natal. O público baiano valoriza muito mais um artista desconhecido, agindo com curiosidade e com interesse a novos nomes, novos trabalhos e novas propostas. "A impressão que se dá é que eles prestam atenção de verdade, pois a cantora da calçada de hoje, pode ser a Ivete Sangalo de amanhã", diz Simona. Numa cidade tão artística e inspiradora, era de se esperar que o tratamento com a arte seja superior. "Quando alguém está começando, eles fazem questão de olhar", disse.
Desde o dia 24 de janeiro a dupla resolveu largar a carreira baiana e voltar para casa. "A gente precisou sair de Natal para valorizar alguns pontos da nossa cidade", diz Luiz Gadelha constatando a forte ligação do potiguar com a MPB. "Ficamos muito felizes quando voltamos a caminhar pela noite e vimos cinco bares seguidos com MPB ao vivo", completa.
Dos males o menor, a experiência deu uma reformulada e modificou a fase artística atravessada pelos parceiros. O tempo livre era inteiramente dedicado à composição. "A gente compôs muito, dá até para fazer um repertório só da nossa fase baiana", brinca Simona.
Luiz Gadelha
Retornando...
Sem sotaque baiano e com muita saudade de casa, a dupla desembarcou em Natal amando ainda mais a sua terra e com disposição para continuar o trabalho plantado na cidade que os viu nascer.
Luiz Gadelha e Simona Talma prepararam um CD Demo antes de viajar, mas que não foi divulgado nem lançado na capital potiguar. "A demo ficou pronta nas vésperas da viagem", justificam.
Em 'Apaixonada Poesia Música Louca', Luiz Gadelha encerra a fase iniciada em 'Flor de Mim', em 20 faixas. "Precisava mostrar outra faceta que não estava presente no disco, mas que hoje já não me representa mais", disse o cantor. O fato da demo ter 20 faixas e não ser tratado como um CD de carreira é prontamente explicado. "Chamamos de demo pelo descompromisso da gravação, não fizemos arranjos rebuscados, queríamos centrar o foco na letra e na poesia, sem exigências do público", define Luiz.
Entre as canções selecionadas, músicas próprias, parcerias com Simona, uma regravação do Roberto (uma das grandes paixões e influências musicais de Gadelha), outra de Fagner e diversas parcerias. Destaque para a música 'En mis brazos', de Simona Talma.
Já o primeiro registro fonográfico de Simona vem sob o título de 'Guarde para os dias de chuva', inspirada no título de uma canção da cantora Sylvia Patrícia. Nele, a potiguar experimenta o seu primeiro registro fonográfico oficial. "É a minha apresentação como compositora, precisava me mostrar" disse.
As treze faixas do disco são distribuídas em três parcerias, três regravações, uma canção de Luiz Gadelha e uma própria, além de poemas musicados dos poetas Paulo Leminski, Carlos Gurgel e Mário Quintana.
Os cantores têm uma parte do disco gravada em shows ao vivo e outra gravada nas dependências do Ícone Estúdio. É raro encontrar semelhança nos trabalhos dos dois potiguares, embora façam tudo juntos e tenha uma trajetória que se funde em vários momentos. "Apesar de interferimos no processo um do outro, cada demo é uma proposta. Temos carreira, objetivos e focos diferentes, apenas somamos força", deixa bem claro a cantora Simona.
Nos planos estão shows para divulgar a demo, "mas antes precisamos de mais respostas com relação ao nosso trabalho". A data dos shows será divulgada em breve.
Para os interessados, as demos não estão a venda. A dupla está distribuindo para as pessoas que realmente se interessarem pelo trabalho. Para tentar convencer e levar o seu, acesse o blog dos cantores e jogue o seu xaveco. O endereço é: www.simona.weblogger.com.br ou www.luizgadelha.weblogger.com.br. Contato para shows 9924-7707/3091-1269.
Nel Rio Grande do Norte si sta imponendo un gruppo non classificabile secondo la rituale distinzione in generi
el vivace panorama musicale del Rio Grande do Norte si sta imponendo qualcosa di nuovo ed originale: un gruppo non classificabile secondo la rituale distinzione in generi, ma che al contrario si burla delle classificazioni e delle schematizzazioni, in nome della fusão e del rifiuto dell’uniderezionalitá stilistica.
Rosa de Pedra, costituito da sette musicisti - sei ragazze e un ragazzo - colti e amanti della sperimentazioni, sa essere fusione di generi, poesia, impegno, gioco; ci offre in più una moderna versione giovane, allegra e spensierata, del filone musicale del Movimento armorial (movimento culturale non limitato alla musicale, ma alla valorizzazione in chiave erudita della tradizione popolare nordestina, ndr). Qui sopra e in basso alcune immagini di concerti del gruppo Rosa de pedra
Anch’essi, come i loro celebri precursori pernambucani negli anni 70, cercano di riprendere e valorizzare la musica popolare del Nordeste brasiliano, le cosiddette «radici popolari» della musica, attraverso l’incontro con la musica erudita e l’esecuzione strumentale dell’orchestra sinfonica. E la nostra impressione è che sappiano unire con estrema spontaneità questa sperimentazione musicale alla trasmissione e di messaggi impegnati, spesso di contenuto politico, sempre in modo poetico. Il tema delle profonde divergenze sociali ed economiche é affrontato in
`Passo da Pátria e Deus`. `Samba Forró Funk`, a dispetto del titolo, é il testo più politico, ma significative sono anche le parole di `Sugesta` e `Homen Peixe`, brani che affrontano il tema della marginalità.
Tra gli altri brani che hanno riscosso un certo successo vale la pena di ricordare `A Lavadeira` e `Brancas Flores`, che ci parlano di amore ed amicizia. `A doida`, che descrive scene di vita quotidiana, `Jerônimo e Coco da lagartixa`, dedicate alle differenze etniche e regionali. Rosa de Pedra cura interamente gli arrangiamenti, rifiutandosi espressamente di eseguire o registrare cover. E ciò nonostante la curiosità del suo pubblico nel vedere impegnato il gruppo nella reinterpretazione di successi altrui. Un gruppo composto dalla giovane Ângela Castro, voce e chitarra di accompagnamento, dalla bassista Cibele Guimarães, dalla violinista Tiquinha Rodrigues - l’anima sinfonica -, dalla chitarra solista Toni Gregório, l’unico ragazzo, nonché dalle percussioniste Bianca Maggi, Michelle Ferret e Concita Alves (quest’ultima imprescindibile mente politica ed intellettuale).
I sette musicisti danno vita ad uno spettacolo che trascende la tradizionale esibizione musicale e sa mescolare i più vari stili senza identificarsi in alcuno.
o. Un happening di ritmi e melodie da ballare, che sgorgano da voce, chitarre, percussioni, basso e violino, uno spettacolo che descrivendo poeticamente il nostro quotidiano ci fa ragionare e meditare sull’inquietudine umana. Ma come é nato il gruppo Rosa de Pedra? Lo abbiamo chiesto ad alcuni dei suoi componenti con i quali ci siamo intrattenuti al termine di un concerto. «Ha avuto origine sulle ali della poesia, attraverso la lettura di poesia del Brasile e del mondo intero - risponde Concita Alves -. É stato questo elemento lirico, a darci l’ispirazione per far nascere il gruppo. Certamente già ci conoscevamo, frequentavamo una scuola di musica, eravamo amici, ma l’elemento comune é stato proprio la poesia. Tutto é cominciato nel luglio 2002, poco più di due anni fa». Un nome
Affonso Romano de Sant'Anna
Há poemas montados como ladrilhos
sem vida e há aqueles que fluem
Posto que o nome deste suplemento é Prosa e Verso, hoje é dia mais de poesia do que de prosa. E gostaria que vocês lessem simplesmente alguns poemas sem qualquer comentário. Mas para que nos acostumemos aos poucos, e de novo, com a poesia assim exposta, introdutoriamente direi duas ou três coisas.
Outro dia recebi um livro de uma poeta de Natal, Iracema Macedo. Não quis ler a orelha. Livro, às vezes, é melhor assim, sobretudo o de poesia, você abre logo lá dentro e sente num único verso, num único poema, se a criatura tem poesia na veia ou se aprendeu a fazer poesia, ou nem isso. Então, eu nem sabia que Iracema, que tem lá uns trinta anos, era moça letradíssima, tinha até feito a dissertação de mestrado – “Idealismo e amor fati na estética de Nietzsche.” E levei um baque logo no primeiro poema:
AS VESTES
“Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços ”
Há poemas, há poetas nos quais a gente sente que estão trabalhando com ladrilhos. Vão colando palavras dificultosamente, numa montagem inteligente, apurada, ao final da qual a gente diz: “É, está bem feito, mas falta vida”. Tanto Mário de Andrade quanto Nelson Rodrigues já diziam que a “inteligência” tem estragado a obra de muitos autores. O próprio Mário, às vezes, foi vítima disto.
Diferentemente, há poemas, há poetas que não guaguejam, mas cujo texto flui e nos conduz. É que nesses casos a poesia está soprando do imponderável. E, às vezes, a coisa pode ser tocantemente simples como nos versos de Iracema:
DANDARA
“Eu só acreditava em Drummond:
‘o amor chega tarde’
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos”
Anotem. Não estou fazendo crítica literária. Estou lendo poemas com vocês. Estou lendo socialmente alguns poemas de uma poeta que ninguém conhece, a não ser a tribo dos potiguaras, lá no Rio Grande do Norte. E ao publicá-la aqui estou erguendo um monumento ao poeta desconhecido. Seu livro “Lance de dardos”, que reúne quatro opúsculos publicados desde 1991, vocês não o vão achar em livraria, porque o sistema, quer dizer, não é sistema, sistema é outra coisa, melhor dizer o esquema literário é perverso e nem sempre premia os melhores. Mas não é por isto que não vou citar essa Iracema, que nem conheço e que adoçou meus lábios com poesia.
Outro dia Nei Leandro de Castro, um dos caciques da tribo poética dos potiguaras mandou-me seu bom “Diário íntimo da palavra”. Ele que, entre outras publicações, tem um insólito livro de poesia erótica( “Era uma vez Eros”), enviou-me livros de outros bons poetas lá de Natal. Lembrei-me de outra colônia de bons poetas, lá em Aracaju, que Alberto de Carvalho apresentou-me no CD “A voz, o poema”.
Não, não vou citar nomes de poetas marginalizados. Isto já seria outra crônica.
Outro dia adverti numa entrevista, quando me perguntaram sobre essas três antologias de cem poemas/poetas do século XX, que se deveria fazer uma quarta antologia com o nome de muitos como Iracema. Seria o obelisco ao bom poeta desconhecido.
Não sei se ela vai desenvolver o projeto de uma obra poética. Estou apenas pinçando a poesia que sobrenada nesse arquipélago cultural cheio de ilhas de si mesmas exiladas. Poesia que dá prazer de ler.
E, para terminar, fiquemos de novo com a poesia de Iracema:
POEMA DO LOBO DO MAR
“Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?
Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?
Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar
Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?”
Jornal O Globo. Prosa e Verso, 14 de abril de 2001
Diário Íntimo da Palavra
TN 18.02.05
Nei Leandro de Castro - Escritor e poeta
Em 1986, conheci em Madri o poeta Pedro José Galván, casado com uma brasileira, publicitária, ex-colega minha, com quem Pedro aprendeu e aperfeiçoou o seu português. Desde então, trocamos correspondência. Antes da era da informática, antes dos e-mails rapidinhos como uma ejaculação precoce, escrevíamos cartas longas, derramadas, de quem não tem pressa nem receio de vírus. Uma das mais belas, tristes e longas cartas de Pedro foi quando ele se separou da brasileira minha amiga. Disse, entre outras coisas, que havia sido mutilado irremediavelmente, que a parte mais luminosa de sua alma havia sido arrancada, como um torturador franquista arrancava pedaços de suas vítimas. E concluiu dizendo: só viria ao Brasil outra vez quando encontrasse um amor à altura daquele que quase o leva ao suicídio. Dezenove anos depois, apaixonado por outra brasileira, Pedro anuncia por e-mail que está vindo ao Rio. De repente, eis que ele chega na companhia de Maria Mônica Lima, sua “grande e definitiva paixão”, como anuncia, os olhos brilhando. Maria Mônica sabe que é amada e aceita, sem ciúmes, as duas outras grandes paixões de Pedro José Galván: poesia e erotismo. O poeta, sempre generoso, me estende um presente que faz alterar minha pulsação cardíaca: uma “Antología de la poesía erótica española e hispanoamericana”, compilada por seu amigo e xará Pedro Provencio, edição Edaf, Madrid, 2003. Poemas que vêm desde a Idade Média até o século XX, distribuídos em 657 páginas.
Numa noite de vinhos e emoção, Pedro leu em voz alta poemas dos séculos XII, XIII e XIV, tão envolventes quanto as lusitanas cantigas de escárnio e mal-dizer. Passou por Lope de Vega e Francisco de Quevedo, grandes representantes do Século de Ouro espanhol, visitou García Lorca, Antonio Machado, Vicente Huidobro, apresentou autores de quem eu jamais ouvira falar, como o uruguaio Eduardo Milán, a mexicana Iliana Godoy, o argentino Jorge A. Boccanera. Foi uma festa, melhor, um festival de poesia. No dia seguinte, um vizinho invejoso me perguntou: “Quem era o artista que dizia poemas em voz tão alta? Pena eu não ter entendido nada do que ele disse.” No meio da noite de causar inveja, Pedro José fez uma pausa, bebeu umas taças de vinho, acendeu um charuto quilométrico e por fim me perguntou: “Agora me diga: como é que vai a poesia erótica brasileira?” Eu disse, não sem tristeza, que a poesia erótica no Brasil, para a maioria dos seus raros leitores, está no nível dos sites pornôs. Talvez uns degraus abaixo. Com certeza, menos prestigiada do que aqueles “peep shows”, exibições para voyeurs. O Brasil não tem nenhuma tradição de poesia erótica, parece até que não foi colonizado por portugueses que, como os espanhóis, cultivam a poesia docemente sacana desde a Idade Média. Não há registro de grandes poetas brasileiros expondo ao público, de peito aberto, sua sensualidade. Bernardo Guimarães (1825-1884), autor de “A Escrava Isaura”, fez duas tentativas: “O Elixir do Pajé” e “A Origem do Mênstruo”. Longos e medíocres poemas, verdadeiramente pornográficos, naquele sentido wildeano de que não há obras imorais, há obras mal escritas. A poesia erótica de Drummond, trancada a sete chaves até sua morte, não está à altura de sua obra poética. Em pleno século XXI, quando a intimidade sexual é escancarada em bancas de revista, nas telinhas da TV e do computador, o autor brasileiro de poesia erótica ainda é visto como um anormal, um tarado. Por conta do meu “Era uma vez Eros”, duas mulheres de amigos meus não me recebem em suas casas. Talvez tenham medo de eu impregnar de pornografia a sala, a mesa de jantar, a louça, o ambiente sacrossanto onde moram. Pedro me ouviu em silêncio, estupefato, depois gritou: “Yo no creo! Solo me resta emborracharme!” (Não acredito! Só me resta tomar um porre!).
Jorge Fernandes
Teima dos sapos...
Chiados dos ramos nos balcedos...
Chóóóóó... da levada...
- Noitinha -
Acocorada num cepo póes sobre os cabelos compridos
As primeiras cuias d'água: - choá! choá! choá!
A lua treme n'água remexida...
Rugue! rugue! das mãos esfregando as carnes rijas...
Um pedaço de canção alegra o banho...
E a teima dos sapos: - foi! não foi!
E a camisa é posta sobre a carne molhada e nova
E a sombra passa entre as árvores - ligeira -
úmida e morna -
Num pedaço de canção que alegrou o banho...
Bosco Lopes
O Potengi
ressona
murmura
e peida
as fezes
que vem
dos esgotos da cidade.
Hoje tão longe
de água pura
e cristalina que eu vi
ao lado de Rabelo e Newton Navarro
batizar Enêida
de amor e poesia.
Quem viver, verá.
Alex Gurgel
Pintura do capô do carro de Dunga, em dia de oficina de pintura nas adjacências do Beco da Lama.
Edgar Allan Pôla
Meninas são meninas e elas se sensibilizaram diante da conversa do turco Pedro Abech.
- Dia 19 é meu aniversário e, fora a asa, o coração, a lingüiça, essas coisas do churrasco e a bebida, o resto é por minha conta.
Cantados os parabéns, porque foram vários, elas tiraram de uma bolsa um cotizado presente para Pedrinho: um Balantaines.
Luciano de Almeida estava injuriado por conta dos Antigos Carnavais, a festa de Gutemberg Costa, que levara o povo para dentro da Capitania onde um bar monopolizava a venda exclusiva de isquincariol a um e cinqüenta, enquanto a turma do isonor estava, lá fora, vendendo outras marcas a um.
- Quando a banda chegou na Ribeira e fez a parada na Peixada Potengi, foi um absurdo. O cara me cobrou cinco contos numa meia dose de blaque e uaite... Quando reclamei, ele balançou o copo para o uísque descer e tentar me enganar.
Na verdade, a estória ficou por isso mesmo até que Serrão lembrou:
- As doses do turco também são como essa, Luciano. A diferença é que, com todos os tiques do mundo, quando a dose chega, já está devidamente balançada e o gelo já subiu.
Pedrinho mostra o presente que ganhou, dizendo que é para mais tarde e Luciano, então, diante de tal promessa, passa a sorver o seu professor vagarosamente, com muita moderação e longas pausas, esperando o Balantaines ser servido.
Ivone serve um creme de frango num prato médio de plástico e a festa tem seqüências sem anormalidades.
O turco, em seu aniversário, estranhamente, vez em quando, dava umas esquisitas mostras de generosidade. O assunto do dia rolava por conta do orelhão dos fundos da casa do padre. O bicho estava engolindo tudo quanto era cartão.
Humorado, Pedrinho não perdeu chance:
- Não sei porquê, mas esse orelhão tá com uma larica daquelas...
Só com dois contos miúdos no bolso e depois de uma conversa com Husseim no laricado, Luciano sugere:
- Pedrinho, sai uma dose de dois reais?
Dia de generosidade inconteste, o turco vira, abre a boca tortamente umas três vezes, faz que fala, mas não fala, se abana com a mão direita, com a esquerda, retorce a cabeça, dá de ombros, bota a ponta do pé diante do corpo, torce e retorce a perna e dá o veredito:
- Mas claro!
E chamando a consorte:
- Ivone, bote aí uma dosezinha para Luciano.
Atento, Eduardo não perdeu oportunidade para alfinetar o turco avarento.
- Tá vendo... Nem no dia do seu aniversário esse turco tem cura. Se fosse uma dose ao preço normal, ele diria: Ivone, bote aí mais uma dose para Luciano.
O turco, quando apercebeu-se da sutileza, ficou magoado diante da evidente constatação e encabulou. Diminuir sua generosidade era demais!
Mas o fato é que Luciano foi embora e o Balantaines ficou para depois:
- Na Sexta, a gente toma, Luciano...
© 2002 C.A. dos Santos
Texto revisado em novembro/2002
Em cada esquina um poeta, em cada beco um jornal. Assim é Natal, boêmia e cheia de bares, com poetas e escritores a dar com pau. Fui buscar na literatura referências a antigos bares natalenses. Garimpei o material relacionado abaixo.
Apesar de tantos bares e botecos, apenas a Confeitaria Delícia teve a primazia de ser imortalizada numa obra exclusiva. Trata-se do magnífico livro de José Alexandre Garcia, Acontecências e tipos da Confeitaria Delícia, ao qual dedico página exclusiva.
A vida boêmia ocupa boa parte da obra de Diógenes da Cunha Lima (Natal: Biografia de uma cidade), mas ele pouco menciona os nomes dos bares. Quando fala de Albimar Marinho, é um bar atrás do outro. Quando fala de Berilo Wanderley, menciona o bar do Nemésio, mas não diz como se chamava. Não seria Granada Bar? Alguém aí pode me confirmar?
Diógenes também fala do Bar da Tripa, e conta uma história muito engraçada envolvendo Zé Areia, barbeiro, boêmio, humorista nato, improvisador, satírico e epigramista. Era assim que Diógenes via Zé Areia. A propósito, José Alexandre Garcia fala bastante de Zé Areia, principalmente das suas estripulias na Confeitaria Delícia.
Vingt-un Rosado, com a sua insuperável visão editorial, publicou um pequeno trecho do diário de viagem do americano John dos Passos, quando este visitou o Rio Grande do Norte, lá pelos idos de 1962. Quando descreve sua chegada em Natal, ele diz: Descemos no hotel no centro da cidade. Consegue-se no bar um gim tônico [sic] pouco convidativo, mas não há sanduíches. Algumas pessoas de aspecto desanimador transpiram na entrada do hotel. Não almoçamos. São três da tarde e estamos famintos. Mas só conseguimos para comer algumas fatias de queijo seco. Sem pão. Pela descrição, suponho que John dos Passos esteja se referindo ao Grande Hotel, que era, à época, o melhor hotel de Natal, mas estava localizado na ribeira, e não no centro da cidade.
Boêmio por natureza, Augusto Severo Neto (ASN) refere-se a vários bares no seu agradabilíssimo Ontem vestido de menino. Situado na Tavares de Lyra, o Cova de Onça era um bar parecido com os aristocráticos bares portugueses do Rossio. Durante os anos vinte, trinta e quarenta servia cafezinhos, vermute, cinzano, quinado Constatinno, conhaque Macieira, tudo isso acompanhado de azeitonas e queijo do reino. Entre petiscos, aperitivos e muita conversa política, ficou o dito popular: conversa fiada foi o que fechou o Cova da Onça.
Royal Cinema, Rua Ulisses Caldas
O Café Magestic ficava em frente ao Royal Cinema, bem ali na esquina da Ulisses Caldas com a Vigário Bartolomeu. Quando ASN o conheceu já dava ares de decadência: semi-pardieiro de água-e-meia, teto metade forrado com tábua de forro de pinho-de-Riga, metade de telha vã, com muita teia, caibros redondos, viga e tesouras descobertas. Deve ter tido melhor vida, senão não teria o lugar que tem no nosso imaginário. Quem conta sua história detalhadamente é João Amorim Guimarães em Natal do meu tempo. João Amorim nos informa que no local do Magestic existia, no início do século XX, o Café Potiguarânia.
Augusto Severo Neto também escreve sobre o bar do Hotel Internacional, o Wonder Bar, o OK Bar e o Zepelim, dos quais me ocuparei na próxima atualização desta página.
Falando sobre Os americanos em Natal, Lenine Pinto refere-se ao Café O Grande Ponto, no centro da cidade, e ao bar do Grande Hotel, na Ribeira, aquele mesmo que deve ter sido visitado por John dos Passos.
O Café São Luís, de tantas histórias, é mencionado por Jeanne Fonseca quando descreve o Grande Ponto.
Em O menino e seu pai caçador, Berilo Wanderley faz um comovente obituário do Bar e Confeitaria Cisne e uma elegia em prosa para o Restaurante Pérola e para o Bar do Nasi, ambos no famoso Beco da Lama.
a Luiz Rabelo
Vou-me para Tegucigalpa
Ou melhor para a Jamaica
Num pau-de-arara analfabeto.
Vou até lá que avião e trem andam repletos caindo.
Onde deve haver mulheres-flores frutas
É Tegucigalpa
Não tem perigo de ser samba ou rumba
Lá não tem rádio nem livro nem jornal
Nem bacharel nem médico nem imortal
Nem muita honra em conhecê-lo
Lá tem é banana e macumba e da boa e sem gelo.
Tegucigalpa nem sei bem onde é.
Mas só o nome quente e gostoso melhor que café
E de nomes é que se vive.
Dormir lá debaixo de que árvores sem Rousseau
Com um terçado bem afiado à vista dos canaviais.
Tegucigalpa sem literatura
Sem contradanças nas almas das criaturas.
Vou me mudar para Tegucigalpa
Que só no México tem o complexo da rima.
Mando virar o caminhão pau-de-arara de letras para cima
Não volto mais nunca mais.
Porém muito melhor é que me vá para Jamaica
Tanto faz.
Othoniel Meneses
Era Maria
e o mar batia
maramando
noite e dia
e o mar
mareou Maria
no seu
corpo de pedra
em sua
alma metálica
o mar bramia
mariando
maramando
malamando
Maria
noite
e
dia.
BOSCO LOPES - Nasceu em Natal-RN em novembro de 1949. Participou ativamente do movimento do poema processo. Tem publicado PROJETO ZERO; ANTEPROJETO e seu livro de poesias CORPO DE PEDRA, Edições Clima (1987).
Alex Medeiros
O Jornal de Hoje
16.02.05
A esquerda foi quem começou a considerar as elites um mal para o País. Dos anos 60 para cá, virou moda atribuir a elas todas as desgraças em solo pátrio. Bater nas elites, mesmo sem saber identificá-las, transformou-se em figura de linguagem dos políticos de esquerda ou de direita, assim como o termo "com certeza" incorporou-se ao parco vocabulário de celebridades e novos ricos. Nos dois casos, servem como máscaras a tentar esconder visível ignorância.
Nos países avançados, elite é tudo aquilo que está na ponta da corrida do desenvolvimento, a lanterna que alumia os caminhos da patuléia que segue atrás. O habitat natural das elites se encontra em terrenos férteis de universidades e instituições políticas, dois locais que no Brasil perderam ciência e se contaminaram com o empirismo (leiam o artigo de segunda-feira), terrenos ricos onde cresceu o lodo da ignorância. No primeiro, o símbolo de avanço é Lula e suas cotas no vestibular; no segundo, a referência maior passa a ser Severino Cavalcanti.
O novo presidente da Câmara, que surrou o governo do PT numa eleição histórica, é o efeito "Miguel Mossoró" em âmbito nacional, como lembrou ontem o concluinte de Direito, Rodrigo Levino, via e-mail. A semelhança eleitoral existe, mas nosso Miguel pelo menos é um gozador e está longe do atraso moral e do fundamentalismo católico do pernambucano do baixo clero. Mas a eleição de Severino enriquece a cenografia de ópera bufa do Brasil-espetáculo, pátria de socialites incultas, o "País do Big Brother", a "Nação do Operário Potrão".
Mas Severino Cavalcanti não está tão longe assim dos seus concorrentes no quesito "espírito público". Tanto o derrotado Greenhalgh, quanto o rebelde Virgílio também defenderam aumento das mordomias parlamentares. E nessa onda nepotista, a classe política não surfa sozinha. O respeitável ministro Nelson Jobim, falastrão de carteirinha, é um dos primeiros que rezam no "venha a nós o nosso reino e seja feita a nossa vontade".
Esquerda e direita, com a fidelíssima ajuda da mídia fútil, nas últimas duas décadas "severinaram" o Brasil. O que é na presente legislatura a representação política e cultural na Câmara de Vereadores de Natal, senão um surto de "severinização"? Vivemos o day after da virose "lulista" que nos quebrou a eficiência imunológica contra o atraso. Mas o discurso oco contra as "elites" nunca identificadas cai como uma luva na retórica idiota das lideranças devassas, da imprensa ululante (como diz Neumanne Pinto) e das autoridades amorais.
O Brasil precisa é recompor a elite, escapar das ideologias da miséria, tirar de seus professores e cidadãos de nível superior a condição financeira proletária. Desinverter os papéis, onde quem pensa com dignidade conta nos dedos a cesta básica da semana, enquanto num plenário imbecil uma besta eleita roda nos dedos a chave da Pajero que lhe leva até o banco mais próximo, onde está bem escondido o seu "pão nosso" amassado pelos diabos da hipocrisia "democrática".Festejem, vibrem, regozijem. O Brasil derrotou as elites e segue célere no rumo do desenvolvimento, estamos conquistando o planeta com meia-dúzia de campanhas publicitárias medíocres para programas de governo idem. Atingimos a redenção do sofrido povo nordestino, temos um pernambucano no Planalto, outro na Câmara, um alagoano no Senado, um baiano com a chibata da Cultura e centenas de colunistas nadando na transposição do vernáculo. Que o mundo assista, ao vivo, a primeira conversa entre Lula e Severino, resgatando antigo prefixo: Pernambuco falando, besteiras, para o mundo.
Do povo faz Galeria
Alexandre grande bardo
Com seu prenome Eduardo
de renomada mestria
das artes faz alegria
com o seu quadro no ar
onde posso pendurar
a mais fina abstração
com as tintas da emoção
na piscina azul do mar
João Gualberto Aguiar
Newton Navarro
Dois, dois
O pilão batucando
Dois, dois
A pancada a soar
Dois, dois
Duas mãos arremessam
Dois, dois
Outra mão para o ar
Dois, dois
Na madeira furada
Dois, dois
A farinha a pisar
Dois, dois
Carne seca moída
Dois, dois
No pilão a socar
Dois, dois
Mandioca plantada
Dois, dois
Farinhada desfez
Dois, dois
Carne ao sol espetada
Dois, dois
Carne verde de rês
Dois, dois
Mandioca em farinha
Dois, dois
Carne ao sol ressecou
No pilão misturadas
Dois, dois
Em paçoca virou
Dois, dois
Meu irmão, camarada,
Dois, dois
Se abanque pra cá
Dois, dois
Seu café no caneco
Dois, dois
Pra paçoca provar
Dois, dois
E também não se esqueça
Dois, dois
De outra coisa dizer
Dois, dois
Sem banana a paçoca
Dois, dois
Não adianta comer
Dois, dois
E assim explicada
Dois, dois
Na toada ficou
Dois, dois
A paçoca gostosa
Dois, dois
Que Sinhô Rei me mandou!
O MEU PENSAR
JÁ SE FOI O TEMPO
NÃO SE ACOSTUMA
VAI LÁ LONGE
DENTRO DO ÓRGÃO DO VENTO
DESCOBRIU A ECLOSÃO TEMPORÁRIA
DESVENDOU AS OLHEIRAS PROFUNDAS
SE INSTALOU FEITO ADULTO
POR CIMA DE SÍLABAS
PARÁGRAFOS
PONTOS FINAIS
CARLOS GURGEL
AVISOS E APELOS - 1980
ÁGUA, SÊMEN, AQUA.
INTACTA. VÊ A FUSÃO
DE ÁGUA E AQUA.
A MÃO UNE AS ETAPAS.
SUA TÚNICA DE ÁGUA
RASGA-SE AO SOPRO
DA MÁGICA. MOLÉCULA
DESIDRATADA. NA FAÍNA
PRECISA DAS ÁGUAS
MOVE-SE O ÓCIO DO
TEMPO; SEU SOL
DE GASTA SEDE.
ÁGUA: FLANCO ABERTO
A CORES. A BRISA QUE
A DISSOLVE É MOVIDA
POR MOINHOS TARDOS.
- ARDEM AS PEDRAS,
NO EXÍLIO.
SANDERSON NEGREIROS
FÁBULA FÁBULA - 1990
Eduardo Alexandre
Quando os versos se fizerem escassos,
Quando a voz se fizer omissa
Ou ébria,
Guia-me de novo ao caminho da arte.
Faça-me rever os mestres;
Ouvir as mais ternas canções;
Caminhar entre as criancinhas.
Quando não mais for de esperança o meu canto;
Quando não mais servir de alento o meu verso,
Ordena-me então que pare:
Reveja o quadro sócio-econômico da gente;
Reviva a sua cultura;
Analise a sua praxis política.
Quando não mais for necessária a canção;
Quando os tempos forem chegados;
Permita-me então que pare.
Descanse nos braços dos meus amores
E que mesmo para deleite
Continue, eu
A escrever meu canto !
Clara de Góes
Era uma vez um homem. Era uma vez o frio. Era uma vez um homem que tinha frio. Não. Era uma vez um homem que tinha medo de ter frio. Era uma vez um homem que sabia que tinha frio mas que não era ainda. Havia uma brecha.... uma brecha no tempo, uma espécie de defasagem... de tempo... no homem, no clima, na geografia. O frio viera antes das condições atmosféricas de temperatura e pressão. E ele sabia... sabia do frio. Do frio antes do tempo que começava nele... nos ossos dele. E o homem que era grande, o corpo coberto por abundantes camadas de gordura; o homem que era como um leão marinho, desses de livro, que se espreguiçam em icebergs como se fossem dunas... tinha frio. E o que pedia (ou perdia) o homem que tinha frio, que tinha medo de ter frio, e que sabia do frio que não era ainda? Casacos? Capotes? Couro? Lã? Não. Ele pedia um par de meias.
A família decidira. Era preciso mandar a encomenda. Atender aquele último pedido... um par de meias... um contato ainda depois da prisão e antes do exílio. Mas como? As embaixadas estavam vigiadas, quem entrava ficava marcado... Mas era preciso, um par de meias... E ele lá. Na embaixada do Uruguai, à espera de um par de meias. Alguém teve a idéia, uma visita. A visita da afilhada. É criança, o risco é menor. Ela vai, leva o par de meias, toma a bênção... mais uma vez. Quem sabe... isso não se sabia. Não se sabia mas se temia e ninguém dizia e foi mesmo, a última vez.
Decidiu-se. Ia a menina. Natural, que fosse ver o padrinho, se despedir.
A menina tinha oito anos, era franzina e já aprendera o frio. Carregava-o no bucho, nos ombros, no olhar... Ela não sabia, mas sentia. Ele sabia e antecipava. E eu fui. Ela que, naquele tempo, era eu, foi.
Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... o jeito de coçar o queixo (mais a papada do que o queixo) com as costas dos dedos, um olhar... alguma coisa do homem imenso como um leão marinho que se espreguiçava em dunas... as dunas de Natal. E era tanta coisa que ela devia levar e não se esquecer de lhe dizer, e não chorar, e lhe dar coragem, e tanta coisa e tão pequenos eram os ombrinhos dela, que ela se esqueceu de quase tudo. Esqueceu-se de olhar pra ele, de ter coragem, de dizer... do medo, do medo de ter medo, do medo de esquecer (quando esquecer era um jeito de trair), e ela chegou lá e fixou-se nas mãos. Alguma coisa a impedia de olhar nos olhos dele. Tinha medo do que podia ver, adivinhar, intuir, de ver fraqueza nele... nela. Então se fixou nas mãos. Prendeu-se nelas. Eram grandes e tombavam sobre os joelhos que eram largos. Ele estava de cabeça baixa, talvez porque ela fosse pequena e esse fosse o jeito de olhar pra ela, talvez por lhe pesarem os pensamentos, talvez de cansaço... Ela acompanhou-o no gesto, no modo, na inclinação da cabeça, na vida que escorria pela brecha entre a geografia e a história daquele instante que seria o último, o último encontro de um leão marinho naufragado e uma menina cuja infância não veria o mar.
Nas mãos dele, a mãozinha dela tantas vezes se abrigara, se perdera, se encontrara. Nos comícios. Nas festas de São João. Nos palanques, nas danças, num gosto de povo com cheiro de intimidade que ele lhe deixara. “Meu padrinho”, ou, apenas, “padrinho”... era como um nome mágico, uma espécie de “Abre-te Sésamo” diante da vida, da cidade, da alegria... as bandeirinhas de São João, os acampamentos, e eu me sentindo tão importante, entregando prêmios, percorrendo as Rocas, “Brasília Teimosa”, as lavanderias do Alecrim... o Baldo... Esse povo pobre não deixa Djalma em paz, dizia minha avó. Esse povo pobre... e Djalma... no olho no furacão.
Um dia foi como se não fosse... a vida de perna pro ar, o mundo de ponta a cabeça... os soldados... as casas invadidas, as vidas reviradas, as prisões... o cheiro do medo, a valentia de uns a covardia de outros, a prova da vida e da dignidade nas costas. O povo pobre se findando, o mundo ficando de longe...
Djalma foi firme. Assumiu a responsabilidade por tudo... Seu padrinho foi preso... Djalma está incomunicável. Em Recife, a tortura come solta, o pau tá comendo. Tão sumindo com os camponeses. A tortura começou, vão mandar especialistas de Recife pra Natal... Um certo capitão Lacerda... Djalma está incomunicável. As visitas ao meu pai, o cheiro de mijo dos quartéis, a revista, o medo... menos que medo, espanto. Raiva difusa... solidão.
Djalma foi pra Fernando de Noronha. Botaram Luís Gonzaga num avião. É mesmo pra matar, o homem sofre do coração, dizia minha avó que procurava na rua com quem brigar. Meu avô chegou, o velho coronel viu a filha sair presa de casa. O velho coronel que não podia com o sargento... um sargento e um cabo levaram minha filha... Mailde foi presa! O velho não agüentou, morreu depois. Djalma está melhor... parece que tem banho de sol na ilha... outros estão chegando. Mas ele sabe, sabe... que vai demorar...
Depois... Djalma na embaixada rumo ao exílio no Uruguai. E as notícias que chegavam. Djalma não agüenta o exílio. Não se adapta de jeito nenhum. Só fala em Natal. Pede mangabas... a fruta das dunas... o meu leão marinho... Tem saudade do sol, da brisa, do Grande Ponto.
Djalma tem uma banca de jornal... vende jornais do Brasil... mas está cada vez mais calado. Só fala em Natal... quer voltar...
As frases ecoavam na casa, na família que se virava como podia em um exílio diferente mas ainda assim... exílio. As frases ecoavam em meu pai que se identificava com o amigo na saudade e no amor à cidade de Natal. As frases ecoavam na raiva incontida de minha mãe que amaldiçoava a cidade que ficara pra trás. A raiva dela e a nostalgia dele... e o meu silêncio... o desamparo. A lembrança dele começou a servir de corpo a outras saudades... Meu leão marinho era como Moby Dick, carregando em suas costas os naufrágios dos outros... cada um que sucumbia, aumentava a carga dele.
Minha mãe era um poço de raiva, meu pai de saudades... e na menina, que agora sabia do frio e entendia o desamparo das mãos dele sobre os joelhos largos. Tinha agora mais tempo de lembrança do que de vida vivida ao lado dele. Mas os naufrágios aumentavam e a lembrança dele crescia e de alguma forma o corpo imenso dele, carregava aquilo tudo. Assim, a presença dele crescia. Presença de silêncio entrecortada de notícias que não passavam de frases curtas, como que a escapar de nossos ouvidos, de nosso entendimento.
E ela pensava nele, no padrinho. Um dia, chegou um presente. Uma pequena bolsa de couro... que, se dizia, “de antílope!” , com solene importância. Aquilo causou espanto. Como é que num tempo daquele se cometia uma delicadeza daquelas! Com tanto sofrimento, tanta tristeza, tanto abandono e brutalidade... uma delicadeza daquelas... uma bolsinha de couro de Antílope para uma menina, uma afilhada entre tantas que o ex-prefeito devia ter... Mas era a filha do amigo... Clarinha... E se repetia “De antílope”... E aquilo era pronunciado com solenidade: “de antílope!” como se fosse um nome próprio. E a menina correu à enciclopédia, ao dicionário à procura de antílopes... o que seria aquela palavra tão pomposa e importante... não tinha coragem de perguntar... A bolsa era pequena e macia. Foi guardada como se fora uma relíquia... e, de certa forma, era. O presente do padrinho que se reduzia, cada vez mais, a mãos desamparadas sobre os joelhos largos. Silêncio. E o enigma: ele pensava em mim? Devia pensar, pra mandar um presente... Eu tinha, então, uma existência além dos horizontes dessa língua, na qual, não mais me reconhecia? Aquele homem grande pensava na menina franzina , na afilhada, e lhe mandava, em silêncio, um presente.
Depois veio a notícia. O coração de Djalma não pôde mais. Sucumbiu. E meu pai repetia. Morreu só. Morreu só. E minha mãe respondia com a crueza de um desespero que ela mal podia reconhecer: “como sempre viveu”. Morreu como sempre viveu. Como um destino. Uma sina. Como se sempre... Mas... mas tinha o povo pobre... Esse povo pobre que não deixava Djalma em paz... teria, ele, o reconhecido por lá? A solidão dos homens... A febre no olhar....o choro de fome das crianças enlouquecendo as mães... o ventre das adolescentes vendidas nas estradas... Não se sabe.... Não se pôde perguntar... E ele não pôde dizer. Meu pai rezava e minha mãe calava a raiva surda no peito. Não chorava. Calava. Eu corri ao meu presente que vivia envolto no papel de seda em que chegara. Desembrulhei-o e fiquei segurando minha pequena bolsa de antílope, como se fosse um nome próprio que eu recuperasse como uma herança... mas não tinha existência, a sua morte. Continuava, do mesmo jeito a presença dele... nas coisas, na lembrança de uma vida que ficara entre as bandeirinhas de São João. Não lhe era permitido morrer porque sua vida não tinha sido vivida até o fim. Tinha uma brecha... E o corpo dele não passava por ali... Não tinha jeito dele ir. O meu leão marinho que se espreguiçava nas dunas de Natal continuava. Eu o levava, mesmo assim... pequena e franzina, jogando em seu corpo branco os começos abortados de minha jovem vida... ele não cabia na brecha que a morte abria... não era um problema de alma, mas de corpo... portanto continuava vivo. Tinha que continuar!
E mesmo as notícias do enterro, as últimas humilhações... “não deixaram isso”, “não deixaram aquilo”; frases de sujeito indeterminado que indicavam o anonimato covarde das ordens que perpetuavam a injustiça, a mesquinharia, a ruindade comezinha das gentes... e o meu padrinho tão grande... imenso. Imenso e frágil... “o coração de Djalma não pôde mais”. É. Não pôde mais.
Agora vira ele praça e ponto de encontro, o Grande Ponto de que ele gostava e que era referência na cidade. É tempo de alegria e, quem sabe, tempo de reconciliação. Diria meu pai, em sua fé, o tempo do perdão. O Grande Ponto... Djalma Maranhão. Não sinto alegria. Procuro, em mim, sentimentos cristãos e não os encontro. É a herança que me cabe, a herança que reivindico e da qual não abro mão. Herança que não precisa de consangüinidade nem testamento escrito. Ela me foi mandada, em silêncio, numa bolsinha de antílope, do Uruguai. Minha herança não é de família nem de partido, é herança de um destino partilhado... o destino do frio. Procuro, em mim, alegria ou sentimento triunfante de justiça finalmente feita e não encontro nada disso. Não vejo, em mim, a generosidade que, segundo dizem, ele tinha. Há o vazio dos que não voltaram. Dos corações que não puderam mais. Certas coisas não têm perdão nem volta. Minha herança, e não é fácil carregá-la, é dizer que eu não me esqueci. Que eu não perdoei. Que me doem ainda as frases e o tempo que me foi roubado, a convivência que me foi impossível... O destino abortado de uma geração não tem volta nem tem como apagar. O tempo não se recupera. E alguns não voltaram. Alguns não voltaram. E isso é imperdoável.
Sim, há o registro simbólico, o reconhecimento, o testemunho às gerações. Não me interessa. Seu corpo, de certa forma se transubstancia em praça pública e, finalmente, ele é entregue inteiramente à cidade cuja ausência o fez morrer. Inscrevem-no espaço público que era o que ele preferia. Para mim, não importa. O que me foi negado permanece... nada nem ninguém podem restituir
Não sei aonde foi parar depois de tantas mudanças e exílios, voluntários e involuntários, minha bolsinha de antílope. Carrego, no entanto, o peso das mãos desamparadas, dos pés nos chinelos, da cabeça baixa... do medo de cair no choro se o olhasse nos olhos, de vê-lo triste... o meu leão marinho arrastando pra longe a imensa carcaça que o coração não pôde suportar... mais.
Rio, 9 de novembro de 2002
In Cantões, Cocadas Grande Ponto Djalma Maranhão