quinta-feira, abril 21, 2005

QUERO NADA


Quero nesse exato instante,
(nada. não quero nada nesse exato instante.
nem quero que esse instante seja exato.
também não quero o instante. nada.
nem quero o verso daquele jeito,
heptassilábico, com tônicas.
não quero metro e nem ritmo.
eu já disse: nada!
nesse exato instante eu não quero nada!
nem esse poema que, dizendo tudo,
não diz nada.
nada, nada, vezes nada
: nada)

Antoniel Campos


AS RAZÕES POR QUE BEBO...

Fotógrafo?

Hugo Macedo, Léo Sodré, Miguel Mossoró,
Meire Gomes e José Torres

Eu bebo não para perder a razão, mas para vencê-la. Jamais serei alcoólatra: na bebida, não é o álcool que me atrai. Eu tomo o vinho porque antes o consagro. E nele me agrada a cor e o sabor – além de me lembrar Jesus e seus milagres. Aliás, é o próprio Baco quem todo dia me abre as garrafas.

Também na cerveja, não é o álcool que me encanta: é o lúpulo dourado e o reflexo do sol no copo transparente. Tomo-a porque envolve-me a sede, hidrata-me o corpo, fornece-me assunto. Também a consagro antes do primeiro gole, e o bar vira um barco e o barco vira um altar. Também, e principalmente, bebo-a porque a espuma me lembra Afrodite.

Como se vê, eu não bebo para perder a razão: eu bebo por outras razões…

Edson Marques

in Blog de Papel http://www.blogdepapel.com.br/
Enviado por Márcia Maia


TEXTOS DE AUGUSTO FERNANDES*



A CIDADE MENINA

Pequena, sem diversões, sem vida noturna, a cidade de Natal é uma saudade dos tempos idos. É u'a menina que não quer ficar moça. Pr'a que? Seu povo, porém, é simples e bom. Dentro das suas possibilidades vai vivendo. Há educação aqui. Há instrução.
Um dia fui à cidade pela primeira vez. Conhecimentos, amizades, namoros... Em poucos minutos pode-se conhecer Natal, mas são precisos anos para compreendê-la.
Certos cavalheiros que, como eu, chegaram de outras plagas, hoje vivem em Natal por algum motivo. A maioria, militar que a guerra foi buscar nos mais diversos recantos do Brasil e do mundo.
Imagino que você, leitor, veio também de uma grande cidade, onde é comum encontrar-se o que é bom e agradável, o que faz bem ao corpo e ao espírito. Bons cinemas, bons teatros, bons cassinos, boas avenidas, boas praças e jardins, boas praias, comércio, adiantada civilização e as mulheres mais lindas deste planeta. Em uma palavra: conforto.
Você, digamos, veio do sul, onde, apesar dos pesares, tudo são flores... Pois bem. Em Natal, você encontrou uma cidade diferente. Acredito que em um momento de desânimo, de tédio, você tenha deixado explodir alguma exclamação menos lisonjeira para a cidade que o acolheu tão bem. Eu também, confesso, reclamei e ainda reclamo contra certas coisas que não admito. É lógico que nós, humanos, especialmente nós que já tivemos a oportunidade de gozar das delícias de uma vida boêmia numa cidade mais civilizada, culta e próspera, sentimos às vezes certa revolta quando vivemos fora do nosso ambiente e do nosso lar.
Vamos colocar os pontos nos ii...
Em Natal, você poderia encontrar uma cidade igual ao Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre ou Belo Horizonte. Você sabe que o Brasil é um "caso" puramente geográfico. Veja-se o livro "Crítica", de Humberto de Campos (1ª parte). "Retrato do Brasil". E não me expandirei contando a história que você deve conhecer. Temos no sul - grandes cidades - bem adiantadas, enquanto - no norte - com raras exceções, o que vemos é verdadeiramente digno de atenção por parte dos que trabalham pelo desenvolvimento moral e material do nosso Brasil. Cidades, como Natal, precisando de auxílio, de cooperação.
Sob a influência da guerra e outros fatores (seca, emigração, etc.) a sua população aumentou consideravelmente. Dizem as novas estatísticas que de mais de 50%. Considerando esse aumento de seres humanos, em sua maioria, militares; as conseqüências diretas da guerra; a vida passou a ser enfrentada sob outro aspecto (carestia em tudo). Chegaremos, pois, à conclusão fácil de que por muita benevolência, boa vontade e paciência que tivéssemos, sempre haveria de aparecer um momento para menosprezar a cidade que culpa nenhuma tem das transformações sociais e ideológicas que se passam no mundo. Nós, que aqui chegamos, deixamos lá distante aqueles que fazem parte do nosso Ego, aqueles para quem uma separação é verdadeira tortura, pois não sabem por quanto tempo e, o mais doloroso, se voltarão.
Assim, longe dos que nos são caros, longe de todo o conforto de outrora, enfrentando os mais sérios obstáculos, sem termos a ocasião de encontrar bons divertimentos, bons lugares para recrear o espírito, é admissível que saia uma expressão áspera, em sinal de protesto - o grito d'alma de quem não está satisfeito com essa vida agitada em que vivemos. É por isso que eu te peço, natalense amigo, perdoa-nos se algumas vezes ofendemos a cidade que é tua e é nossa, porque ela também é Brasil.
Natal hoje está muito diferente. Transformou-se, como tudo, segundo Lavoisier. Natal de hoje é Natal da guerra, do Trampolim para a África. Surgiram novidades de todas as formas. É Natal dos militares, dos americanos de Parnamirim. Outro movimento, outra gente, outras emoções. Natal onde as águias metálicas passam...
Natal do clima saudável e das noites bonitas.
Há, de dia, pelas ruas, grande agitação, carros enormes, caminhões cheios de gente, de operários que vão trabalhar. Natal do meu tempo é Natal do "Grande-Ponto", da "cidade-alta" e da "cidade-baixa". Natal d'A Rádio Educadora, d'A República, d'O Diário e d'A Ordem. É Natal do Alecrim, de Petrópolis, do Tirol e da Ribeira. Ruas pequenas e bem limpas, onde se nota a falta de arborização. É Natal do cinema Rex e do Teatro Carlos Gomes. É Natal das garotas simples, simpáticas e inteligentes. É a mocidade do Ateneu, do Colégio das Neves, da Escola Doméstica, do Colégio Santo Antônio.
É Natal dos esportistas do ABC, do Alecrim, do Santa Cruz, do América e do Atlético. Natal onde se pode encontrar ainda um tempo que não acabou: o bom tempo da verdadeira amizade, aquele em que é comum o sujeito pegar o café e o bonde pr'o amigo.
É Natal inteligente e culto, onde podemos encontrar Luís da Câmara Cascudo, Elói de Sousa, Esmeraldo Siqueira, Lourenço Branco, Américo de Oliveira, Rui Paiva, Alvamar Furtado, Antonio Fagundes, Djalma Maranhão, José Saturnino, entre tantos outros da velha guarda.
A nova geração surge brilhantemente representada por jovens como Murilo Melo Filho, Veríssimo de Melo, Hélio Santiago, Leonardo Bezerra, José Guará, Romeu Aranha, etc. Este é o meu Natal querido do rio Potengi - o rio que é um verdadeiro poema.
É Natal - a cidade onde eu e outros colegas recebemos verdadeiras lições de experiência da vida e de brasilidade. É Natal dos nossos vôos arriscados, das nossas "Patrulhas". Será a cidade onde (se bem que não tenha encontrado um Paraíso) formei ainda mais o meu caráter. Será Natal das boas amizades, da rapaziada camarada, "igual" e sem pedantismo. Será Natal de uma geração vigorosa, nascida e criada num mundo de realidades.
Será Natal - sempre e sempre - pedaço do Brasil! Nosso berço e nossa alma...


O TRAMPOLIM DE HOJE
(1945)


Em 1945, a Base Aérea de Natal é uma Base completamente diferente daquela de 42, 43 e 44, quando o mundo vivia entre ferro e fogo. Hoje, o Campo de Parnamirim - o famoso Trampolim da Vitória - representa uma página gloriosa na História da última guerra. Ainda é, assim mesmo, uma grande Base.
Os nazistas, os fascistas, os fanáticos japoneses, foram todos derrotados. É certo que o mundo ainda enfrenta grandes problemas - conseqüência lógica da tempestade que passou - mas, se houver boa vontade e compreensão entre os homens - teremos realmente um mundo de paz. O Trampolim da Vitória não deve ser esquecido, porque ele foi um fator importante na derrota do Eixo. Hoje, nos céus de Natal, não vemos - em tão grande número - bombardeiros de outrora, mas as águias metálicas continuam pousando em Parnamirim. São as mensagens da paz. Surgiram as companhias comerciais e vemos então os grandes transatlânticos aéreos cruzando o espaço em todas as direções. É o mundo novo. Que esse mundo não seja efêmero!
O alicerce ficou. Os americanos - quase a totalidade - já voltaram, como prometeram - e entregaram aquilo que devemos defender com cuidado e carinho: as suas instalações.
Hoje, não vemos mais, como antigamente, os homens do "Army" e os da "Navy" espalhados pelas ruas da cidade, vivendo e brincando como qualquer filho da terra. Eles voltaram. O tempo é outro. Uma vida nova surgiu. Que sejam felizes! Em nossa Base, também, o panorama transformou-se. Outros companheiros chegaram, outros morreram - como o Novais e o Divino, mas o Trampolim continua firme, com a sua história, com a sua vida, nem sempre cheia de belezas.
Poucos são os que - desde os primeiros tempos - ainda se encontram trabalhando, vivendo e voando, nesse pedaço de terra, onde o vento, a areia e o sol forte do Nordeste, são os companheiros de todos os dias.
É justo citarmos esses nomes: Roberto Pessoa Ramos, Pedro Luis Pereira de Souza, Sebastião Cequeira, José Carlos Teixeira Rocha, Eduardo Costa Vahia de Abreu, Oscar Tempel da Costa Gadelha, Altamiro Di Bernardi, Alex Gunther Schaly, Carlos Walsh, Everton Batalha, Myron Campelo da Silva, Manoel Magalhães Filho, Marceliano de Almeida Neto, Urilo Ribas Ribeiro, Telêmaco Manoel Antunes, José Soares Vargas, Hélio Moreira de Souza, Wilson Silva Cardoso, Licio de Castro, Denes Alcântara, Orlando Bulcão de Figueiredo, Gizelar de Oliveira, Pedro de Ascenção Silva, Arnaldo Yule de Oliveira, Modesto de Souza, Danilo Teixeira da Silva, Moacir da Silva Ribeiro, Carlos Alberto de Araújo Souza, Aldo Schimidt, Furio Tonso, Flávio Pereira do Vale, José Augusto Nunes, Rangel Toledo, João A. do Nascimento.
São pilotos, Especialistas, infantes, técnicos, artífices, homens que enfrentam sérios obstáculos - longe da família e de todo o conforto. Recordemos, também, os que continuam em Recife, Fortaleza e Belém, os da velha guarda. Eles são os verdadeiros heróis, embora não tenham recebido medalhas nem títulos honoríficos. Sinto não poder escrever o nome de todos, mas a glória, a verdadeira glória, pertence a eles, os heróis desconhecidos...


PARNAMIRIM

Luis de Câmara Cascudo - o historiador potiguar, que eu admiro pela sua cultura - mantém em "A República" uma coluna com o nome de "Ata Diurna".
Um dia, o senhor Coronel Luís Tavares Guerreiro escreveu-lhe pedindo que falasse sobre Parnamirim. E ele falou. De tudo que já foi publicado sobre Natal, suas Bases e os americanos, o trabalho de Câmara Cascudo merece destaque. É um documento histórico.



"O meu velho amigo Coronel Luiz Tavares Guerreiro, em "carta aberta" que me foi amavelmente dedicada "A República", de 3-10-1943, evocou magnificamente a história viva de Parnamirim, tão agradável às lembranças de sua mocidade. Tenho toda alegria em saber ter sido um oficial do Exército Brasileiro quem localizou, indicou e divulgou o campo de Parnamirim, numa antevisão maravilhosa de que seria um dos maiores aeródromos da América, determinando que Natal constituísse uma das oito capitais do Mundo, vértice onde se entrecruzam os meridianos de todas as comunicações.
Nada mais agradável que receber, de mão autorizada e amiga, tais informações preciosas.
Agora, direi o que sabia.
Quando os holandeses dominavam no norte do Brasil, governando o Conde de Nassau, viveu o grande George Macgrave, a organização mais completa de sábio e pesquisador que possuíram os batavos. Macgrave entendia de tudo, deixando documentação sapiente de sua sabedoria e previsão cultural. Viajou, pacientemente, toda região administrada pelos holandeses, observando as vilas e propriedades. Desenhou um mapa, fixando as moradas, engenhos, currais, matas, rios. E mais, riscou o curso das estradas, as estradas reais e as derivantes e atalhos, divulgando as comunicações populares do Brasil holandês. Publicou-o em 1643.
O título é assim: Brasiliae Geografica & Hidrographica Tabula Nova, continens Praefecturas de Ciriji, cum Itapuama, de Paranambuco Itamarica Parayza & Potigi vel Rio Grande. Quam proprijs observationibus ac demensionibus, diuturna peregrinationi a se habitis fundamentaliter supestruebat & delineabat Georgius Macgraphius Germanus, anno Christi 1643.
Esse mapa compreende de Sergipe à enseada de Jenipabu, perto do Natal. Foi publicado na íntegra e em folhas esparsas, ilustrando o livro de Barléu, o famoso "Res per octennius etc", traduzido para o português pelo Prof. Cláudio Brandão e impresso pelo Ministério da Educação, 1940.
Quando Macgrave desenha a parte referente à Capitania do Rio Grande, marcando a estrada principal que vinha desde Pernambuco, assinala, depois de Apetimbu, com um índice de vegetação, o topônimo "Parnamirim".
É o primeiro registro conhecido.
Parnamirim é contração de Paraná-mirim, rio-pequeno, denominação tupi. Como se vê, já estava figurando num mapa da primeira metade do século XVII.
E sua utilização no movimento aviatório?
1927 foi um ano de intensa glória aérea. Natal espalhou seu nome no noticiário da imprensa universal. Em fevereiro, chegou o marquês de Pinedo; em março, os portugueses, com o "Argos" e três hidroaviões anfíbios do Exército Norte-Americano, esquadrilha comandada pelo então major Herbert A. Daqrue; em Maio, o inesquecível "Jaú"; em Junho, voltou do Rio de Janeiro o "Argos".

Às 14 horas de 18 de Julho de 1927 aterrissava na praia da Redinha o primeiro avião da Latecoere, um Breguet-307, com motor Renault, de 300 HP. Pilotava-o Paul Vachet, trazendo Deley como navegador e Fayard, mecânico.
Logo depois que, graças à indicação do coronel Guerreiro, o campo de Parnamirim ficou provisoriamente preparado, inaugurou-o um avião ilustre, o "Nungesseret-Coll", pilotado por D. Costes e J. M. Briv, dupla que realizava a volta-do-Mundo.

Desceram às 23:45 de 14 de Outubro. Foram os primeiros a fazer o salto Atlântico, de São Luís do Senegal à Natal. O avião era um aparelho Breguet, nº 1685, monomotor Hispano-Suizo, de 600 HP. Há um livro desses dois aviadores contando, com notável exagero, a linda jornada, "Notre Tour de la Terre", Hachete, Paris, 1928.
A 20 de novembro o Laté-25, nº 616, pilotado por Pivot, com Pichard e Gaffe, mecânicos, estabelecia a linha aeropostal regular, no Campo de Parnamirim.
Ali, desceram os veteranos do ar, Bert Hinkler, em Novembro de 1931, dando o salto do Brasil para Bathurst; Jean Mermoz, com o "Arc-enciel", Janeiro de 1935; o assombroso "Couzinet-70", trimotor; em Fevereiro, James Mollison, o "az" inglês, com o vitorioso "The Heart's Content", vindo de Dakar, num monomotor Gipsy Mayor, aparelho Puss Moth, idêntico ao que Lindenberg atravessou o Atlântico sul, de New York à Paris.

Assim dizem minhas notas de antigo repórter.

A família Tavares Guerreiro é secular no Rio Grande do Norte. Em Julho de 1714, Manuel Tavares Guerreiro faz parte do Senado da Câmara do Natal. Em 1734, Luís Tavares Guerreiro, com o mesmo nome do meu amigo, requeria e recebia três léguas de terra na Ribeira do Potengi, fazendo pião no riacho de Santa Rosa. Em 1757, o Padre Francisco Tavares Guerreiro tinha propriedades no riacho Salgado.

Falta razão do topônimo "Taborda".

Em 1706, era vereador do Senado da Câmara do Natal o senhor Manuel Rodrigues Taborna, possivelmente o primeiro sesmeiro daquelas paragens.
Com quase duzentos e cinqüenta anos de Rio Grande do Norte, os Taveres Guerreiros têm o direito da defesa de um amor que autoridade tradicional tornou profundo e nobre.
Eis porque, dois séculos e meio depois, um descendente apontava na Campina de Parnamirim o lugar predestinado, ninho onde pousariam os pássaros de aço, prontos, em eterna vigília, para o vôo e para a luta".



AUGUSTO FERNANDES
(Sargento da FAB – Livro Virtual do site RESERVAER)

*Enviados por Laélio Ferreira




quarta-feira, abril 20, 2005

VOU FALAR NA TUA BOCA

Hugo Macedo

Gargalheiras

vou falar na tua boca,
nascer em verbo lá dentro,
ao som de flauta barroca,
bem lento.

vou falar nos teus cabelos,
capilar-me em pensamento,
e vou jogar teus apelos
ao vento.

vou falar na tua barriga
(de língua um piercing te invento),
talvez falar não consiga,
mas tento.

pois quero dizer-te: sim,
é de cabeça que eu entro,
no canto que entraste em mim
: no centro.


Antoniel Campos



contraponto



a minha boca adivinha
a palavra que dirás
mas não te digo a que é minha
: acertarás?

nos meus cabelos, o vento
brinca de te esconder
meu secreto pensamento
: hás de saber?

em minha pele imaginas
compor co'a língua um soneto
certo que então me alucinas
: não te prometo.

se é de cabeça que entras
meu coração, digo eu
mesmo que a ti não pareça
: inda é só meu.

Márcia Maia


POEMINHA NOTURNAMENTE URBANO



ruído de automóveis
e vozes embriagadas
mais uma canção de gosto duvidoso
ferem a noite que se queria silenciosa

(o caminhão do lixo parece uma locomotiva)

e nada mais há que fazer
senão desistir do poema e, janelas
fechadas, deixar-se embalar pelo resmungar
(monotonamente familiar) do aparelho de ar condicionado.


Márcia Maia


LAMAS IDAS

Luís Henrique


Para Márcia Maia

Uma passada rápida pelo Beco.
— Fiz umas fotos do Dia da Poesia!
— Massa!
— Um homem, de boné, sentado no meio-fio, lendo O Beco.
O homem lendo O Beco no Beco.
Beco da Lama. Dia qualquer.
Manchete da Preá: Beco da Lama, das Artes e dos Orixás.
Na rua Doutor José Ivo, tudo isso é verdade. Exceto a lama
que se foi.

Eduardo Alexandre


Luís Henrique


Para Eduardo Alexandre

Tem sempre alguém lendo O Beco
no Beco da Lama
tanto faz se sentado ao meio-fio
ou à mesa de um bar.

Tem sempre uma voz a me dizer
do Beco da Lama
e da lama que se foi
que já não há

: terno eco do Beco a me chamar.

Márcia Maia


CHAGAS, MÁRCIA, RUBINHO E CARLÃO

VISÃO

Argemiro Lima


Do alto do morro
por entre as dunas
e o arvoredo
as luzes da cidade.


Você já viu Natal,
lá de cima do morro?

Pois devia ver
cada luz
é um olhar
cada olhar
é um lar
cada lar
em seu lugar
definindo,
a visão do alto
sobre a cidade.


Chagas Lourenço



De arte e vida

João Arthur


Era um artista. Nascera assim. Desde criança sabia misturar as cores com maestria. Entre cola, papel picado e lápis-cera brotavam verdadeiras obras-primas. Os pais achavam engraçado aquela mania de desenhar. A professora, na escola, maravilhava-se.

Freqüentou escolinhas de pintura na infância. E aulas de jiu-jitsu, para agradar o pai. Muito depois, homem feito, abandonou o curso de Direito para dedicar-se à pintura. O pai rompeu consigo para sempre. Ele ingressou na Escola de Belas-Artes. Daí a Paris e, finalmente, a uma bolsa de cinco anos em Firenze, foi questão de três ou quatro anos.

Agora era reconhecido internacionalmente. Expusera nas melhores galerias, de Nova York a Tóquio. Um sucesso.

De repente, as coisas começaram a tomar um novo rumo. Estava próximo aos sessenta e tudo aquilo começava a entediá-lo. Buscava um pouco de recolhimento, de intimidade, de paz. E havia a solidão. Cansara-se de festas, entrevistas, jantares, vernissages. Dera de sentir-se sufocado, solitário, meio à bajulação, aos flashes.

Resolveu mudar-se para uma casa na praia. O silêncio das tardes e madrugadas lhe fazia bem. Pintava em paz. Lia. Caminhava horas sem fim, à beira-mar. Sentia-se quase feliz.

Então um dia, veio-lhe um mal-estar, a vista turva, a mão esquerda trêmula. Justamente a mão mais preciosa, canhoto que era.

O médico, de aparência perfeitamente asséptica e fria, explicou-lhe sem reservas, a situação. Tinha um tumor que lhe tomava boa parte do cérebro. E que, pelo tamanho, trazia embutido um risco cirúrgico considerável. Por outro lado, caso não fosse possível retirá-lo, a cegueira seria iminente , bem como a perda de força e movimentos do lado esquerdo. Ou seja, pensou, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. E quase esboçou um sorriso. Iria pensar, disse ao médico. De quanto tempo dispunha? perguntou antes de sair. Duas ou três semanas antes de cegar, respondeu o médico no mesmo tom mecânico, como se fosse um robô.

Fazia já duas semanas e a vista tornava-se mais e mais turva. Não mais conseguia pintar. Mas era, e seria sempre, um artista.

Sobre a mesa de vidro arrumou-os por cores. Contou: cento e vinte. Amarelos, vermelhos, alguns poucos brancos, dois tons de marrom e um tom de verde quase musgo. Começou a construir um mosaico, um rosto de mulher. Gostou do resultado. De peças toscas construíra um belo quadro. Magnífica imagem! Lembrava as madonas dos mosaicos bizantinos. Ah, saudade!

Tomou um banho demorado, de imersão. Em seguida, vestiu o roupão de seda azul marinho e pôs o Réquiem, de Mozart, na vitrola. Abriu o vinho. Um bordeaux de safra especial. No copo de cristal antigo, bacarat legítimo, cintilava, ainda mais belo, o tinto, aumentando-lhe o prazer de bebê-lo.

Sentou-se à mesa e lentamente, acompanhando o desenrolar do Réquiem, engoliu uma a uma, as peças do mosaico: cento e vinte comprimidos de soníferos variados. Depois, despiu o roupão e deitou-se, nu, sobre a cama antiga, forrada de cetim champanhe.

Concluíra pôr fim a sua obra. Sentia-se bem. Finalmente encontrara a paz que tanto procurara. Ouviu ainda o último acorde da Lacrimosa, antes de adormecer. Com um sorriso. Para não mais acordar.


Márcia Maia





TELEFONEMA



Tentei ligar, mas a telefonista de harpa avisou que naquela noite jamais. Você havia saído para um sarau com Luis Carlos Guimarães e Berilo Wanderley. Sim, Zila Mamede também.Voltaria tarde demais. Deixou escapar que entre os versos, haveria um de Florbela Espanca, poetisa portuguesa que do nome se fez contradição. Só falava de amor.
Ela recitaria para os quatro Loucura, que de tão curto e sublime, compartilho com todos:

”Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada pavorosa! Não sei onde era dantes. Meu solar, meus palácios, meus mirantes! Não sei de nada, Deus, Não sei de nada!... Pesadelos de insônia, ébrios de anseio! Loucura de esboçar-se, a enegrecer. Cada vez mais as trevas do meu seio! Ó Pavoroso mal de ser sozinha! Ó pavoroso e atroz mal de trazer tantas almas a rir dentro de mim!”.

Liguei, Rubens Lemos, para te dar notícias casuais. E para dizer que senti falta de sua voz rouca e cortante a bradar contra a intolerância, a arrogância e a covardia. Faltou você naquela noite de sábado. Faltou-me o seu abraço e a sua gargalhada aberta, fraternal, olhos de uma ternura imensa. Minha recompensa.

A notícia era banal. Queria apenas te dizer que o ABC ganhou mais uma. O seu ABC que você dizia ser, sem vaidade, o rosto alegre de uma cidade. Florbela Espanca me tomou a chance de te contar como foi lindo, tão formoso quanto uma criação dela. Foi só 4 x 0, pai. E o ABC agora se chama ABC/ART & C, imaculado, habilidoso, sensual, desconcertante. É campeão pela segunda vez em 60 dias.

Aí tem TV no céu? Você sabe que nós somos os melhores do Nordeste e estamos entre os seis do Brasil? Sabe! que de besta você nunca teve nada.

Casualmente, lembrei que tudo tem seu brilho. E saiba que adotaremos o papagaio como símbolo. Papagaio quer dizer nome comum a aves psitacídeas que são capazes de imitar a voz humana. E indica forte espanto.

Rubens Lemos, subscrevem este bilhete os senhores Neílson, Charles (como joga pai, como joga!), Anderson Maradona, Marconi Raça Gadelha, Piliu Operário, Fabiano, Betinho, Neto Boy da sua Zona Norte, Suza, Neto Bola, Ricardo, Jorge, Rafael, Birico, André, Exmar Tavares (a presença dele é um pouco a sua presença), Ewerton Cortez, Arturo Arruda, Cláudio Porpino, Renato Alves, Ricardo Rocha, Canindé, Inaldo, Doutor Luiz Alberto, Isabel, Caio e somente a imensidão da frasqueira.

Vá, volte ao seu sarau.


Rubens Lemos Filho
Diário de Natal - 19/04/2005





UM POETA TRADUTOR DE POEMAS

Marco Lucchesi

Quando o tradutor e poeta ítalo-fluminense Marco Lucchesi esteve em Natal há duas semanas, olhei as folhas dos jornais locais e li que ele era o tradutor de Umberto Eco no Brasil. Fiquei pensando, "puxa, esse cara é bom mesmo..." Ora, não é todo mundo que pode representar no Brasil a voz do festejado autor de O Nome da Rosa e menos conhecido ensaísta. Aí, fui para casa e fiquei folheando o livro Poemas Reunidos, de Marco Lucchesi, Record, 431 páginas.
Bem, o que posso deduzir dessa leitura rápida que fiz é que Lucchesi não é só isso. Ele é muito mais. Antes de tudo, é um poeta refinadíssimo. Escreve em português e italiano e é tradutor também de Djalal ad-Din Rûmi, Juan de la Cruz, Francisco Quevedo, Vassili Jukovski, Fiodor Tiuchev, Afanásy Fet, Vielimir Khliébnikov, Georg Trakl, Rainer Maria Rilke, Dino Campana, Boris Pasternak, Ievguêni Ievtuchenko, Sergio Solmi e Hans Magnus Enzensberger.

Se você não conhece a metade dos poetas acima citados, não se preocupe: leia o livro de Lucchesi. Pois bem. Li em algum lugar que o rapaz ia dar uma palestra na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Abalei-me para o local e cheguei a tempo de ver a saudação de Dorian Gray ao ilustre visitante. Marco Lucchesi é um jovem de 38 anos, afável, sorridente e tímido. Quando começa a falar, você vai percebendo a enorme erudição por trás daquela simplicidade.

Fala sobre os grandes poetas com clareza e grande conhecimento de causa. Você fica ali, ouvindo aquele cara de voz suave, explicando as nuances da tradução, a beleza de certos versos, a sonoridade de algumas sílabas, as peculiaridades da vida dos grandes autores e vai bebendo aquelas palavras como água fria e cristalina da mais pura fonte. Confesso que saí dali embriagado de saber. No dia seguinte, ele deu uma nova palestra na Livraria Nobel, no Natal Shopping. Mas não vi necessidade de ir de novo. Estava satisfeito.

Fiquei lembrando de suas palavras sobre a questão palestina. A lucidez de sua análise que evitava o rebuscamento diante da complexidade do problema. Tudo se resume a ódio e intolerância. Não adianta ir buscar razões para a brutalidade dos massacres em massa de Israel ou para a estupidez dos homens-mulheres-bomba palestinos.

Era um poeta falando de questões prosaicas, do banal do cotidiano, de uma guerra ali distante, que pouco nos afeta além de um desconforto na hora de botar gasolina no carro. E falava das crianças destroçadas pelas bombas, queimadas pelas armas químicas fabricadas por Sadam Hussein. Falava com a indignação que só os artistas têm diante da bestialidade humana.

Concordo com ele. E admiro o modo como trafega nesses meios literários onde as honrarias contam mais que as obras. Fiquei feliz de vê-lo falar em uma diversidade de escritores espalhados pelo território nacional, todos de diferentes tons de qualidade e sem qualquer reconhecimento que invariavelmente é referendado pela mídia carioca-paulista. É bom ter gente assim no Brasil.


Carlos de Souza
Tribuna do Norte - 14/04/2002




terça-feira, abril 19, 2005

A CHUVA QUE ACORDOU O DIA

Lilix



A chuva que acordou o dia transportou-me para tempos distantes, anos 60, no Tirol da minha infância.
O cheiro da mata chegando, o pé do morro lavado de suas guabirobas suculentas e deliciosas; o medo da cobra-de-veado, a suaçubóia que, se não era venenosa como as corais perigosas que habitavam debaixo das folhas caídas dos cajueiros, “matava de arrocho, enrolando-se nas pessoas até sufocá-las”.
Quanto medo das cobras gigantes dos morros do Tirol!
O desejo de degustar a guabiroba do “Pé-do-morro”, porém, era maior.
Maior que o medo da suaçubóia — termo aprendido depois, nas salas de aula do Marista; maior que os sustos causados pela mimética cobra-cipó; maior que medo da “aleijante cipoada do rabo do camaleão”.
Meninos, juntávamos nossos cachorros e, enganando o balaço dos fuzis que vinha do Dezesseis Erre-i treinando pontaria, aventurávamo-nos pelas trilhas que nos levariam para Barreira d’Água com seu encantador solo esculpido pela natureza das chuvas, os nossos cânions, depois levados pela ganância da construção civil. Solo a guardar água limpa e “saborosa”, bebida com a ajuda das mãos na sofreguidão do cansaço de subidas e descidas de dunas escaldantes.
O riozinho a formar-se ao pé das barreiras e a “encher” o mar Atlântico com suas poucas águas era uma fantasia real. “Um quê a mais” no meio daquela selva.
Os cajus do Morro do Careca, por trás do quartel; os sagüis a nos indicar o cambuizeiro doce; os pequenos bem-te-vis dando surras em gaviões em fugas desesperadas; a raposa fugindo ao inaudível som emitido; as brigas de morte das cobras com os teiuaçus, “salvos pelo pé de pinhão”, tudo isso era íntimo da infância do Tirol.
Nas cercanias, as vacas pastavam e as borboletas, amarelo-pálidas como chananas, chegavam também teimosas com o calor das manhãs.
A pista, imensa nesga preta de asfalto deixada pelos americanos quando da guerra, era limite de estripulias infantis. Do lado de lá, a Praça Augusto Leite, pobre, em meio a um barreiro onde os campos de pelada surgiam destocando moitas teimosas a atrair saúvas “que acabariam com a nação se não acabássemos com elas”.
Do lado de cá, o reino de Dudé, filho de Seu Fausto, dono da vacaria — na garupa do jumento aparecido ou no lombo do cavalo do cercado, dava o tom da reação contra a “tropa” que ousava cruzar a pista, vinda da Augusto Leite.
A pelada dizia quem era melhor. Mas os socos e arranca-rabos por vezes aconteciam, decidindo, de vez, todas as pendengas.
Debaixo do juazeiro limpo, sem espinhos, defronte de sua casa, Dudé comandava a “tropa de cá” equilibrando-se pela mão esquerda sob a perna chocha, encolhida pela paralisia infantil, para não despencar. Coisa de “quem havia chupado manga depois do leite” ou “tomado banho depois da feijoada”.
Do morro, descia Carioca, com seu balaio de mangas e cajus, pitombas, homem misterioso, de pouca conversa, senhor de todos os segredos do Morro do Roncador, a confirmar os tremores de terra que, diziam, deles o Brasil estava livre, pois sim! Morro do Roncador! Por que haveria de roncar um morro por trás das poucas casas do Tirol? Acho que nem Carioca sabia, ele “que morava há duzentos anos” num sítio entre os morros que nos levavam à Barreira Roxa, praia de pescarias de bons xaréus, pampos, barbudinhos, fartos antes que o barulho da cidade e sua sujeira os afugentassem para longe.
Dali, vi Natal deixar para trás a corrente. Esta que era limite da cidade e que, depois, trouxe a fábrica da Guararapes de Seu Nevaldo, o homem que iniciara com duas máquinas de costura o seu império e que viera para escrever a história do desenvolvimento da cidade, sucesso hoje desaguado no mesmo local, chamado “Me Dei Mal” pela população jovem que não viveu esses tempos.
Tirol que não assistiu às contendas de Luís Tavares contra os gringos insolentes da guerra, mas que lhe deu guarida nos seus últimos dias de tranqüilidade e bons exemplos. Tirol de Berilo Wanderley e dos bondes que traziam frescas suas crônicas para a Hemetério Fernandes, rua que me trouxe as primeiras luzes pelas mãos de Dona Adelaide, a parteira da cidade.
Tirol do rela-bucho da Lagoa Manoel Felipe; do Aéro do apaixonado getulista Boquinha; do América de Maria Creuza e dos grandes carnavais; Tirol da AABB aberta não só a bancários; Tirol que se deixou seduzir pelo comércio.
Tirol de quantos nomes?
Tirol de tanta gente, de tanta paisagem humana e boa que não cabe enumerar numa crônica amanhecida de uma nuvem que só trouxe borboletas amarelo-pálidas como as teimosas chananas e as guabirobas de saudade, doces como o amarelo dos cambuís de suas dunas hoje encobertas pelo concreto do progresso que as invade, levando ternas virgindades de antigamente.


Eduardo Alexandre




segunda-feira, abril 18, 2005

ALEXEI, UM NERVALINO




Um dia, folheando uma dessas antologias de poetas franceses traduzidos no Brasil, caíram nos olhos e na alma esses versos assim:

"Eu sou o tenebroso, — o viúvo, — o inconsolado,
o Senhor de Aquitânia à Torre da Abudia:
Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado
Irradia o sol negro da melancolia".

Voltei ao nome do seu autor, li o resumo de sua vida, e saí procurando suas marcas em toda parte. Só então descobri que Gérard de Nerval era uma grande ausência entre nós, e que, mesmo na França, levara cem anos para ser redescoberto.
Não exagero. Nerval nasceu em 1808 e em 1855 foi encontrado morto na rua da Velha Lanterna, aquele lado de uma Paris pobre e suja aonde viveu seus últimos anos.
Em 1952, três anos antes do centenário do seu suicídio, sua obra entrou na Plêiade, a coleção que a Gallimard - a mais importante editora da França e a mais consagradora do mundo - reservou só aos grandes autores franceses, aqueles que o seu austero e culto comitê de editores considera realmente célebres. Daí porque há autores famosos, e já mortos, que não estão na Plêiade.
Ainda é pouco o que há de Gérard de Nerval traduzido no Brasil. Mas, se ter três traduções de uma mesma obra pode ser um indicativo de qualidade, ele tem. Porque três vezes o seu Aurélia saiu dos prelos brasileiros: em 1986, edição da Ícone, com tradução de Élide Valarini; cinco anos depois, em 1991, na edição Iluminuras, com tradução de Luís Augusto Contador Borges, e com a melhor e mais erudita introdução das três edições; e a mais recente, de 1997, com a tradução de Paulo Hecker Filho para a coleção Pocket, da L&PM.
O que há além das três edições de Aurélia, seu texto mais conhecido na área de ficção? Outra novela, Sílvia, com tradução de Luís de Lima, edição Rocco, 1986. Com uma singularidade: mereceu a apresentação de Fernando Sabino que escreve um pequeno resumo da vida e da obra de Nerval sem perder de vista seu esoterismo, ele que acreditava nos sonhos humanos como uma segunda vida. Seu alcance, no entanto, fica bem longe do olhar de Contador Borges, embora não se possa negar a natureza mais culta das edições Iluminuras.
Mas, se 1986 é o ano da estréia de Gérard de Nerval com a pobre edição de Aurélia no universo editorial brasileiro, pelo menos para a contemporaneidade, só em 1996, exatos dez anos depois, os jornais anunciam que o poeta Alexei Bueno lançaria, pela Topbooks, a grande tradução de As Quimeras. Nada poderia ser mais consagradora. Porque Alexei, no caso de Gérard de Nerval, não é apenas um grande tradutor. É um nervalino, como dizem os franceses. E do tipo que leva flores ao seu túmulo, no cemitério do Pére-Lachaise, em Paris.
Foi Oswaldo Lamartine, num dos últimos anos de sua permanência no Rio, que me apresentou a Alexei Bueno. Lembro, e lembrei com ele, agora, quando esteve aqui: foi na Livraria Brasileira, o bom sebo de Osmar. Mais alguns anos, e já então depois da tradução d'As Quimeras, nos encontramos em Recife, no Congresso de Literatura. Ele, o expositor. E este pobre leitor com a missão humilde de preencher quinze minutos sobre jornalismo e literatura. Foi lá que conheci o poeta Gerardo Mourão, senhor do sertão e das gitiranas em flor.
Depois, nos encontramos na posse de Antônio Carlos Secchin, um amigo comum, na Academia Brasileira de Letras. Mas foi em Recife, pela coincidência da paixão literária, que nasceu nossa amizade. Somos nervalinos. Por várias coincidências. Também visitei seu túmulo duas vezes, a primeira antes da tradução de Alexei. Como ele, e mesmo sem existir mais, fui conhecer o lugar da Rua da Lanterna, em Paris, hoje um centro comercial; e comprei alguns estudos dos "Archives Nervallienes", que publica grandes ensaios sobre a sua obra.
Ora, Alexei Bueno é um irmão em Gérard de Nerval há alguns anos. Tem o maior acervo no Brasil em torno da vida e é, sem dúvida, o maior conhecedor da obra do grande poeta do sol negro da melancolia. Por isso fui buscá-lo para autografar seus poemas à sombra desta biblioteca. E se conto essa história só agora, depois que Alexei passou por Natal, é para que alguns não pensem que anunciam novidades. Pedro Vicente e Nelson Patriota que atestem o dia todo vivido perto do mar. De conversas literárias, cachaça boa e charutos macios.


Vicente Serejo
O Jornal de Hoje, 18.04.05


DESTÕES DE FELICIDADE

Tribuna do Norte

O destino nos reserva surpresas de todos os tipos possíveis e imagináveis. E, muitas vezes, junto com essas surpresas, nos prega peças indescritíveis, como o fez comigo na semana passada. E mesmo sendo indescritível, pelo menos para mim, vou tentar relatar aos queridos (as) leitores, o acontecido.

Semana que passou, recebi a visita de meu amiguinho Mané, que está na casa de sua mãe biológica, em Laranjeira do Abdias, distrito de São José de Mipibú. Pois bem: foi uma alegria sem limites e, depois de uns três dias aqui em casa, fui deixá-lo na casa de sua mãe, lá em Laranjeira.
E, em lá chegando, antes de ir deixar Mané em casa, cismei de ir visitar um casal de idosos, meus amigos e fãs (graças a Deus), que adoram escutar meus poemas, principalmente os de fuleragem.

Esse casal, são meus amigos CIÇO E MARIA PRIQUITO. Pelos nomes, o caro leitor deve imaginar perfeitamente os "figuraços".

E, no meio do caminho, encontrei uma importantíssima parte da minha vida, no meu passado de felicidade e liberdade total, quando eu vivia que nem burro brabo, solto de canga e corda; e sem peia e sem cabresto, com todas as porteiras do cercado do mundo, totalmente escancaradas e à minha inteira disposição.

Um Circo "TUMARA QUI NUM CHÔVA", exatamente na hora em que o palhaço preparava seu monociclo para sua peregrinação pela cidade. Uma réca de menino esperava o momento de extremo prazer, para sair gritando o que o palhaço já havia ensaiado com a meninada, as respostas que eles dariam aos gritos estridentes do ARTISTA MAIOR DO MUNDO CIRCENSE.

Não me contive e parei o carro para me juntar à molecada, onde o mais velho teria aproximadamente uns quatorze anos de idade. O palhaço, se acercando de mim, falou:

— Cum você eu num preciso ensaiar não, que você é "quenga véia na zona".

E saiu gritando:

O palhaço: Pompeu, Pompeu...
A meninada: Sua mãe morreu...
O palhaço: E a cabeça do palhaço ?
A meninada: O arubu cumeu...
O palhaço: O juízo tava pôde...
A meninada: O arubu morreu...
O palhaço: Vô alí, vorto já...
A meninada: Vai cumê maracujá...
O palhaço: Ai,ai,ai, eu tô cum medo...
A meninada: Do maracujá azedo...
Hoje tem espetáculo?
A meninada: Tem sim sinhô...
O palhaço: Oito horas da noite?
A meninada: Tem sim sinhô...
O palhaço: Dona Chica...
A meninada: Remexe a canjica...
O palhaço: E o palhaço, o que é?
A meninada: Ladrão de muiééééé...

Eu ora ria de felicidade e satisfação ora chorava emocionado. Lá prá tantas, o palhaço, fazendo um intervalo, veio com a tradicional tinta a óleo preta e fez uma cruz no braço de cada um daqueles meninos que estavam "GRITANDO-O"; era o pagamento; o ingresso para que eles pudessem entrar no circo de graça, à noite.

Fechei os olhos e me vi na Praça Tamandaré, no Baldo, quando chegavam os circos e eu era o primeiro que se apresentava para GRITAR O PALHAÇO, enquanto mamãe só faltava arrancar os cabelos quando eu fugia com esse objetivo. A saudade pegou fogo no meu coração e a fumaça saiu pelo canto dos meus olhos. O palhaço, ao me ver chorando, perguntou o que era, e eu lhe expliquei o papel que ele, o palhaço de circo ou de pastoril, tivera no meu passado, terminando por declamar para ele meu poema ODE AO PALHAÇO.

Findamos chorando abraçados os dois, sob as palmas da criançada.

BOB MOTTA
O Jornal de Hoje, 16/17.04.05


HAI-KAIS DO CAMINHO




1-

cheiro de café
mel do olhar azul do rio
marcos de partida


2-

bueiros antigos
à beira da estrada douram
de ausência a manhã

3-

chove. chora o dia
(não os olhos) sobre o verde
do canavial

4-

casas coloridas
plantadas à beira-rio
vislumbre de beco

5-

trânsito parado
silêncio encharca a estrada
sangue no caminho

6-

muda ladainha
ruína de sino ausente
igreja morta

7-

(e o olhar sabendo
de cor inteira a estrada
sonhando voltar)

8-

mais de meio-dia
ipês acácias buzinas
marcos de chegada


Márcia Maia


IMPROVISO

Simone Sodré


...e que não houvessem papéis. Que não houvesse papel. Nenhum tipo de papel. Nenhum papel. Nenhum.
E que o improviso nunca fosse ensaiado.
Se me improvisam me encontram sem atuar. Ensaio o que não atuo.
Saio dos aplausos e dos consentimentos.
Preparo a festa e a adio. Preparoafestaeaadio. Preparoafestaeaadio...
Finjo atuar, finjo não improvisar. Me apresento da platéia.
Ensaio o que não atuo pra que nada se consuma.
E amo assim, bem muito, daqui de onde vou.
Apagar cortinas, fechar luzes.

Simone Sodré


LOBO MAU

Simone Sodré
Simone Sodré

Segundo o jornalista Alexandro Gurgel, seu parceiro em muitas empreitadas, o fotógrafo Hugo Macedo tem parte com alguma entidade mitológica, que o torna irresistível perante as mulheres. O “invocado” Hugo, no dizer de Gurgel, tem uma sorte danada, e, tal qual areia de cemitério, não dispensa nada”. Aliás, para Alexandro Gurgel, isso é até bom, porque nas muitas viagens que os dois fazem para preparar matérias jornalísticas e fotográficas no sertão, Cléo, seu eterno amor, não esboça nenhum tipo de preocupação. “O mulheril nem olha para mim, só vê os longos cabelos de Huguito e seus olhos que não perdem um só lance. E, ele quer thuuuudo”, garante.
Dias desses, a dupla, que tem sociedade num site de informações sobre o Rio Grande do Norte, resolveu ampliar suas atividades profissionais, montando a empresa PRATICAL para dar aulas de inglês e fotografia, no centro da cidade, na histórica Rua das Laranjeiras. Depois de bem divulgados, os cursos começaram a ser procurados por muitos alunos, com uma curiosidade: o de fotografia, ministrado por Hugo Macedo, tinha uma população formada por 98% de mulheres. Todas muito felizes, aos sábados à tarde. Ele, diga-se de passagem, grande professor, se esmerou e levou para a sua turma informações valiosas sobre o ofício, numa programação didática capaz de fazer inveja aos melhores cursos do país.
Compenetrado, não havia faltado nem um dia ou “enrolado” um só minuto, dando aulas de três horas seguidas, movimentando-se pela sala sob os olhares carinhosos de uma platéia emudecida de amor.
Num sábado, promoveu um exercício de campo. Levou todo mundo para fotografar o centro histórico e cultural da cidade. Não sabia ele que a maioria dos cliques estavam voltados para o professor.
Fecharam os focos no rosto, corpo inteiro, da cintura para cima e, pasmem, até da cintura para baixo!
No outro sábado, não faltou ninguém. Todas queriam mostrar as fotos que tinham feito do professor. Claro, todas pensavam que o seu resultado seria único, afinal quem já viu mulher amiga de outra?
Mas, o professor não apareceu. Teve que resolver uns problemas numa de suas fazendas no Seridó e empenhou o seu sócio – que também é fotografo – para substituí-lo.
Quando Alexandro Gurgel entrou na sala e comunicou o fato, a decepção foi geral. Uma aluna gritou:
— Com ele não assisto aula. Quero Hugooooooo!
E, como se tivesse acontecido um ensaio, todas começaram a cantar ao mesmo tempo:
Hugo Macedo aonde está você?
Nós viemos aqui foi pra te ver!
Alexandro Gurgel ainda tentou emendar, caprichando na voz:
— Calma pessoal, é somente hoje...
Uma aluna serelepe, dessas que não mede palavras, logo interrompeu:
— Rouquinho, vá deixar o cabelo crescer e treine um olhar de tarado! Depois você volta...
Cabisbaixo, Alexandro saiu e somente foi visto nas cercanias do Bar de Nasi, no Beco da Lama, por volta das 22 horas, contando estrelas e jurando para um bêbado desatento, que ia deixar o cabelo crescer, como na sua juventude.

Leonardo Sodré


ENCANTO DO POTENGI

RN Econômico

Natal, que nasceu do rio
como muitas cidades
Mora emersa na pedra
erguida em fortaleza
feito arrecife
que se faz e desfaz-se
em grãos
de areia branca
que o vento leva
para dentro de si

Natal, praieira
Encanto
do canto do Potengi
Da santa senhora protetora
da apresentação!

Eduardo Alexandre


DUNAS VERMELHAS


Poucos livros que eu li em minha vida fotografam de um modo tão exato e cinematográfico a alma de uma cidade como o livro Dunas Vermelhas (AS Livros) de Nei Leandro de Castro. Sem nenhuma preocupação de ser um tratado sobre a história do Rio Grande do Norte, o livro de Nei utiliza o cenário da Intentona Comunista da década de trinta para nos passar uma senha desconcertante sobre o enigma que é a cidade de Natal.

Toda cidade oferece um enigma. Ou você decifra o enigma da cidade ou ela te devora sem muita cerimônia. Para os que nascem e vivem a vida toda em uma cidade isso pode parecer estranho. Mas para o viajante não. Todo viajante, como Édipo às portas de Tebas, é empurrado e na direção do enigma. Não há acordo para quem sai da própria terra e vai morar em outro lugar. Ou você decifra o enigma ou é destroçado por ele.

O cenário político desenhado pela câmera literária de Nei é apenas parte da solução do problema que a vida em Natal propõe. Junto aos discursos sobre a doutrina marxista, ao sexo sempre presente no texto, às paixões cotidianas e aos pequenos acontecimentos privados que dão sentido à vida em uma província, Nei explora o dilema dessa cidade como poucos fizeram. Um dilema retratado na ansiedade pelo universal em meio ao particular. Imagine a cena: numa tapera de pescadores na Redinha, nos anos trinta do século passado, um agente do partido comunista disserta sobre uma ideologia política gestada numa Europa industrializada e urbana. Como adequar essas duas realidades? Como fincar, num solo primitivo e de natureza totalmente hegemônica, uma antena para captar as ondas de um mundo grande demais para ser condensado entre a Praia do Forte e o bairro do Alecrim? Natal é uma cidade assim. Uma eterna quase metrópole. Uma cidade que cresce e encolhe no ritmo das grandes guerras, dos pousos e decolagens das aeronaves que ligam a América do Sul à Europa. Observando a história da cidade, nota-se de imediato esses ciclos, que hora projetam Natal para o Brasil e o mundo apenas para, logo depois, lançá-la num silêncio desconcertante, proporcional a seu tamanho.

Vivemos um desses ciclos de projeção, semelhantes ao período da guerra dos bárbaros, dos vôos intercontinentais e da grande guerra. No entanto, mesmo com o mundo batendo a nossa porta, não abandonamos a cegueira típica das províncias mais isoladas. Vivemos nesse vai e vem, nesse corredor de passagem. O mundo passa por Natal, chacoalha a cidade de tempos em tempos e depois a abandona, sem muita cerimônia. Então fica essa ansiedade pela modernidade, essas ruas futuristas projetadas por Palumbo, esse jeans americano deixado pelos soldados na guerra, a vanguarda estética da Londres Nordestina. Vivemos sempre a nostalgia do vazio. Uma nostalgia do futuro. Concentrada de modo muito peculiar no nosso imaginário. Conversando com o professor Sérgio Trindade, um dos grandes nomes da nova geração de historiógrafos dessa cidade, fui alertado para a natureza inquietante desses ciclos de expansão e recolhimento a que a cidade se submete.

Nei Leandro, do alto de seu exílio carioca, conseguiu, de um modo bastante instigante, apontar para esse dilema, indicar o local aonde mora essa ansiedade que o natalense nutre pelo universal, pelo cosmopolita, sem conseguir se libertar do próprio provincianismo. Muita gente boa foi devorada por essa cidade, aparentemente inocente e hospitaleira, por não ter seguido o exemplo de Édipo diante da esfinge. Agora, Nei Leandro, longe de Natal, olha para cidade e redireciona o desafio: “devora-me logo, ou então eu te decifro”.

Pablo Capistrano


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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