Láelio Ferreira X Antoniel Campos
( I )
Laélio eu vou lhe ensinar.
na volta de Antoniel
Laélio, chegue mais cá,
puxe a cadeira e se sente.
Fazer glosa inteligente,
Laélio eu vou lhe ensinar.
Sou o tampa do lugar,
na Terra, inferno e no céu,
e o filho de Otoniel,
parece não herdou nada,
vai ter que ler tabuada
na volta de Antoniel
(AC)
( II )
A sua tampa, Engenheiro,
eu destampo num minuto
Não invada o meu terreiro
pois aqui galo sou eu !
- Veja só onde meteu
a sua tampa, Engenheiro !
Fique longe, no aceiro
dos sonetos – seu produto...
Nas glosas cobro tributo,
tiro-lhe a régua e o compasso,
esculhambo, e o seu parnasso
eu destampo num minuto !
LF
( III )
Quer na glosa ou no soneto,
Aqui quem manda sou eu!
Botar-lhe-ia num gueto,
se nos "quatorze" o enfrentasse.
Não há ninguém que me passe
quer na glosa ou no soneto.
e o seu tributo, eu prometo,
será ver meu apogeu
lhe ensinando em meu liceu
a rima que não lhe chega.
Você manda em suas "nêga",
aqui quem manda sou eu!
AC
(IV)
“Quer na glosa ou no soneto
aqui quem manda sou eu”
Sou chama de carbureto,
você pra mim é um fracote
- aceito até o seu mote:
“quer na glosa ou no soneto” !
De Satanás peço o espeto,
vou invocar Asmodeu:
na encruzilhada o seu
boneco todo furado
vou despachar com agrado
- aqui quem manda sou eu !
LF
( V )
Eu canto ao Beco da Lama
O meu mais sublime verso
A quem fracote me chama,
já sabe que eu canto mais.
Você canta a Satanás,
Eu canto ao Beco da Lama.
Minha glosa é pra quem ama,
mas também sei ser perverso:
tem pé-quebrado, disperso,
no seu verso sete, acima,
e assina embaixo e em cima
O meu mais sublime verso !
AC
( VI )
“Quer na glosa ou no soneto
aqui quem manda sou eu”
A ripa, já, já, lhe meto
se demorar na resposta
- sua equipe é muito bosta
quer na glosa ou no soneto...!
Não procure calafeto
de aspones do Silogeu,
não verseje em priapeu
pois minha glosa é formosa,
deixe de goga e de prosa
- aqui quem manda sou eu !
LF
(VII)
Eu canto ao Beco da Lama
O meu mais sublime verso
O meu peito chora e clama,
quero cantar a “Praieira” !
Com saudade, a vida inteira,
eu canto ao Beco da Lama !
É amplo o seu cosmorama,
palco de vida diverso,
é variado, disperso...
- Mas é onde eu quero, um dia,
fazer com muita harmonia
o meu mais sublime verso !
LF
(VIII)
“Satanás” rima com “mais”,
“disfarce” rima com “face” ?
Antoniel, mo digas: vais
dar um jeito às tuas rimas?
Não mo venhas com pinimas
- “Satanás” rima com “mais”?
E não cometas, jamais,
afirmação tão fugace,
me jogando à anteface
pé-quebrado inexistente !
- Diga agora, meu decente:
“disfarce” rima com “face” ?
LF
( IX )
Minha rima é no fonema,
já nasci metrificado.
Não vejo nenhum problema:
assonância? consonância?
eu rimo é com elegância:
minha rima é no fonema!
você quer mudar de tema,
mas eu volto ao pé-quebrado
— sou assim mesmo, abusado:
seu primeiro verso é falho!
pedindo, quebro seu galho:
já nasci metrificado !
AC
(X)
No bom ardor da refrega
cometi um pé-quebrado
Nosso embate não foi brega,
não parti pro fescenino,
você deu sorte, menino,
no bom ardor da refrega !
Não virei de bordo à cega
do Sesiom aloprado,
não lhe chamei de cagado,
sequer falei de Clotilde
- mas confesso, muito humilde,
cometi um pé-quebrado !
LF
Natal, abril/maio/2005
VIAGRA PARA OS VELHINHOS JÁ!
Saúde preventiva é a mais recomendável ao serviço público.
É com ela que evitamos gastos maiores. Os que estão contrários à lei do viagra para idosos estão na contramão da história. Haverá os que se beneficiarão dela tendo dinheiro, é verdade. Cabe aí amarrar em termos de renda/mês quem pode ou não ser beneficiado.
Os que, não possuindo recursos, poderão ter uma vida sexual normal, ajudarão à economia nacional porque não adoecerão facilmente.
A visão que alguns estão tendo do problema é formulação apressada e sem os questionamentos devidos.
Sexo não é orgia, como muitos pensam e fazem: é necessidade do corpo e também da alma, e, principalmente, desta.
O que mais afeta velhinhos e velhinhas no mundo todo é a depressão. Depressão, por quê? Por que se sentem isolados do convívio social, da vida comum dos que não chegaram ainda na dita terceira idade.
Com sexo, eles não estarão livres da depressão mas não serão tão depressivos quanto numa vida sem sexo imposta pela sua condição orgânica.
Se podemos ajudá-los a ter relações sexuais, por que não fazê-lo?
Quanto os velhinhos gastam com antidepressivos? Quanto custam esses medicamentos?
Quanto os velhinhos desperdiçam em bingos, cassinos espalhados pelo mundo afora, quando poderiam estar em motéis, dando prazeres reais aos seus próprios corpos? Namorando, gerando outras rendas em restaurantes, shows, teatros, escolas de dança?
A exclusão sexual da terceira idade só gera renda à indústria farmacêutica, à classe médica e aos proprietários de casas de jogos duvidosos, que os roubam diariamente e enriquecem da burrice social que não acompanha os dias que vive.
Viagra para os velhinhos!
Dunga
Enquanto o filho caçula, doente e pródigo, dorme, ela vela. Não fia ou tece. Espreita o céu azul da tarde, pela janela aberta, e lê o jornal do dia. Mesmo assim, em seu velho vestido de algodão bordado, deitada sobre a cama, distraída, daria um belo quadro de Vermeer. Não fossem de prata seus brincos.
Márcia Maia
A Peter Gabriel e Zeca
I
Uma goela escancarada - pombos e o rastro do
horizonte — arcadas fantásticas — arcanos —
montanhas que escavamos no sonho, num
musical TODD-AO com panavision e cabeças
sim, cabeças femininas avermelhando o
chão como se fossem cocos.
— Uma goela escancarada — ouvidos — ouvimos
— um morcego - a labareda no colarinho da colegial
“molhadinha molhadinha”
just in the heat.
II
Como se fosse tudo — um carinho jeitoso e
dengo ali entre as mangueiras — proposição de
amante: ficando junto de você o tempo todo.
Proposição de amante: ir sempre sozinho, ir
sempre sozinho — junto — como se eles
(todos) honoráveis bastiões da saudade - todos eles,
sim, todos eles fossem salas carpetadas, lustre venezino
- espécie rara de naditude: assim o mono se des
pede
III
E assim, no vigor das palmeiras uma
passagem impensada — mais do que as
labaredas, além de um bosque —
saltério — coração dilacerando esse amor e
ali então um redundante espaço de
expectâncias e assim, ali, um engradado de
alegrias em cada pedaço meu lançado ao sentimento
IV
um rosto petrificado e sem sal — borboleta,
pássaros receosos — libélulas estilhaçadas como
leques japoneses — teu rosto na pista do
contato — um tato entre escuros que
se assemelham — tarântulas e serpentes num
arrozal — outros rostos petrificados, enfileirados
p
rontos e eternos esperando, esperando, esperando.
Daisy, Daysi e Porciúncula Menezes, três claros pe-
tardos letárgicos dos Ribentes. E ali, no
óbvio rosto das estátuas reluz uma coisa sinistra.
V
Folhas verdes sobre
folhas douradas sobre
folhas verdes sobre
folhas douradas sobre
folhas verdes entre
espaços cambiantes
VI
Um rádio digital — saudações afetuosas de
uma tia ranzinza, burra e sonsa — um átomo de
exaltação doméstica: barrigas e peitos se aconchegando morta-
lhas, beiços e mãos que nunca souberam do amor.
Inda assim o rádio digital toca guarânias insuportáveis e
alguém lê um horóscopo chinês intolerável.
VII
(quero segurar teus ombros
mais-chegar teu rosto e
falar bem lindo —
“sabe que eu te amo há
muito tempo ?”)
VIII
Um corpo dependurado frágil numa
vivência mais frágil: besta,
ventre acotovelado de rostos, anseios e
anos-bons; besta, olhos afundados no
receio, rádios em programas policiais,
ignorância e morbidez ali, naqueles
quartos, naqueles homens.
IX
rostos escavados em mantras, iantras e
posições exóticas: eles se curvam procurando as
suas sombras que jamais são vistas,
seus reflexos perdidos no hálito matinal —
rezas
novenas e
olhos fitos num ponto qualquer.
Estátuas e vermes sendo pasto dos
pombos: assim eles vivem.
Estátuas e pombos sendo pasto das
cidades: assim se compreendem.
X
Um zumbido lerdo — como traças e
sombras, silhuetas sem risco numa
paisagem azul — tal e qual, tal e
mesmo — enquanto os anjos acordam e
desembestam fogos interiores.
Recursos de efetiva eternidade -
vento nas palmeiras e calor na
ponta da pele — dois e
três e infinitas possíveis idades —
esse amor.
XI
e acima de tudo e acima ou abaixo — um monte de
margaridas, meus labirintos e os teus —
nossos labirintos — como se o
tempo retrocedesse um beijo, um
aceno ou mesmo a perfilância dos
alabastros na cadência que o sangue
enseja — sem mesmo esses “comos”,
apenas o pulso da intenção e o
bater do gongo solene.
XII
Desfio, teço uma palavra pra caber no
meu percurso — itinerários incomuns
achados aqui, tinindo no osso —
o pescador e seus peixes e um
idiota inútil catando baldias palavras entre
rochedos cotidianos — azul profundos da
Prússia em
sentimentos calejados — suores e
praias e pedras quentes calcinando os
males do mundo — “nademos mais um pouco e ali,
verde e azul profundo sobre cada galho de
árvore, um rapto de sensualidades escancaradas”.
XIII
Pouco depois de um desalento conhecido,
familiares abordagens do amor, dos
vaticínios que explodem na pele,
rebentam sonhos e poemas — nos
alcançam em verdades pensáveis.
Pouco depois desse desalento, um dia e
outro dia e nosso coração atento.
Leio sobre libélulas estraçalhadas.
Creio nas janelas estilhaçadas.
XIV
O leão e o respingo do ar ali, no
canto do olho — teu gesto sutil como a
linfa e o desenho sereno como um
traço — algumas pontes se distendendo entre
mim e ti, e essas distâncias onde habitamos além
dos tropeços — uma savana — nossas imaginações de
paralelo teor — um gracejo amigável e teus vastos
instintos.
O leão, sim, e as verdades imagináveis.
XV
Um pouco de nossos anseios ali, acolá, nas
escadas adulteradas pelas nossas sintaxes;
mão e culhão numas rimas doidas engendradas no
meio da missa — (dona Lulla e seu
filho frade comendo biscoitos e
cuscuz de leite — uma lagarta, uma
lacraia e o berro de Eustásia) —
pequenos instantes, sim, enquanto
pássaros nos ensinam quiálteras.
XVI
E o pastor te guia entre essas dunas,
uma voz como uma flauta como um
corpo entre arbustos; sabores de
pitanga e mangaba — acridoce encanto
desencantado nesses lances. Há, sim,
uma litania de alegria e
desejos em nossos dias felizes —
temos um labirinto de amoráveis
quimeras que nos resguardam os dias.
E o pastor de guia entre essas dunas.
XVIII
Tomar uma canção e erguê-la muito —
assim dizem o nova-iorquino e este anseio:
tome uma canção e deixe-a estrondejar suas
veias. Como essas fogueiras que se acendem altas-horas
num clima de criança e memória. Tomar uma
canção e estendê-la além dos nossos
limites. Provocar as figuras de nossa imaginação e
superá-las todas além de uma memória eventual e
histórica. Tomar uma canção e vê-la em
nossos próprios episódios.
Marcílio Farias
Brasília - Natal janeiro/fevereiro 82/3
Dunga e Plínio
O bar de Nazaré, nas adjacências do Beco da Lama, em Natal, estava lotado naquela tarde de sábado. Numa mesa, recitava-se poesia; noutra, cantava-se MPB; noutras, discutia-se política, etc.
Uma das mais barulhentas era ocupada pelos poetas Plínio Sanderson e Eduardo Alexandre, que perdia somente para a que era capitaneada pelo produtor cultural Dorian Lima, com o seu eterno “rosário” de queixas.
Plínio reclamava da instalação poética “Esgoto Sanitário”, montada por Eduardo durante as comemorações do Dia da Poesia, 14 de março, em protesto pelos esgotos sem tratamento que são jogados nas praias de Natal, cotidianamente. Idiota e imbecil eram as palavras mais ouvidas naquele final de tarde. Plínio bradava:
— Essa idéia é minha, imbecil! Você roubou e vendeu para a mídia como se fosse sua!
— Como sua, idiota? – retrucava Eduardo – Por que então você não foi fazer? Você é preguiçoso, tanto que jamais quis assumir integralmente a diretoria cultural da SAMBA (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências).
Espumando de raiva e com os olhos absurdamente arregalados, Plínio gritava:
— Não assumi para valer porque você é um ditadorzinho de meia tigela, que quer fazer tudo do seu jeito e não aceita interferência nenhuma.
— Eu não sou ditador. Desde o tempo da “Galeria do Povo” que sou democrático em tudo. Agora, se ninguém vem ajudar, eu faço sozinho mesmo e pronto!
Aí, Plínio arretou-se e especulou pegando pesado:
— Eu desconfio que no tempo da “Galeria do Povo” você era financiado pela ditadura! Se não, como é que você nunca foi perseguido ou preso, com tantas palavras de ordem? Provavelmente era um esquema para juntar todo mundo num lugar só e dar a impressão de que estava tudo bem com as liberdades individuais. Você é um reacionário!
A peleja parecia que não ia acabar nunca. Parava apenas quando chegavam os eternos conhecidos para pedir cigarros ou dinheiro para tomar umas. Teve até uns momentos em que a conversa tomou outros rumos. Na verdade, Plínio admirava a pintura de Eduardo, que também admirava a poesia de Plínio. Eram grandes amigos, embora, para um observador novo, parecessem inimigos.
De longe, o poeta Helmut Cândido subia a rua Coronel Cascudo, bem ao lado do Museu Café Filho. Vinha ligeiro, com as mãos nos bolsos e o eterno cigarro pendurado nos lábios. Chegou pálido e estranhamente não pediu bebida nem cigarro a ninguém, indo direto para a mesa dos brigões. Arrumou-se junto ao ouvido de Eduardo e cochichou. Depois, saiu em direção à avenida Rio Branco. Todos notaram o estranho comportamento de Helmut e ficaram prestando atenção.
Plínio perguntou:
— O que é que Helmut queria?
Eduardo respondeu rindo muito:
— Nada, apenas veio me avisar que vinha de ônibus lá da Ribeira e que havia visto uma tsunami subindo o rio Potengi. Depois, virou-se para Helmut, que já estava uns cem metros longe e gritou:
— Não foi, Helmut?
— Foi! E agora mesmo vou parar os ônibus na avenida Rio Branco e mandar todo mundo na direção de Lagoa Nova. Vou salvar Natal!
Dorian Lima levantou-se para fazer um discurso contra a mentira do poeta. Levantou os braços na direção do Palácio da Cultura e, de boca aberta, emudeceu. Todo mundo virou-se. A tsunami havia chegado.
Minutos depois, numa fila interminável sobre brancas nuvens, a dupla continuava a discussão. Plínio acusava:
— Está vendo? Se eu tivesse ido para casa não tinha morrido. E logo com você!
Eduardo divertia-se:
— Agora agüente!
— Eu não entendo porque estou na fila do céu. Eu nem acreditava em Deus, nunca tive fé... Reclamava Plínio.
— É mesmo, emendou Eduardo, cadê Chagas, Osvaldo, Karl, Laélio, Léo, Nazaré, Paulinho...?
Uma mulher que estava na fila e que ouvia a conversa, intrometeu-se:
— Meninos, fé, no céu, é como plano de saúde na terra: quem tem, passa na frente. Seus amigos já estão por lá. A essa altura, já estavam na entrada: eram os primeiros de uma fila que dobrava duas esquinas de nuvens, sendo recebidos por um elegante senhor que chamava a atenção pela serenidade. Este interpelou os dois:
— Então? Vamos entrar?
Plínio fez sinal de tempo com a mão e cochichou no ouvido de Dunga:
— Vamos ficar unidos. Vamos saber direito como as coisas funcionam por aqui. Deixe que eu conduzo a conversa. Dunga balançou a cabeça, concordando. Ele então começou:
— Amigo, como é seu nome mesmo?
— Pedro, às suas ordens.
— Aí tem meladinha?
— Não entendi...
— Cachaça, limão e mel. Tudo misturado...
— Não.
— Tem “Cuba Libre”?
— Não.
— Tem, ao menos, um beco?
— Não.
— Posso continuar minhas discussões com Eduardo?
— Não, aqui tudo é na base da paz e do amor.
— Pois me diga onde é o elevador.
Leonardo Sodré
Chacal
...TENDO CHACAL COMO EPÍGRAFE
Nessa vida dedicada à poesia, tive alguns xamãs e muitos amigos. Como guias, cito dois: Oswald de Andrade, meu querido antropófago, que me ensinou “a ser simples como um largo de igreja” ou “descobrir que a Poesia é a descoberta das coisas que nunca vi” ou “a contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. Comecei a escrever tal e qual o mestre. Poemas piada, instantâneos kodak. Oswald caiu nas minhas, pelas mãos de Charles Peixoto. Éramos poetas aprendizes, amigos da Escola de Comunicação (ECO). Era 1970 / 71.
Depois em 73 em Londres, tive a segunda epifania. Vi Allen Ginsberg, num Festival Internacional de Poesia, no Queen Elizabeth Hall. Ginsberg, diferente de todos os demais convidados, falava, uivava seus textos. Tirava uma sanfona do bolso e se acompanhava num blues, num salmo. Espetacular. Um Dylan devasso. Era aquela dicção que eu queria para meus poemas.
Em 30 de outubro de 75, num evento multimídia na Livraria Muro, começamos a falar poesia publicamente. Foi como se outra camada do poema se revelasse. A palavra falada em meio à galera, com o corpo em movimento, o coração pulsando em tempo real. Era no boca a boca, no corpo a corpo que a nova poesia era escrita. Era muito bom demais. Nossos ídolos eram cantores de rock, de samba. Gente de palco. E nós poetas ali, naquele dia 30 de outubro numa galeria em Ipanema, com todo o suporte visual e espiritual da Nuvem Cigana, entrávamos para o time. Só que em vez de cantar, vociferávamos suavemente nossos textos, nossa alma. Vida longa à poesia que represente onda, choque, libertação.
Flui.
Chacal
In http://chacalog.zip.net/
O poeta desfia e desfaz a linguagem do poder. Ele nos entrega, cru e nu, o veio nervoso e exposto da linguagem que toca no invisível ponto onde emoção e razão se abraçam, permitindo que o código íntimo da nossa humanicidade se revele – e ensine, desvele, ilumine.
A poesia contemporânea serve mais do que nunca à linguagem do fascismo corporativista, cheio de meias e duplas palavras, cômodo restolho e repouso de mentes conformistas e conformadas. Linguagem feita de escombros e esqueletos apodrecidos, código morto como a linguagem de um Ocidente prostituído até a alma em nome da ganância, do petróleo, da guerra e do medo.
Quando Gurgel lançou, há mais de trinta anos, o seu primeiro trabalho (Pulsações), foi como se o Mar Vermelho se abrisse deixando passar um forte feixe de assombrosas iluminações. Tal qual Rimbaud, que, duzentos anos antes, desmantelara as platonices dos simbolistas, românticos e tantos outros bajuladores dos governos e das sociedades que subservientemente lambuzavam com sentenças cheirando a morte, mofo e indolência.
Hoje, em plena era da nova Pré-Historia fascista, antevista por Pasolini, Battaille e Barthes, leio com emoção o novo trabalho daquele a quem sempre considerei e considero a voz mais importante da poesia do meu século. “Apaixonada Poesia Louca” (Edições Fundação José Augusto, 2002) nos dá a voz veemente, vibrante e tranqüila de um poeta para quem ‘poetizar’ é ser são um só e o mesmo.
Thomas Merton nos alertou há quase meio século para a importância do poeta, do verdadeiro poeta, como o único capaz de sentir e reagir contra o que ele chamou de “doença fascista da linguagem do Ocidente”, a qual, desde a formação do Sacro Império Romano Germânico, infectou com duplicidade e mentiras o universo do dizer desse Ocidente. O poeta, o verdadeiro poeta, seria aquele que, mais do que antena de sua raça (a raça poética), seria o verdadeiro guerreiro do conhecimento estético, o homem estético de Schelling, o qual, em seu trabalho quase monástico de contemplação ativa do mundo, dar-nos-ia as boas palavras, as palavras reais vinculadas a uma profunda interação/integração entre homem e mundo.
Gurgel sempre foi esse tipo de guerreiro. Sempre foi o nosso poeta “maior”. Este livro mais recente que agora leio prova e comprova a assertiva de Merton.
Como o não-dizer do Vaygharava tântrico, ou o Swastiasta védico, o texto de Carlos continua simples em sua enigmaticidade. Palavra tão simples, tão cristalina, que o mistério daquela dimensão vertical (Maritain) da existência nos toma de assalto por uma pura obra de circunstância do belo. Mas não o belo dos poetas de fim de semana, os quais usam artifícios lingüísticos para incensar os próprios egos e se atrevem a chamá-los de poesia. Não: a simplicidade (e complexidade) do signo gurgeliano carrega uma vertente ontológica irredutível a formulações. Cristal de lua.
“Incólume
Como picolé ao sol
Os pecados têm vida longa
Eles se sustentam
Ao redor de nossos sonhos juvenis” (pg. 25)
Quando Bataille nos lembrou (há quase um século) que a transgressão é o caminho mais óbvio na luta contra a ignorância do nosso trágico Ocidente, ele poderia muito bem ter utilizado como exemplo esse texto de Carlos:
“Brincar com fogo
é como ajuizar pecados mortais” (pg. 35)
Mas o poeta, cuja poesis consolida nesse novo opus uma serenidade antevista em seus primeiros trabalhos, não se acomoda na firmeza e consistência de sua artesania incomparável: ele continua trabalhando e esfoliando verbo e dizer, escavando e espremendo signo e significado, torcendo-o e torturando-o, porque sabe que nossa linguagem ocidental está prenhe de toda uma contextura fascista, opressora, negativa e negadora de si e do homem que a utiliza. O verdadeiro poeta, como Carlos, jamais consentirá com esse processo.
“Burros gemem no meio da noite
No meio da cidade do meio da noite
Burros gemem no meio da cidade
No meio dos burros a cidade geme
No meio da cidade no meio da noite
A cidade geme no meio dos burros” (pág. 96)
Ao parodiar uma forma ‘escritural’ (iâmbico-pentamétrica que atrasou a poesia do ocidente em mais de 100 anos e foi salva no século passado por Eliot e Pound), Carlos se dá ao luxo de ‘desmantelar’ a estrutura sem propor nada mais que a própria transgressão de seu intento trans-(não ‘meta’)-lingüístico. Considero o poema acima como um dos mais importantes momentos da poesia de nosso tempo. Lembrando Bataille mais uma vez, Gurgel nos leva a contemplar ativamente o fato lingüístico através do puro olhar da frase provocante, insidiante, transgressora.
Não me admira o fato de Carlos jamais ter recebido o reconhecimento nacional e internacional que merece. Natal sempre foi avessa e cruel com seus artistas, justificando aquela frase crítica de que ninguém é profeta em sua própria terra. Mas me irrita o fato da cidade (que, ao que parece, dá mais valor a uma centena de estrangeiros e mafiosos pseudo-milionários do que aos seus poetas, pintores e músicos - qual o justo reconhecimento que Eduardo Alexandre de Amorim Garcia teve pela ousadia transgressora da Galeria do Povo?) ainda não ter atentado para o fato de ter em seu meio um “inventor” de formulações poéticas inigualáveis, que aos 13 anos de idade antecedia movimentos poéticos que o sul do pais (via Chacal, Ronaldo Bastos, Chico Alvim e tantos outros cariocas hoje em dia louvados em todo o pais como ‘inovadores’) só iria reconhecer no final dos anos 70. Isso me irrita, pois mais uma vez prova o que Mário de Andrade já dizia a Peregrino Junior em 1929, entre um uísque e outro, na Rua do Ouvidor: ‘Junior, o que estraga esse pais não é a cachaça, mas a burrice”.
Na era da globalização da estupidez e da internacionalização fascista do medo, na era da linguagem ideologizada e ideologizante do medíocre e do superficial, a poesia de Carlos espalha uma sanidade que o mundo só conheceu com Rimbaud, Lautreamont, Bataille , Pasolini e Barthes. Uma sanidade que nos dá o visível da existência através do não-visivel do sentido e do significado. Fio de Ariadne reconstruído com a vida vivida por e para a disponibilidade poética, labirinto de sensações e sentimentos que só um poeta maior pode ser capaz de construir e navegar serenamente.
“O sol quando se Poe
Amanhece cedo
Depois
Quando vem a gritaria do mundo
Ele se esconde” (pg. 97)
Marcílio Farias
FASCISTA POR OBRIGAR A DIZER
Beleza de artigo, de resgate, de desabafo.
É compreensível a irritação do articulista, porque ele demonstra conhecer não só a obra, mas a práxis de Carlos Gurgel e de Eduardo Alexandre, transgressores ainda vivinhos da silva entre nós. Inventores, na acepção poundiana do termo.
Mas, meu caro Dunga, digo de todo coração, meu velho: nada podemos fazer. E nem sei se devemos, de fato, fazer alguma coisa. Se se cabe fazer alguma coisa. Na minha opinião, o artista cumpriu o seu papel ao criar. A urbe não o quer, não o aceita, não está preparada? Então, Srª Urbe, f***-se!
O autor toca no tema "fascismo"; por coincidência, motivo de chiliques autoritários alhures, noutras plagas.
Fascismo, sim. O fascismo ocidental da língua que, no pensamento de Barthes, e citando de oitiva, "a língua não é nem progressita e nem reacionária; ela é isso: fascista . É fascista não por impedir de dizer, mas por obrigar a dizer."
E, como ninguém manda na boca de Gurgel, e, como ninguém manda na boca e nas mãos de Eduardo, abaixo os fascistas da linguagem!
Antoniel Campos
Dona Odete
O Beco da Lama, que é pai de todos os becos, tem uma mãe que há 28 anos o alimenta. De pirão, sarapatel, peixe no coco, cuscuz, macaxeira, feijão verde, e também de música e poesia, apesar de não cantar, não tocar violão nem saber o que é um verso.
É ela que todo dia, cedinho, abre seu pequeno estabelecimento de porta única, três metros, se muito, de frente, quatro metros, idem, de fundo.
Uma cozinha apertada, um banheiro que mal cabe uma alma.
Mas é ela quem está ali, a receber quem chega, com a fome que estiver.
A galinha caipira cheira, levando paladares de sonhos pelas ruas maiores da cidade, mas ela, pequenina, nem se dá conta do manjar que prepara. É como se nada fizesse. Como se aquilo apenas fosse mais um dos tantos pratos preparados vida a fora, a saciar bocas muitas vezes ingratas, estômagos vazios muitas vezes também de ternura e agradecimento.
Dona Odete é mãe do Beco por merecimento porque o tem como filho. Adotivo, é verdade. Mas um filho que viu crescer e, como toda boa mãe, esperou vê-lo melhorar de vida, sair da lama primeva, tornar-se saneado e querido para ser alma da cidade.
O Beco ainda é mal cuidado e muitas vezes imundo, mas seu carinho por ele não diminui por isso.
Reclama melhor iluminação. Clama por segurança. Pede paciência diante das autoridades que dela cobram, mas que pouco fazem pelo pedaço que ajudou a fazer boêmio e referência de uma cidade.
Foi no batente frontal de seu estabelecimento que o maestro Mainha resolveu morrer, aos 80 anos de muita canseira vida a fora. Ele que, pressentindo a morte chegar, para lá dirigiu-se, pediu a última, despediu-se, e foi-se como chegou à vida: sem nada ou quase nada, porque deixou amigos poucos que o amavam, é verdade, e composições que ninguém sabe um dia chegarão à memória: coisas preciosas.
Quando chegou ali, o Beco da Lama era bem mais lama que beco, nem nome de rua tinha. Era apenas fundos de casas famosas de ruas afamadas e bem tratadas por que abrigavam comércio e casas de gente bacana. O Beco servia-lhes apenas para despejo de águas servidas. Só. E para a ostentação do nojo que se mantém, sem que nada façam por ele.
Mas Odete acreditou e lá ficou, fazendo o seu cuscuz matinal, torrando sua galinha caipira, mexendo o pirão do peixe no coco, servindo a talagada de cana para os papudinhos de todos os dias.
O sorriso ingênuo que sempre trouxe nos lábios, sorriso convidativo, diga-se, poucas vezes deixou-se anuviar por acontecimentos tristes, ali também tidos. Manteve-se majestosa e altiva, e hoje ainda enfrenta diariamente a lida, velhice já chegada, esperança mantida, porém, na certeza de que deixa um fruto. Maduro. Tenro. Mas que, se cuidado, novos trará, e manterá viva a labuta que se merece labuta, porque do trabalho vive o homem que também vive do sarapatel que Odete preparou um dia e da cachaça que fê-lo esquecer a vida não querida, mas real, de lá adiante, bem longe do Beco. Onde a vida não lhe sorri.
Eduardo Alexandre
Nagério e Carlinhos Bem no Bar de Nazaré
PÂNDEGA TANTÃ
Zé do Rojão arregalava os olhos remelentos do excesso da luz dos dias e das noitadas de pandeiro e traquinagens, aluado de si, sem saber ao certo onde dormira nem ter porventura uma lembrança nítida do beréu que se metera. No bolso, um trocado que mal dava para pagar o pernoite e, mais ali adiante, um gargarejo demorado em meio copo de cachaça para ajudar a tirar o bafo e limpar garganta afora goela dentro, enganando assim a fome e o cansaço enquanto ficava zonzo e renovado na alegria dos truques e das mutretas que o paletó escondia, que a voz fraca imitava, que o corpo mole fazia.
Mais uma e dê cá outras, no entremeio da bicada paga aqui pelo estudante ou de uma saideira oferecida lá pelo distinto do canto, o recinto já bem animado na prosa com zinebra e tira-gosto de papel, o saltimbanco dos becos, o temido imoral das donzelas caprichava nas piadas gordamente apimentadas de enxerimentos e más intenções, um dengo acanalhado no começo e outro pior no fim, o senhor dos gracejos se esmerando em gaiatas contorções de escarninho, um rubor indiscreto atingindo velhos, moças e sinhás, o Baixo-Calão expulso do ambiente, recolhendo maus augúrios e reprovações dos presentes, se despedindo descaradamente com a mais gaiteira voz saída das trôpegas e bêbadas cordas vocais: Prazer que me já dão! Até outra!
Aroldo Martins
MEU LOURO
O meu lourinho é um danado. Chegou em casa novinho, nu, só canhão lhe cobria o couro, a cabeça parecendo maior que o corpo, o bico parecendo mais o imenso nariz de Pedro Abech, o turco narigudo do Beco, especialmente quando mandou raspar a cabeleira depois de ter visto no Fantástico uma matéria que dizia ser agora fashion os carecas.
O lourinho é bem humorado e educado, amanhecendo dando bom dia a todos. Quando chegou, mamãe era quem o alimentava, empurrando-lhe um mingau goela abaixo, até que ele começou a procurar as sementes de girassol deixadas no viveiro. A banana. O mamão.
Lourinho toca e atende telefone. Pode ser fixo ou celular, com qualquer toque. E depois de ligar, atender e dizer o alô, conversa por horas na base de um diálogo que ninguém entende, mas que é característico de conversas ao telefone, tipo: sim... tô ouvindo... hein?
Muitas vezes, mamãe vai ao portão para ver se a minha irmã a está chamando. É que lourinho imita tão bem a sua voz, que muitas vezes engana mamãe e outras pessoas que estejam em casa.
Mas o melhor é quando alguém bate palmas do lado de fora ou toca a campanhia. Lourinho não perde tempo:
— Quem é?
— É Maria, do salão de beleza.
— Quem é?
— É Maria, do salão de Beleza. Pra avisar que...
— Quem é? Insiste lourinho.
— É Maria, pra avisar a dona Isabel que...
— Quem é? Continua lourinho na sua santa ignorância, sem saber que mal pode causar ao responder palmas suplicantes diante de um portão fechado.
— Diga a dona Isabel que...
— Quem é?
Eduardo Alexandre
Solidão
Era um vazio tão grande,
que até a tristeza
não aguentou a solidão
e saiu pra passear.
Ana Paula Cadengue
Quero o encontro dos cálices guardados
Quero o encontro dos cálices guardados,
berimbar capoeira ouvindo jazz,
em degraus ver os rostos, mil quadrados,
a fumaça de azuis, chopp e pastéis.
Ter poemas a troco de uns trocados,
nesse A4 eu dizer o que me és,
ver em curvas e retas teus riscados,
mas guardar, dessa vez, esses papéis.
Quero inícios com fins mais demorados,
quero o beijo na boca e nos teus pés.
Antoniel Campos
Laélio Ferreira
Boi de Reis Infantil, ontem, na festa Pratodomundo, no Beco.
tarde breve
perdi-me a imaginar tardes
distantes
locais onde me encontro se
me perco
num tempo onde me perco
em desencontro
(não sei quando me encontro
quando perco)
e assim de mim perdida em
cada beco
me quis reencontrada num
instante
nessa cidade azul onde me
perco
e ao dar com o céu perdido
em véus de chumbo
me apercebi que anoiteceu
tão cedo
e eu — perdida em mim —
nem me dei conta
Márcia Maia
À margem, como epígrafe
Além da névoa e da noite, o que existe?
Marize Castro
Aqui, sem saber-me eu.
Decifrada em sementes, antegozo o fruto maduro ante a iminência da queda, recorro aos meus delírios; repouso em minhas fugas.
Apago luzes, bato a porta, saio. Acendo faróis sem rumo. “Além da névoa e da noite, o que existe?” Indagava a poesia deixada sobre a cama, como se a exigir resposta quando da volta.
Serpenteio a cidade em busca do que fazer. Entro num shopping; aprecio vitrines que refletem desejos. O cartaz do cinema me atrai para uma fila de ingressos. Encontro uma amiga de outrora e tomamos rumo da praça de alimentação. Pedimos cerveja e logo estamos a gargalhar lembranças de tempos irrequietos, quando o futuro era vaga referência abstrata e distante.
Procuramos saber razões das marcas deixadas em nossas faces. São tantos os labirintos que mentimos a nós mesmas, escondendo passados de vivências desprezadas.
É forte o desejo da dança. Partimos, então, em direção ao abismo. Seremos serenos em busca de orvalhos. Seremos madrugadas.
Como chove fininho e o tempo esfriou, ela se deixa levar ao primeiro pedido.
Fico só em meus devaneios intérpretes de canções. Descubro que a alma é imensa e grande é a sensibilidade de quem se deixa seduzir por palavras grafadas em sentimentos.
Isso fica.
Fico eu também, porém, a descartar segundas intenções. Os sons hoje são mais agradáveis que as estripulias da noite. Prefiro pensar. Estar comigo mesma para tentar desvendar estradas percorridas em velocidades alucinadas.
Que fiz eu da vida? Sobrou-me a lágrima sobre a mesa tinta do vinho consumido.
Raiou o dia e eu não me dei conta de mim. Lembro a leitura deixada na cama e o verso que me ficou como epígrafe: todo rio tem sua margem.
Talvez seja eu a margem não alcançada da noite.
Neuza Margarida Nunes