No dia seguinte, Potiassu confabulou com diversos líderes guerreiros; escutou opiniões dos mais velhos e; procurou saber a reação das mulheres. Serenados os ânimos, viu que a tribo ainda reverenciava-o em grande respeito. Era sábia sua decisão de proteger o inimigo. Nem só pelas informações que poderiam dele obter, mas até porque poderia servir de barganha num futuro próximo, a troco de quê não sabiam. Potiassu chamou Jandira a uma conversa, e convenceu-a, a bem da segurança de todos, que aquele homem poderia ser seu marido, e que ela tinha permissão para isso. Que, sem pressa, quando a mágoa não mais fizesse parte de seu espírito, procurasse cortejá-lo, trazendo-o ao convívio dos demais.
Resignada, Jandira prometeu ao chefe que tudo faria pelo bem do seu povo, mas que jamais deixaria de ver aquele homem como inimigo pessoal. Faria o que lhe determinasse o cacique, desde que este tomasse para si o seu filho Japarandiba, Madeira de Fazer Arco, pois a partir daquele momento tinha novas funções: seria guerreira como os homens da tribo, teria que mudar seus hábitos, preparar-se para uma missão de guerra reservada pelo seu Deus Tupã, missão inusitada às mulheres índias, especial, só aceita pelo ódio que possuía seu coração.
A partir daquele dia, Japarandiba passou aos cuidados de Itapietá, Pedra que Descansa, mulher do cacique Potiassu, e todos na tribo prometeram esquecer-se de que aquele não era um filho natural do chefe, inclusive Jandira. Japarandiba, por força de um destino inusitado àqueles filhos de chão potiguar, sob a proteção de Itapietá e iluminação de Tupã, cresceria sem saber-se órfão da primeira vítima de arma de fogo da grande nação Tupi-Guarani, a partir daquele episódio, condenada ao desaparecimento vertiginoso e cruel que lhe seria imposto pelos homens vindos do mar, de terras distantes, para tingir de vermelho o chão onde o pau-brasil crescia na mata, sem despertar o interesse que a ele dava o homem branco, saído da canoa grande.
Jandira, a verdadeira mãe de Japarandiba, agora seria mulher guerreira e atrairia o assassino do pai de sua cria a conviver entre os Comedores de Camarão, índios pacíficos, brincalhões, amantes da dança, de brincadeiras e da terra que nada fazia faltar à felicidade de todo aquele povo temente à natureza. Um povo bom, amante do seu chão, feliz, e sempre pronto à reação quando fustigados pelos Cariris e Tapuias, seus inimigos territoriais. Contra aquele novo invasor, eles já percebiam, seria bem diferente. Eram em menor número, mas dispunham segredos que metiam medo, cuspiam fogo de suas naus gigantescas, e de suas mãos também saía fogo que matava à distância, com estrondo.
Eduardo Alexandre
Tribuna do Norte
11/06/05
Yuno Silva - Repórter
A cena estava armada no box do Sebo Vermelho, instalado dentro da 3ª Bienal Nacional do Livro de Natal. Cercado de amigos de longas datas, como o parceiro Marcelo Fernandes, o artista plástico Marcelus Bob — de macacão, bigode e cabelão, sentado ao lado de um Dom Quixote feito de lata — esbanjava bom humor e demostrava certa curiosidade sobre o assunto que motivou o súbito encontro: o natalense nascido no Passo da Pátria há 47 anos e criado no morro de Mãe Luíza (bairros humildes da capital potiguar) foi considerado um dos 100 maiores artistas de vanguarda do mundo, segundo a revista alemã Neue Blätter.
Conhecido por sua verve transgressora e irreverente — na medida certa — e mal compreendida por incautos provincianos, Marcelus Bob (nome artístico incorporado há tanto tempo que nem vale a pena ficar lembrando o registrado em cartório) é a personificação de um profeta da arte urbana, uma entidade que não se cala mesmo sob a ameaça de ser taxado de “maldito”.
Com ousadia e sem medo de enfrentar as adversidades impostas àqueles que resolvem encarar a vida munidos de pincéis, tintas e idéias na cabeça, Marcelus está se preparando para comemorar — em grande estilo — seus 25 anos de carreira artística com a possível publicação de um livro que une ilustrações e textos de poetas que circulam pelos becos (da Lama) da vida.
Um dos poucos, talvez o único a conseguir uma autorização oficial para grafitar os muros da cidade com seus indefectíveis Humanóides, isso em pleno anos 80, o artista não lamenta ter deixado a segurança de um emprego federal (passou em primeiro lugar em um concurso para o antigo IBDF, atual Ibama), muito menos de não ter seguido a carreira de técnico em Mineração (formado pela ETFRN, atual Cefet/RN). Sua única lamentação é o preconceito dos potenciais clientes quanto ao endereço de seu ateliê: Marcelus Bob está à procura de um novo espaço fora do morro de Mãe Luíza — “mas não muito longe, pois o cordão umbilical da Mãe é poderoso e mantém seus filhos sempre por perto.”
Seguindo o lema de Charles Baudelaire (poeta e crítico francês): “trabalho, trabalho e mais trabalho...”, para buscar inspiração, o artista conversou com o caderno VIVER:
Marcelus, para você o que significa Vanguarda nesses tempos de globalização e contemporaneidade?
Marcelus Bob: É uma avant-première, um pós-pós... por isso sempre digo que sou um “possibilista”.
E essa indicação de estar na lista dos 100 maiores artistas de vanguarda do mundo, divulgada pela revista alemã Neue Blätter. Muda alguma coisa?
Marcelus Bob: Olha, em primeiro lugar posso garantir que não estou ganhando dinheiro com isso, mas vai engrossar o caldo das grandes idéias acumuladas. Minha grande curiosidade no momento é saber como chegaram a essa conclusão e como e onde conheceram meu trabalho.
E se surgir um convite para cruzar o Atlântico para participar de alguma exposição na terra do chucrute?
Marcelus Bob: Se o meu médico me der um remédio pra dormir a viagem todinha vou numa boa. Confesso que tenho claustrofobia e passar mais de dez horas fechado num avião vai ser complicado.
Quem são os Humanóides, figuras de capuz sempre presentes em seus trabalhos e uma espécie de marca registrada?
Marcelus Bob: - Cara, são nômades subversivos... uns possibilistas. Uma pessoa encapuzada pode ser boa, má, um zorro urbano, um pastor de ovelhas, um padre, um santo, um Dom Quixote ou até mesmo o Mister M.
Atualmente como é seu esquema para vender os trabalhos já que há um certo tempo não participa de uma exposição?
Marcelus Bob: Seguinte, tenho obras espalhadas por galerias de arte mas, hoje, trabalho mais na base da encomenda — sinal que as coisas estão crescendo. Tenho obras espalhadas por, pelo menos, 12 países.
Acha que falta reconhecimento local?
Marcelus Bob: Não diria isso, pois estou vivendo há 25 anos de fazer arte.
Você sempre diz que sua arte traz uma carga significativa de “roquenrou”. A quantas anda o Grupo Escolar*, pensam em registrar alguma coisa em estúdio? (*banda de rock pesado da qual Marcelus é guitarrista, principal letrista e vocalista, e que tem esse nome por estar em constante aprendizado, como num grupo escolar. Quando estiverem preparados, a banda pode vir a se chamar “Grupo PhD” — coisas de Marcelus Bob!)
Marcelus Bob: O Grupo Escolar continua firme, forte e esporádico. Quanto a gravar, estamos conversando com o Vlamir (Cruz, do Ícone Estúdio) para ver as possibilidades. Realmente minha arte é toda em cima do rock e do repente... tem tudo a ver a arte pintada com a arte musicada.
Algum plano sendo arquitetado para um futuro próximo?
Marcelus Bob: Por enquanto não tenho nenhuma exposição marcada, estou me concentrando no projeto de montar um livro para comemorar os 25 anos de carreira. Penso em um livro com ilustrações ligadas a textos de gente como João da Rua, Dácio Galvão, João Gualberto Aguiar e Jota Medeiros, entre outros.
Você participou ativamente do “desbunde” artístico visto no final dos anos 70 e começo dos 80 em Natal. Acha que aquela magia que existia acabou?
Marcelus Bob: Não. Hoje ela é diferente, cosmopolita e urbana. Claro que os tempos do Festival do Forte e da Galeria do Povo na praia dos Artistas deixaram saudades, mas ainda temos magos circulando por aí...
Entre prédios estreitos, o casario
A lua chega no entardecer
Artistas pintam, no chão já frio
E o escuro anuncia o anoitecer
Entre os copos de bebida sobre a mesa
As pinturas tão bonitas, limpam a vista
E entre tragos de cachça e de cerveja
Tem o carinho e o talento do artista
Em silêncio, anonimato e sem ter fama
Belos papos, risadas e confissões
Entre um gole e outro, uma pincelada
Derramam nas telas os corações,
E a lua já bem alta e prateada
Se espraia sobre o meu Beco da Lama.
Chagas Lourenço
Na manhã seguinte, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes terminou sua tarefa de armação da cabana. Agora, preocupar-se-ía com o feitio de uma cama para estar mais protegido contra os pequenos bichos peçonhentos vindos da areia, e de algo onde pudesse guardar melhor seus apetrechos.
Já não sentia pressa de nada. Nesse dia, tomou o rumo da praia e decidiu-se por abater alguma ave para servir-lhe de alimentação. Como eram em grande número, não foi difícil abater várias delas com um único tiro que espalhava chumbo em bom diâmetro. Espantados com o estampido, os índios correram a contar a novidade ao chefe. Haviam presenciado os tiros das canhoneiras das naus de Gaspar de Lemos, mas aquele fogo saído de entranha coisa nas mãos do homem branco, ainda não conheciam. E voltaram a temê-lo.
O chefe Potiassu passou o dia a espreitá-lo, e como ele voltou a usar a arma de fogo, agora uma mais comprida, recostada ao ombro, na tentativa de abate de um veado que se aproximara do rio para beber, ele associou aquilo ao som de que falaram seus comandados quando do desaparecimento do guerreiro que não regressara à aldeia. Potiassu ficou imensamente intrigado com a morte do animal, afinal, Homem da Canoa Grande estava a grande distância e depois da explosão, o animal rolou por terra, inerte.
Potiassu recomendou mais cuidado com o visitante. Ficassem a distâncias mais longas, e mandou que um grupo de guerreiros voltasse ao local de onde viera o primeiro barulho semelhante àquele. Como João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes não cuidara de enterrar sua trincheira, o esconderijo foi logo encontrado pelos nativos, que levaram a notícia ao chefe. O cacique dirigiu-se ao local indicado e no fundo do buraco encontrou folhas com vestígios de sangue, deixadas pelo português na trincheira. Um dos índios, sentindo fofo o chão onde o lusitano enterrara o corpo do índio abatido, noticiou suas suspeitas ao chefe que logo mandou cavar o lugar, encontrando o cadáver já em estado de decomposição.
O achado gerou grande revolta entre os índios, que queriam do chefe a permissão para matar o visitante. Potiassu, no entanto, achou que aquilo seria precipitado, já que melhor seria conhecer seus costumes, seus segredos. Tinha-o como inimigo perigoso, mas este estava à sua mercê. Conhecendo-o melhor, conheceria aos demais, e conhecer a astúcia do inimigo era fundamental na guerra, sabia o experimentado guerreiro potiguar, convencendo seus comandados.
Enquanto Homem da Canoa Grande devorava em grande satisfação partes do veado abatido, a carne fresca a revigorar-lhe as forças, a viúva índia pranteava sua perda. Era jovem a viúva índia, e ainda carregava preso ao corpo o filho de poucos meses de idade. Sem o seu guerreiro a protegê-la, a vida tonar-se-ía mais difícil dali por diante. Ela queria do chefe reparação pelo mal que o indesejado visitante lhe causara.
Potiassu, consternado, prometeu-lhe a reparação, mas não de imediato, no calor das emoções. Refletiria sobre o acontecido e prometia dar solução breve ao problema. Os últimos acontecimentos na aldeia eram inusitados e necessitavam reflexão e análise. Que lhe perdoasse a índia Jandira, mas a guerra que se avizinhava era por demais inesperada, cabendo cautela em cada decisão a ser tomada. Haviam visto as dimensões das embarcações do inimigo, o poderio de suas armas que cuspiam fogo e atingiam alvos a grande distância. Era necessário, sim, conhecer mais sobre ele.
Os índios estavam divididos. Uns queriam a morte imediata do visitante, outros pensavam como o cacique Potiassu. O pajé Potimirim antevia desgraças para toda a tribo, e colocava-se a favor da fogueira para Homem da Canoa Grande, para que seu espírito, depois da comilança, se incorporasse em todos eles. Foi difícil aquela noite na aldeia. Só a pulso firme e decisão que constrangeu a muitos, Potiassu acalmou a ira dos revoltosos. Estaria condenado à morte aquele que atentasse contra a vida do homem solitário. Vivo, ele poderia dar melhor conhecimento do que dispunham os homens brancos. Morto, os nativos jamais poderiam saber como deles se proteger. Melhor fazer daquele prisioneiro um amigo, cativá-lo para que pudesse revelar os segredos dos homens saídos do mar. Afinal, para sobreviver, Homem da Canoa Grande iria precisar da ciência indígena. E poderia ser morto quando bem lhes conviesse.
Eduardo Alexandre
: vejo tudo por espelhos. A maior parte do tempo não enxergo um palmo sequer à frente do meu nariz. Quando fecho os olhos vejo e semeio sempre infindos horizontes sem ondes. Gosto de andar no giro da venta. Adoro vento nas costas e a sensação de voar – lembrança dos sonhos e de volitar. Sou cega, ou pior/melhor, sou míope, mas vejo melhor mesmo é pelo olho terceiro. Só coisas imateriais. “Espelhos deveriam pensar duas vezes antes de refletir”, disse Jean Cocteau. Coleciono frases e olhares. Só sendo mesmo bordadeira, costureira, faxineira, cozinheira, lambedozeira, rezadeira, cantadeira, namoradeira, sonhadeira, arteira... Se Peter é Greeway, meu way é red! Arte é isso ou é aquilo. Quilos d’artes & egos. Sum. Somos. Somos sensóriums. Neo-sofias/logias. Arre evoé. Voares. Simples assim. Simplicidade é a meta. Adoro as coisas simples. Elas são o último refúgio de um espírito complexo e isso é bem wildecivoneanidades. Eu também: “posso resistir a tudo, menos às tentações” Atiro ao Álvaro. E acerto céu estrelado. Erro & acertos. Aquilo não é necessariamente só sexo nem só Aquiles que não é só frágil calcanhar. Nem só erro. Memórias de alhures e self-references eu ab/uso. Oroborus infinda. Devoro-me a mim mesma. Influenciada e influenciável por tudo que me arrudea, vezes me fecho qual ostra para me proteger. E como papa Niet, ardo para me consumir. Ich bin, wir sind sicher eine Flamme! Penso em dois idiomas e faíscas de vários outros e me gusta assim. O mundo é o mundo e lá fora me chamam Around The Word. Eu sou é Poty. Potyguara soul. Minha vida é minha arte e minha vida é toda “com.FUSÃO”. Fusion & transfusão. AB -. Adoro menstruação. Good, good art, blood art me faz p/arte. Ars Una, species Mille. Não diga que não é. E é. Minha arte é também apropriação. O artista tem de plantar sua própria mitologia. Nuno/s Ramos. Também sou do ramo/s. Daí Civênus. Civulva Yonis. Oh, Sacro Coração de Civone! Oh, Pietá, pietá! Ciatenas atlante. Eu não sabia que era impossível, por isso fui lá e fiz. Lancei uns cartazes onde me nominei ECCE FEMME e outro Civênus, sem pretensão alguma, só doses extras de amor e arte e uma boa pitada de inocência irônica. Sei lá, pra mim isso também é arte. Sou tão Só/u Frida Civone Kahlo quanto cheia de uivos e calos. Santa Civone é boneca de pano em seu altar. Ora, ora, amém! É uma boneca pro seu consumo! Assuma e compre. Compre, compre! Nas melhores lojas dos Ramos... Incestos d’amor próprio. Poesia, pois é, poiésis. Santa, santa, de Saint Phalle Niki Nanas. Sou uma tímida cheia de ousadias, também Clarice-me Lispector e como ela sou uma “sentidora” muito mais que outra coisa. Não nasci pronta, mas mãinha me deu a luz aos nove. Meses desde 13, sim menstruação. Mãe eu fui/sou desde 22. Bianca é dez e até 21 de Julho de 2005 é 10. À vera ela é mais que tudo quanto é número que haja e sei que haja número, haja. Sou peixes, mas muito mais uma gotinha no Oceano Atlantis. 18:35h ~ 5º Latidude. 1% tufão/furacão, 70% atitude. 48% mansuetude, 99,9% de puros sonhos /ou sonhos puros. 29 bissexta de Fevereiro. Ano de lançamento: 1972. Thirty-three are better than one. Devorei Wahrol e vomitei. Como por vezes tenho acessos de baixa-estima curo-me desta sina com a obsessão por mim mesma. Ah! Tenho a obsessão de ser santa! É, preciso duma dose a mais de amor próprio e me perdoem os recalcados, eu me adoro! Canibalis-circenses sou Cici. Devorei meus amigos e lhes pari, outros – íntimos amigos – abortei e de muitas outras referências, germinei. Eu preciso destas palavras escritas, como diz vovô do Rosário, o Artur Bispo. Civone é “provocateur” dizem alguns. Meu Leitmotiv é viver. Sem Ersatz, só a Arte. Mitos. Crio. Logo. Penso. Sonho. Existo. Pedrinho Abech diz que sou “Belespécie” e me encanto com esse lisonjeio/mentira. Às vezes é bom ouvir. Sou boa sim é ouvidora, deveria criar uma espécie de “arte-ouvidoria”. Será que cola ou Cilicone? Ciclope. Ciclones. Minhas amizades se contam na palma de uma mão e meia e sou contente com esse fato mesmo assim. M’amor Dunga diz que sou boa poeta – ele deve estar pensando “poeta boa” mas vice-versa é inverdade à vera. Ele é que é poetapintor dos bons! Eu? Estou na ida. Engatinhando eubebê. Semianalfaômegabeta. Só gosto de minhas fotos acima de ¾. 5/6 já pode ser. Agora eu tenho é 33. Minha filha me ensina como é simples ser feliz. Existo, sonho, penso, logo, crio, mitos. Paizinho se chama Cícero – ele agora é mais anjo! – e ele me codinomina Tetha – um dia fico sabendo mais porquê. Mamãe se chama Ivone e o meu nome não tem significado só tem significante, é uma signifunção, signinfluência, signiderivação, signifluição, signifruição, ou seja, meu nome é pura signinvenção. Aliás, eu sou uma signinventora, uma simbolinventora, uma neoneologistanata pura e coalhada. Realmente, realmente... Só o que faço explica o que sinto – Só o que sinto explica o que faço. Como Pessoa sei que: nenhum rio é mais belo que o Potengi que passa por minha aldeia. Contudo com tudo, não há ninguém que não seja estranho a si mesmo diz Neitzsche e mais vezes com ele concordo e com cordas. No fundo do fundo eu soul só poeta, o resto, ou melhor, tudo o mais que realizo e sonho são apenas as alegorias do que escrevo. Tudo que escrevo e faço está entre a psiconeurose e a imaginação artístico-poética. “El arte es garantia de salud mental” pra mim e para Louise Bourgeois também. Além disso, também I love Peter Beard. E love também Blecaute Borges... Assim como: I’ll write whenever I can. Assim como: é minha frase favorita de canibalismo assim como. Civone é uma alegorista. Quem diz isso é ela mesma eu que escrevo. Escrava de mim mesma me assusto quando tenho que ser branca-escrava de outrens. Eis nosso/a Bandeira: “Estou farto do lirismo comedido. (...) Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. Tal qual Clarice, “não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido”. Eu não: quero é uma verdade inventada” e assim também digo: como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entende o que digo. E então adoro. ------- A cada dia me sinto mais Lótus,,, Meu nome também é ninguém. Civone e sua veia de garota fora do programa... Diz meu amado Paulo Augusto Pagu. Uma coisa/pessoa que é uma coisa/pessoa pode ser ao mesmo tempo outra coisa/pessoa. Coisas& Pessoas não são as mesmas coisas. Escrituras Sangradas não estancam. Poesia não tem pé nem cabeça, tem coração. Civone é neo-barroca. Existo. Sonho. Penso. Logo. Crio. Mitos. A arte é um meio e eu sou médium. Quem nunca cometeu um poema que atire-se às palavras. “Ser pedra é fácil, o difícil é ser vidraça". NÃO ESTAMOS TERMINADOS;
Foi estudante do velho Atheneu da Junqueira Ayres e do Colégio Marista. Foi esportista e dirigente de clubes e federações. Conheceu e conviveu com figuras notáveis da boemia. Fez jornalismo durante décadas e, hoje, se dedica ao magistério superior.
Há mais de um ano, ele vem publicando em Dois Pontos histórias pitorescas, ricas de humor e de alegria de viver, acontecidas principalmente no bar da Confeitaria Delícia, lá na Ribeira. Essa história e muitas outras ele reuniu no livro Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia, editado pela Clima, cujo lançamento ocorre nesta sexta-feira. Este depoimento que ora publicamos, vale como uma amostragem da sua personalidade e do seu estilo de vida.
Entrevistadores: MARCOS AURÉLIO DE SÁ E TICIANO DUARTE
TICIANO - Você é um homem que conviveu com figuras famosas da boemia natalense; que movimentou a vida esportiva e social da cidade durante décadas, através do jornalismo e da sua atuação nos clubes de serviço e na Maçonaria. Agora você resolve colocar num livro um pouco das histórias que você sabe. Mas vamos falar sobre você mesmo. Comece falando sobre o seu tempo de estudante do Atheneu.
JOSÉ ALEXANDRE - Comecei a estudar no Atheneu aí por volta de 1936. Sempre fui um aluno muito relapso, meio desligado... Uma vez, deixei de ir fazer uma prova para terminar de jogar uma partida de botão, com Zé Lins. E, por causa disso, e por ter dado uma resposta meio irreverente ao professor Hostílio Dantas, meu pai me transferiu para o Marista. Eu estava numa aula de desenho quando Hostílio - que era um grande pintor e uma grande figura humana, mas que não tinha muito pulso em sala-de-aula - se vira para mim e diz: “Como é que o senhor vem para uma aula de desenho e não traz um lápis?” Era um dia de inverno e eu respondi: “Esqueci o lápis, mas trago aqui outro objeto pontudo... que é o meu guarda-chuva”. (Risos) Ele se dizia ou era primo de papai e, por um azar meu, no mesmo dia ele se encontrou com o velho e fez uma queixa tremenda, porque um parente dele o estava desmoralizando em classe. À noite, papai me interpelou: “O senhor está estudando para ser alguma coisa, ou para ser palhaço?” E, de imediato, cortou a minha mesada, me proibiu de ir a cinema por um mês, e, no fim do ano, me transferiu para o Marista, onde eu sofri tremendamente.
TICIANO - Quanto tempo você ficou lá?
JOSÉ ALEXANDRE - Estudei dois anos no Marista. Não me adaptei de forma nenhuma àquele clima nazi-fascista que existia na época e, assim, voltei para concluir o quarto ano lá no Atheneu. Dessa turma me lembro de Romeu Aranha, Otávio Rabelo, José Waldenício de Sá Leitão... Aquele era o tempo em que ainda se passava sabão nos trilhos do bonde da Junqueira Ayres para ele deslizar e não subir a ladeira. O primeiranista do Atheneu era considerado o fera. Fui muitas vezes obrigado pelos mais velhos a subir na balaustrada do velho Atheneu e dar um viva a El caballero de la esperanza que eu nem sabia quem era. Só anos depois, é que vim a saber que se tratava de Luís Carlos Prestes.
TICIANO - O que era Natal naquela época?
JOSÉ ALEXANDRE - Natal se resumia à Ribeira, onde se situava o comércio tradicional, os grandes empórios, os grandes atacadistas, as firmas exportadoras; a Cidade-alta, ainda noventa por cento era área residencial... Chegava até a avenida Deodoro. Daí para frente havia os sítios do Tirol e as matas de Petrópolis. O Alecrim ainda era um bairro incipiente, conhecido mais por conta do seu cemitério.
TICIANO - Depois do Atheneu, você fez o quê?
JOSÉ ALEXANDRE - Fui fazer o curso clássico no Colégio Carneiro Leão, em Recife, o famoso Carneirinho da rua do Hospício. Em Recife, eu morava com a minha irmã Odila. Eu estava muito satisfeito ali porque, além de morar com minha irmã, meu pai me mandava uma mesada. E eu, por intermédio de Mauro Mota - que era muito amigo do meu cunhado Albert, um alemão - acabei conseguindo um emprego de revisor no Diário de Pernambuco. Minha irmã mostrou a Mauro Mota o que eu chamava as minhas produções. Ele leu, achou graça, e me levou para o jornal, onde entrei como revisor e fiquei sendo uma espécie de regra-três na redação.
TICIANO - Em que ano foi isso?
JOSÉ ALEXANDRE - Já em 1946, quando Mauro Mota era secretário do Diário de Pernambuco e o diretor era Aníbal Fernandes. Por uma marcação do chefe da revisão - que me chamava de doutor porque me achava rico e dizia que eu estava ocupando o lugar de outrem mais pobre que talvez necessitasse mais do emprego - passei a ficar com a responsabilidade de fazer a revisão dos artigos de Aníbal Fernandes. Ele escrevia manualmente e sua letra eram verdadeiros hieróglifos. Mas eu banquei o Champolion: descobri a técnica de Aníbal e acabei sendo até elogiado por ele que dizia que eu tinha sido o único revisor que entendia sua letra. Estávamos naquele tempo na fase da redemocratização. O Diário de Pernambuco era freqüentado por grandes figuras da política. Foi quando conheci Gilberto Freyre e todos aqueles estudantes que fizeram o movimento de 45... Eu inclusive estava na calçada do jornal quando a polícia de Etelvino Lins, criminosamente, arcabuzou Demócrito de Souza Filho, que acabou transformado no mártir da mocidade e do povo pernambucano na luta contra a ditadura. Por trabalhar no Diário de Pernambuco, cheguei uma vez a ser preso. Etelvino Lins tinha uma técnica muito interessante... Depois daquela bombástica entrevista de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, o país passou a viver um regime aparentemente liberal. E assim o Diário de Pernambuco começou a fustigar o Estado Novo, a criticar Agamenon Magalhães que era o interventor, e Etelvino Lins que era o chefe-de-polícia. Assim, Etelvino Lins mandava, de vez em quando, chamar à chefatura de polícia um dos jornalistas para interrogatório. Uma vez, eu estava à tarde na redação, sozinho, quando vi entrarem dois homens de chapéu. Só por conta do detalhe do chapéu, concluí que eram investigadores. Eles perguntaram a mim por diversas pessoas que escreviam no jornal. Como não estava ninguém, eles resolveram me levar. Fui à delegacia, onde me deixaram durante seis horas sentado numa cadeira, sem que tomassem conhecimento de mim para coisa nenhuma, nem para oferecer um copo d’água. Era como se eu não existisse! Naquelas seis horas que passei ali, tive uma saudade imensa de casa, e cheguei à conclusão que a vida que levava em Natal era muito boa. Eu só imaginava ser levado para Fernando de Noronha, preso! Depois de seis horas de cadeira, Etelvino Lins me chamou e, abrindo o Diário de Pernambuco, apontou para o editorial e perguntou: “O senhor sabe quem escreveu este artigo?” Respondi que não sabia. E não sabia mesmo! Eu era um foca. Como é que poderia saber quem tinha escrito um editorial?... Ele virou-se secamente para mim e afirmou, com aquela sua cara muito dura e muito feia: “Olhe, eu não gosto de mentiras. Se o senhor sabe quem escreveu, é melhor dizer.” Eu tornei a responder: “Doutor Etelvino, se estou dizendo que não sei, é porque não sei mesmo”. Ele olhou para mim com profundo desdém e, como quem se despede de um cachorro, falou: “Pode ir !” Quando pisei na rua da Aurora, senti uma das maiores alegrias da minha vida. Tive vontade de abraçar o povo, de fazer discurso, de cantar, de chorar... E como não fiz nada disso, fui para a Phoenix e tomei dez chopes com sanduíches de presunto, que era o prato famoso da casa.
MARCOS - Nesse tempo você já era boêmio, lá por Recife?
JOSÉ ALEXANDRE - Eu tinha minha turma e tomava minhas cervejas. Recife era profundamente diferente de Natal. Lá a gente podia tomar cerveja nas calçadas, olhando as meninas fazendo o footing, na Rua Nova. Ficávamos ali, na Phoenix, nos fins de tarde, disputando cerveja na porrinha. Bebíamos pouco, até porque o nosso capital era muito limitado. Somente na primeira semana, quando chegava a minha mesada, eu me dava ao luxo de ir jantar no Leite ou na Helvética, preferencialmente na Helvética, onde eu era tão conhecido da casa que os portugueses me faziam um fiado. Outra coisa que me prendia ao Recife era meu cunhado Albert Van Drunen, que era co-gerente da firma Alberto Lundgren & Cia, hoje Casas Pernambucanas. Ele era muito festejado. Um advogado da firma, para lhe puxar o saco, me chamou para trabalhar no escritório dele, como estagiário. Nessa época, eu já fazia planos de estudar Direito, e estava inflando de empáfia, pois militava na imprensa, trabalhava num escritório de advocacia e estava comprometido e pensava em casar. Foi quando minha família impôs minha volta para Natal, para ajudar a papai na sua agência de despachos.
TICIANO - Seu pai era despachante aduaneiro, não é isso?
JOSÉ ALEXANDRE - Exato. Eu fiz então concurso para ajudante de despachante, passei, e fiquei com ele nessa condição, até que, no governo de Juscelino Kubitschek, fui nomeado despachante também. Naquele tempo, o despachante era nomeado diretamente pelo presidente da República, cumpria um juramento e tinha os mesmos deveres de um funcionário público. O inspetor da Alfândega era praticamente o nosso chefe, mas nós não éramos funcionários; éramos remunerados pelas partes, os chamados comitentes, ou seja, o comércio em geral que recorria aos serviços de transporte marítimo. Todo o comércio de Natal era abastecido por navios, de modo que o escritório do meu pai - o velho Zé Alexandre - era um dos mais conceituados da praça e também famoso pela roda de elementos que o freqüentava para o bate-papo.
TICIANO - Quer dizer que você interrompeu seus estudos ao voltar para Natal?
JOSÉ ALEXANDRE - Sim, mas o velho meu pai praticamente me obrigou a fazer Direito. E lá fui eu estudar Direito em Alagoas. Naquele tempo, não havia faculdade em Natal. Em Recife se exigia uma freqüência rígida às aulas. Mas, em Maceió, através de bolas aos bedéis, ou através de colegas que respondiam às chamadas por nós, e de algumas aulas que a gente assistia, tínhamos direito a fazer as provas finais. Foi assim que terminei meu curso em 1951. Na minha turma éramos cinco norte-riograndenses: Amauri Lopes da Silva, José Xavier da Cunha - que era deputado estadual -, José Batista Emerenciano, João Damasceno de Menezes e eu. A princípio, era muito difícil o nosso deslocamento de Natal para Maceió, pois tínhamos que ir de trem. Saíamos daqui às cinco horas da manhã e chegávamos em Recife às onze da noite, quando no horário. No dia seguinte, reembarcávamos em Recife com destino a Maceió às oito da manhã e só chegávamos às oito da noite. No fim da viagem, passávamos ainda uns dois dias com a cabeça balançando no mesmo ritmo do trem, trepidante. Devo o fato de ter me formado a papai, pois eu não queria mais estudar. Eu dizia sempre que se já era despachante, não precisava mais ser bacharel em Direito, pois nunca iria seguir a carreira, como, de fato, não segui. Somente muitos anos depois, o título me valeu, quando fui ser assessor jurídico do I.P.E., já nos anos 70.
MARCOS - Que lembranças, que fatos pitorescos você guarda daquela fase em que estudou em Maceió?
JOSÉ ALEXANDRE - Logo que o transporte aéreo foi se desenvolvendo, surgiu, aqui em Natal, o Lóide Aéreo. Nessa altura, a turma de natalenses que freqüentava a Faculdade de Direito em Maceió já era tão grande que nós fretávamos um avião cada vez que tínhamos que viajar para fazer provas. Os aviões do Lóide eram péssimos e faziam uma escala em Campina Grande, cujo aeroporto era perigosíssimo. Mal o avião pegava embalagem para decolar, já estava praticamente em cima das serras. Nós todos ficávamos morrendo de medo. É tanto que botamos no Lóide Aéreo o apelido de Jesus está chamando. Por coincidência, no ano anterior, tinha havido um grande desastre aéreo na Itália, com o time do Torino. Assim, quando no aeroporto de Parnamirim eram chamados para embarque os passageiros com destino a Campina Grande, Recife, Maceió, os mais engraçados pilheriavam: “Está embarcando nesse momento a equipe do Torino”. Já a bordo, os engraçadinhos também cuidavam de amedrontar os mais medrosos, apontando para supostas manchas de óleo nas asas do avião ou afirmando que o mesmo estava perdendo altura, e coisas desse tipo. Lembro bem que, nessas horas, Boanerges Soares de Araújo puxava do bolso um terço que não tinha mais tamanho e só abria os olhos e só deixava de dedilhar o terço, quando o avião aterrissava no aeroporto de Palmares. Se não me engano, foi num desses aviões que morreu o nosso governador Dix-Sept Rosado...
MARCOS - O que mais você se lembra daquele tempo?
JOSÉ ALEXANDRE - No ano em que me formei, em 1951, exatamente quando estávamos assistindo à missa de ação de graças, no dia 8 de dezembro, correu a notícia de que estava havendo a primeira greve classista do país. Era a greve dos aeroviários. Por causa disso, nós, que tínhamos viajado para Maceió apenas para as festas de formatura, fomos obrigados a passar uma semana inteira e, praticamente com a roupa do corpo, sem termos o que fazer. Nosso interesse era voltar imediatamente para Natal, onde nossos familiares tinham preparado as melhores festas em nossa homenagem. Recordo que meu colega José Batista Emerenciano se queixava o tempo todo de que a sua mulher tinha preparado uma galinha gorda para recepcionar a família. E ele não sabia se tinham comido a galinha... Se ainda estavam esperando por ele. Amauri Lopes da Silva, que sempre foi muito fleumático, e caladão, só fazia rir. Enquanto isso, eu e José Xavier - que era deputado estadual e tinha, dias antes, arrendado uma mina e estava cheio de dinheiro - íamos festejar a nossa formatura nos bares. Emerenciano ficava furioso e dizia: “E se, de repente, chegar um aviso da companhia para nós embarcarmos? Onde é que vamos encontrar vocês ?” José Xavier respondia: “Procure-nos pelos bares, pois Maceió é menor do que Natal”. José Emerenciano ficava possesso com aquela brincadeira. Muito preocupado, toda hora ele se dirigia ao escritório da companhia aérea e dava uma espinafração no gerente e nos funcionários. Por azar dele, quando, dias depois, fomos avisados de que a greve estava terminando e que logo pousaria em Maceió o primeiro avião com destino a Natal, a companhia comunicou isso a todos, menos a José Emerenciano. Chegamos no aeroporto e fizemos então um protesto: “ou viajamos todos juntos, ou não viajava ninguém!” E, aí, tiveram de esperar que Emerenciano aparecesse.
MARCOS - Fale sobre seu ingresso na vida boêmia de Natal.
JOSÉ ALEXANDRE - Trabalhando no escritório do meu pai, na Praça Augusto Severo, eu ficava a poucos passos de distância da Confeitaria Delícia, onde o português Olívio mantinha um bar reservado. A confeitaria tinha sido fundada por Jacob Lamas e Amadeu Grande, em 1942, em plena guerra, quando a Ribeira ainda era o bairro chique de Natal. Na confeitaria se vendiam bombons e comestíveis finos, produtos importados, como sardinhas portuguesas, vinhos... O segundo dono dela foi Sinval Duarte Pereira, que, contra todos e contra tudo, teve a idéia de chamar Olívio Domingues da Silva para ser o gerente. Olívio era tido na cidade como um sujeito muito grosso. Ele era o caixa da Casa Machado e tratava todo mundo muito mal. A viúva Machado abastecia três quartas partes de Natal e Olívio não tinha nem tempo de conversar com ninguém, tanto era o movimento da firma. Ele fazia as contas manualmente e, em geral, errava nas contas, criando uma série de polêmicas com os fregueses. Mas, quando chegou na Confeitaria Delícia, ele se transformou. Se tornou amável, talvez por acreditar que aquela era a sua oportunidade. Sem que ninguém soubesse, ele tinha profundas mágoas da Casa Machado, porque ganhava muito pouco e saiu de lá sem nenhuma indenização. Sinval Duarte Pereira era um grande rapaz, uma grande inteligência, um homem de muitas idéias. Ele trabalhava com o pai, o livreiro Ismael Pereira, mas não tinha jeito para aquele negócio. É tanto que partiu para comprar a confeitaria, depois ingressou no campo hoteleiro com o Hotel Bela Vista, e, por fim, foi trabalhar com minérios, vendendo muita diatomita para o sul do país. Mas Sinval não tinha nenhuma vocação para o comércio de livros. Dos filhos do velho Ismael Pereira, ele era o que apresentava menor vocação para vendedor. Trancado, sisudo, ele não tinha a malemolência dos seus irmãos Wálter e Moacir, que eram muito alegres, expansivos. Sinval não nasceu para ser dono de livraria. Depois de seis anos como gerente da confeitaria, Olívio acabou comprando o negócio a Sinval. Olívio, como o fazem todos os portugueses donos de negócios de estivas, inventou de também fazer, nos fundos da Confeitaria, um barzinho . Eram três mesas com quatro cadeiras, escondidas por um reposteiro, pois naquele tempo só se bebia escondido. Em Natal era feio beber, mesmo que fosse uma simples cerveja; ao contrário de Recife, onde os bares serviam os fregueses nas calçadas... O bar de Olívio passou a ser freqüentado pelos grandes comerciantes de Natal: Amaro Mesquita, Osvaldo Medeiros... e figuras da boemia que iam lá, como Francisco Pignataro, o pessoal da Recebedoria de Rendas, da Delegacia Fiscal, dos Correios, da Alfândega... Havia até uma competição para ver quem era que bebia mais: se era o pessoal da Alfândega ou o da Recebedoria. Por intermédio de um amigo, que foi Eider Reis - filho do velho Enéias Reis -, nós descobrimos Olívio e passamos a freqüentá-lo.
TICIANO - Nós, quem? Quem era a sua turma?
JOSÉ ALEXANDRE - Eider Reis, José Guerra, Quinderé, Múcio Teixeira, Mozart Silva, Claudomiro Batista de Oliveira - Dozinho -, Heráclio Pires... Havia uma grande predominância de bancários. É tanto, que muita gente pensava até que eu também era do Banco do Brasil. Esse grupo fundou, na Confeitaria, o Gango Tetéu. Como nós freqüentávamos assiduamente a Confeitaria, e fazíamos muita despesa, Olívio engraçou-se da gente e começou a nos prestigiar. É tanto que, fundado o “ Gango”, botamos logo uma placa na geladeira do bar e no cofre, com os seguintes dizeres: “ Propriedade do Gango Tetéu S/A”. Olívio achava uma graça danada , porque passamos a ser os seus maiores clientes , embora muitas vezes à base do fiado. Com o atrelamento de Dozinho ao nosso grupo - passando a ser considerado o compositor do Gango Tetéu -, nós resolvemos fazer um bloco de carnaval. Compramos tamborins, reco-recos, pandeiros, e começamos a ensaiar músicas para o carnaval. Foi quando surgiu a idéia de, a exemplo do “Jardim da Infância” e dos “ Pingüins do Amor” - que eram outros blocos carnavalescos - , “assaltarmos” as casas dos nossos amigos e os fregueses de Olívio. O presidente do Gango Tetéu era uma figura muito engraçada - Heráclio Pires Júnior. Uma das regras que Heráclio ditava para o bloco era: “Sujar a casa do homem, beber comedidamente, e cantar o mais alto possível”. É tanto que, um dia, durante um assalto, ele pegou Einar Varela sem cantar e deu-lhe uma ordem em linguagem empolada: “Tenha a hombridade de cantar!” Pingüim respondeu que estava muito rouco. Heráclio então determinou: “Pelo menos fique abrindo a boca, para as pessoas da casa verem que você está satisfeito, pois só assim nos convidarão de novo, no próximo ano”. Outra regra baixada por Heráclio era: “ Pouco enxerimento com as moças! Converse mais com os mais velhos”. Nossa turma era formada por gente de elite, que sabia se comportar. E não faltavam convites.
TICIANO - Vocês depois fundaram uma sede para o Gango Tetéu...
JOSÉ ALEXANDRE - Fundamos o Clube Tetéu, na avenida Circular, que foi mantido por um ano e meio. Ficava ali vizinho a onde é hoje o Hotel dos Reis Magos.
TICIANO - Foi lá que aconteceu um famoso incidente com um político ilustre da cidade...
JOSÉ ALEXANDRE - O homem que tomou banho nu!... Ele deve a mim não terem virado o carro dele!
TICIANO - Conte essa história. Ele tomou mesmo banho nu na praia?
JOSÉ ALEXANDRE - Isso aconteceu mais ou menos às quatro e meia da manhã, quase no fim de uma festa que nós promovíamos no Clube Tetéu. Creio que ele fez aquilo sem espírito de maldade e sem nenhum propósito de escandalizar ninguém. Estávamos fazendo, naquele dia, a festa de inauguração do Clube, com a presença das melhores famílias da sociedade. Então, Jessé Freire, já quase de manhã, convidou Ailton Gazzaneo para tomar um banho. Um oficial do Exército, que era muito ligado ao Clube do Tetéu, mas que era neurótico de guerra, avistou os dois nus, já se encaminhando para o carro . Ele incitou a turma. Todo mundo puxando fogo achou que aquilo era um acinte às famílias presentes e partiu para a agressão. Quiseram virar o carro de Jessé e, tinha gente, falando até em linchá-los. Graças a minha ponderação, contornei tudo, mostrando ao pessoal que não era possível cometermos um crime pior do que eles tinham cometido. Graças a este meu gesto - embora eu nunca tenha precisado de Jessé para coisa nenhuma! - ele se tornou um grande amigo meu. Aquele fato teve um reflexo negativo muito grande para o Clube, pois a sociedade passou a boicotá-lo. As famílias deixaram de freqüentar o Tetéu com medo de que outras pessoas também partissem para imitar Jessé.
TICIANO - Fale agora sobre sua participação no jornalismo e no esporte natalense.
JOSÉ ALEXANDRE - Entrei no jornalismo da seguinte maneira: em 1954, circulava diariamente O Poti, que era o matutino “ Associado”. Lá trabalhavam grandes figuras humanas: Antônio Pinto era o secretário; Edilson Varela era o diretor; José Cavalcanti de Melo era o gerente... E havia figuras na redação como Ticiano Duarte, um certo britânico, Veríssimo de Melo, Ivanaldo Lopes, Nazareno Aguiar, João Meira Lima... Américo de Oliveira Costa e Edgar Barbosa escreviam os editoriais; Xavier Pinheiro era era o secretário-adjunto; Domício Ramalho era o repórter policial... Numa determinada noite, Antônio Pinto ou não gostou de uma matéria esportiva ou achou que estava faltando alguma coisa. O redator esportivo era Aluízio Menezes, um grande amigo meu. Com aquele seu jeito estabanado, Antônio Pinto mandou um contínuo do jornal acordar Aluízio para que viesse refazer a matéria. Acontece que na casa de Aluízio havia uma pessoa muito doente e o contínuo fez um barulho tão grande que acordou a rua inteira. Aluízio achou-se ofendido e pediu demissão. Dias depois, Odilon - meu irmão - encontrou-se com Edilson Varela e quando ele falou da saída de Aluízio do jornal, Odilon lhe perguntou: “Por que você não convida Alexandre para ficar no lugar dele? Ele é jornalista e gosta muito de escrever sobre esportes”. Nessa época, eu já era presidente da Federação Norte-riograndense de Basquetebol. Edilson me fez o convite, o que achei ótimo, pois sentia que, como jornalista, poderia dar uma ênfase maior aos esportes amadores, principalmente ao basquete. Naquele tempo, toda a cobertura era dada apenas ao futebol. Chamei, então, vários jornalistas para trabalharem comigo, como Raimundo Ubirajara de Macedo, José Procópio, Maurício Carrilho Barreto, Luís Arnaldo Câmara, que escrevia Remadas e braçadas... Convidei para ser colaborador do jornal a figura de Humberto Nesi, que escrevia a coluna Ora bolas duas vezes por semana. Na verdade, renovei o jornalismo esportivo, ao ampliar a cobertura para todas as modalidades de esportes e ao convidar os próprios desportistas para colaborarem no jornal. Eu tinha uma coluna diária que se tornou muito apreciada, com o título Dizem por aí... onde eu fazia um pouco de gozação. Na época, as figuras do esporte achavam a maior glória sair na minha coluna.
TICIANO - Fale sobre o trabalho na redação do jornal naquele tempo.
JOSÉ ALEXANDRE - A redação era dirigida por Antônio Pinto, um dos intelectuais que, juntamente com Edgar Barbosa, imerecidamente, acabaram ficando em segundo plano na literatura norte-riograndense. Edgar, porque se limitou, durante mais de dez anos, a ser o fazedor de discursos e de relatórios de uma certa figura que eu não quero dizer o nome; e Antônio Pinto porque, depois de ser diretor de A República, foi para o Rio de Janeiro, onde não teve a projeção devida - acabou sendo secretário de O Jornal, no qual escrevia uma coluna esportiva que nunca alcançou destaque. Antônio Pinto era uma figura gozadíssima! A redação de O Poti era ali na descida da Ribeira, num prédio sem nenhuma ventilação. O calor era insuportável. Assim, logo que ele chegava na redação, tirava o paletó, a gravata, a camisa, e ficava nu da cintura para cima. Foi assim que, durante uma noite, entrou de redação a dentro, e foi recebido, o embaixador da França no Brasil, com o agente consular em Natal. O homem ficou horrorizado ao ser recebido pelo secretário do jornal seminu... Eu digo que renovei o jornalismo esportivo porque, com a equipe que formei, e com os conhecimentos que tinha junto aos dirigentes de clubes, eles me confidenciavam coisas que somente eu noticiava, como furo de reportagem. Às vezes, eu chegava à noite no Grande Ponto, já depois do fechamento do jornal, quando, de repente, tomava conhecimento de um fato importante. Então, eu corria para o telefone e ligava para o jornal. Muitas vezes quem atendia era Ticiano. Aí, eu perguntava: “Ticiano, será que ainda dá para colocar uma manchetinha?” Por conta disso, me botaram o apelido de Manchetinha, que valeu durante muitos anos.
TICIANO - E que outras figuras da redação você recorda?
JOSÉ ALEXANDRE - Havia outra grande figura que era Domício Dantas Ramalho. Todos nós ganhávamos muito pouco e vivíamos pleiteando aumento de salário, sem êxito. Tenho impressão que, por falta de cadeiras - pois as instalações do jornal eram precaríssimas - no gabinete de Edilson Varela uma funcionária sempre se sentava no colo dele (Risos). Vários funcionários flagraram essa situação e, por coincidência, a cada um deles Edilson logo cuidava de dar um aumento. Por conta disso, quando a gente falava em salário, Domício ficava repetindo o tempo todo: “Eu só queria pegar! Eu só queria pegar!” Aí Edilson passava, escutava as palavras de Domício e o repreendia: “Seu Domício, o senhor se comporte e escreva suas matérias com o devido cuidado. E vamos acabar com essas pilhérias! (Risos).
TICIANO - Além de presidente da Federação de Basquete, o que você foi mais no meio esportivo?
JOSÉ ALEXANDRE - Fui presidente da Federação de Basquete e tive a felicidade de, na minha gestão, inaugurar o Ginásio Sylvio Pedroza. Fizemos então um torneio com as equipes locais - AABB, Bangu e Santa Cruz, e chamamos o Astréia, da Paraíba, e o Jet, de Pernambuco, que eram os times campeões daqueles Estados. E o fato é que vencemos esse torneio e aquilo nos causou grande entusiasmo, por acharmos que o nosso basquete estava muito evoluído. Foi aí que tivemos a idéia de participar do XXI Campeonato Brasileiro de Basquetebol que se realizaria em Belo horizonte. Fui agregado à delegação na qualidade de tesoureiro. No aeroporto, ao pagar uns excessos, o dinheiro acabou. Quando chegamos no Minas Tênis Clube, onde disputaríamos as nossas partidas , as grandes novidades eram as tabelas de vidro, que nós nunca tínhamos visto. Por causa disso, nossos atletas entraram na quadra muito nervosos. Nós não tínhamos nenhuma técnica, e acabamos perdendo as partidas e acabamos perdendo as partidas e fomos desclassificados. Mas a viagem foi extremamente proveitosa porque entre os nossos jogadores estava José Augusto, que assimilou tudo o que viu de novo, despertou para as técnicas modernas do jogo e ao voltar para Natal acabou se transformando num grande técnico, que revolucionou o nosso basquete. Eu voltei convencido de que nós só poderíamos aprender basquete se fizéssemos grandes temporadas com equipes de fora. E então, como presidente da Federação, me meti a convidar equipes do Ceará, de Pernambuco, da Bahia, do Rio de Janeiro... Foram promovidas vinte temporadas em dois anos. Eu tinha um acordo com Sylvio Pedroza: se as promoções dessem lucro, este seria da Federação; se dessem prejuízo, o Estado completava as despesas. Como desportista, ele nos dava uma ajuda valiosa. Certo dia, ele me mandou chamar com urgência ao Ginásio, que estava sendo visitado pelo então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek. Sylvio então virou-se para mim e perguntou: “José Alexandre, qual o clube mineiro que você gostaria de ver jogando aqui em Natal?” Eu respondi: “ O sexteto feminino de voleibol e o quinteto masculino de basquete do Minas Tênis Clube”. Juscelino na mesma hora prometeu que mandaria os dois times para uma temporada. Naquela época, além do basquete, o quente era o voleibol feminino. As preliminares das partidas de basquete eram sempre disputadas pelas moças do voleibol, que entravam sempre nervosas nas quadras porque estavam mostrando as coxas... Passados dois ou três meses daquela promessa, eu fiquei cobrando de Sylvio a vinda dos mineiros. Até que um belo dia chega um telegrama: “Delegação Minas Tênis Clube chegará a Natal próximo sábado”. Juscelino mandou a delegação num avião especial, com ordem para que não houvesse nenhuma despesa ao nosso encargo, nem mesmo a hospedagem. Assim, em retribuição, nós resolvemos oferecer ao pessoal um almoço típico na praia da Redinha, organizado pelo finado Zerôncio. Os mineiros quando viram a praia ficaram loucos: pareciam meninos, correndo para cima e para baixo! Resolvemos entäo fazer duas perfídias: a primeira, oferecer uma batida como se fosse refresco; e a segunda, organizar um passeio até Genipabu, para que eles ficassem muito queimados e sofressem as conseqüências na hora do jogo. Quando foi a noite, os mineiros estavam todos da cor de camarão. Não sei se por causa disso, ou se porque o time da AABB já estava num estágio de grande evidência técnica, nós vencemos a partida por um ponto. Na Redinha, tínhamos feito demonstrações sobre o nosso carnaval para que os mineiros vissem como se dançava o frevo, e na ocasião, levamos para lá confete e serpentina em quantidade. Era tanto confete que sobrou. À noite, quando Euclides Lira sentiu que o nosso time podia vencer o jogo, cuidou então de distribuir aquele confete com a assistência. E assim que a AABB venceu, a assistência inteira começou a jogar confete na quadra. O presidente da delegação mineira, que era um gentleman, dizia a mim: “ Dr. Alexandre, estou muito satisfeito com a recepção que os senhores nos estão oferecendo. Estamos radiantes com Natal. Só não perdôo são esses confetes. Os senhores tinham tanta certeza de que iam vencer o jogo que compraram um estoque! E aquele sol que o senhor dizia que não queimava, heim, Dr. Alexandre?! E aquele refresco que o senhor disse que até as moças bebiam?
MARCOS - Você também se envolveu com futebol de salão, não é isso ?
JOSÉ ALEXANDRE - Depois do basquete , enveredei pelo futebol de salão e fui fundador da Federação deste esporte aqui no Estado. Antes disso, Luiz G. M. Bezerra concebeu a idéia de fundarmos uma Associação de Cronistas Esportivos, reunindo todos os cronistas da cidade que até então viviam como gato e cachorro, quase que diariamente se descompondo uns aos outros pelos jornais e pelos microfones das rádios. Luiz G. M. Bezerra achava que aquilo era um absurdo, uma coisa que não existia em parte nenhuma e que era necessário mudar aquele comportamento. Foi assim que criamos a nossa Associação, a ACERN (Associação dos Cronistas Esportivos do RN). Mas continuaram a existir duas alas, a de Aluízio Menezes e a de Roberval Pinheiro, a quem João Machado chamava de “Robinho Fufu” ou seja, “ Robinho Fuxico”. Fundada a ACERN, um ano Aluísio era presidente e outro ano era eu, e nunca demos chance a Roberval, o que, no fim, verifiquei que foi uma grande injustiça. Depois que saí de “O POTI” para a “Tribuna do Norte” e lá passei a conviver com Roberval, foi quando descobri que ele era uma figura, um bom amigo e um excelente jornalista. Mas, antes, estávamos tão impregnados pela rivalidade que existia que nós tínhamos com ele uma certa prevenção. Como presidente da ACERN, resolvemos a cada ano promover um grande torneio em todas as modalidades esportivas. Basquete, voleibol, pesca, remo, caça-submarina e mesmo futebol. E foi aí que me voltei para o futebol-mirim, esporte que era praticado no América Futebol Clube pela alta sociedade natalense. Verifiquei então que aquilo era loucura. O pessoal jogava segundo uma regra inventada aqui mesmo. A trave era tão pequena que se um sujeito mais gordo fosse ser o goleiro, não tinha perigo da bola entrar. Foi aí que eu importei regras do futebol-de-salão e convenci os clubes a tomarem parte num campeonato promovido pela ACERN. Inscreveram-se 15 equipes. Foi um sucesso tão grande que antes do fim do torneio, nós fundamos a Federação Norte-Riograndense de Futebol de Salão, da qual fui o primeiro presidente. A exemplo do basquete, fizemos grandes temporadas trazendo a Natal os campeões dos Estados vizinhos.
TICIANO - Por que você se afastou das atividades esportivas?
JOSÉ ALEXANDRE - Eu começava a verificar que aquilo estava prejudicando as minhas atividades comerciais. Estava deixando o meu escritório em terceiro plano. Papai não dizia nada, mas eu notava que para fazer esporte como eu fazia, e para escrever sobre esportes, eu praticamente já não podia comparecer ao meu escritório. Muitas vezes, tive que não aceitar mandatos, tive que renunciar às reeleições, e terminei até deixando a imprensa diária, embora continuasse colaborando na “ Tribuna”, n”A República”, no “Correio do Povo” e até no “Jornal de Natal”, de Djalma Maranhão.
TICIANO - Você conviveu com Djalma Maranhão?
JOSÉ ALEXANDRE - Eu o conheci através do esporte. Ele me incentivava muito naquelas temporadas que eu promovia e em tom de brincadeira dizia que eu era doido em topar aquelas paradas. Uma vez, quando Djalma era diretor da Rádio Nordeste, os “Associados” tinham apresentado uma candidatura a rainha do carnaval, que, se não me engano, era filha de Rui Paiva. E o candidato a Rei Momo era Luizinho Doublechen, que era um boêmio e personagem muito engraçada, mas um sujeito inteiramente inadequado para ser Rei Momo. Quando ficava puxando fogo, ele dizia inconveniências, dormia, mijava nas calças... Mas Djalma Maranhão, com aquele seu espírito irreverente, dizia que era preciso combater os candidatos da plutocracia. Assim, no fim de semana, ele convidou a nós jornalistas para explicar porque mantinha a candidatura de Luizinho, que era combatida pelo pessoal do “Diário”. Depois de muita batida e de muita cerveja, Djalma ligou o telefone da Confeitaria Cisne para a Rádio Nordeste e colocou no ar uma série de entrevistas com os jornalistas ali presentes. E nós, jornalistas “Associados”, tecíamos os maiores elogios ao candidato apoiado por Djalma. O primeiro da turma que chegou à redação foi você, Ticiano, e Edilson foi logo dizendo: “Amanhã não vai sair jornal porque a redação está embriagada no Bar Cisne, fazendo campanha contra os “associados”.
Se eles não chegarem, segunda-feira eu dou as contas de todo o mundo.” Mas nós fomos chegando, um a um, e o jornal saiu. Edilson estava com uma cara muito feia, mas nós não ligávamos para isso pois éramos todos muito jovens e, na verdade, fazíamos jornalismo quase que por diletantismo.
MARCOS - Você também foi um dos responsáveis por uma fase áurea do Lions Clube em Natal, quando eram promovidas as famosas quermesses da Lagoa Manoel Felipe. Fale sobre essa fase de sua vida.
JOSÉ ALEXANDRE - Mas antes de entrar nesse assunto, eu gostaria de dizer que encerrei minha presença como dirigente esportivo prestando um serviço a Natal. No final do seu governo, Dinarte Mariz - como todo político que está em campanha - chamava as diversas entidades classistas para perguntar quais eram as necessidades de cada uma. E procurava atendê-las, contanto que seus dirigentes se comprometessem a apoiá-lo. Quando ele reuniu os desportistas para saber quais eram as nossas reivindicações, nós respondemos: “ Governador, nós queremos um estádio”. Ele então se comprometeu: “ Eu prometo a vocês fazer um estádio”. Como já estava em fim de mandato, nós sabíamos que ele não tinha condições de realizar aquela obra. Decidimos então pegar o homem na palavra e conseguir dele pelo menos um bom terreno para o estádio. Foi quando escolhemos este terreno onde hoje é o Castelão. Nossa comissão era composta por Salatiel Silva, então presidente da Federação, Aluísio Menezes, eu, Antônio Soares Filho, João Machado, e Moacir Gomes da Costa. Quando nós escolhemos aquele terreno, no dia seguinte um jornal de oposição nos brindou com um editorial nos chamando de lunáticos, malucos, imbecis, e outros adjetivos desse quilate, porque, em vez de fazermos um estádio para Natal, nós íamos fazer um estádio para Parnamirim. O pessoal não tinha a menor visão de futuro... Conseguimos aquele terreno mandando Moacir Gomes ao Rio de Janeiro conversar com o velho Saturnino de Brito, que era então o dono da Companhia de Saneamento de Natal, a quem pertencia o terreno. O Estado se propunha a permuta de terrenos com a Companhia, com aquele, mas a direção local era contra. Saturnino encantou-se com Moacir e reviu nele, o Saturnino de Brito da juventude. Graças a isso, conseguimos sua concordância e o terreno foi doado a Federação.
TICIANO - A bem da verdade, você que acompanhou a história desde o começo, diga-nos quais foram as figuras da cidade que realmente contribuíram para que Natal tivesse aquele estádio?
JOSÉ ALEXANDRE - Primeiro, a gente tem que citar Dinarte Mariz, que fez a doação do terreno à então Federação Norte-riograndense de Desportos. Coincidentemente, no último dia de governo de Dinarte, encerra-se também o mandato de Salatiel à frente da Federação. Salatiel então, sem consultar ninguém, baixou um ato onde dizia: “Denominar-se-á Dinarte de Medeiros Mariz o estádio a ser construído em Lagoa Nova”. Vocês hão de convir que Aluísio Alves, naquele clima de radicalismo que existia, jamais poderia contribuir para que o estádio fosse construído e servisse para homenagear seu adversário. Depois de Dinarte, nós tivemos a figura de Djalma Maranhão, que tinha em seus planos à frente da Prefeitura de Natal, construir o estádio. Mas só na gestão de Agnelo Alves foi que se partiu objetivamente para realizar a obra. Foi então criada a FENAT ( Fundação de Esportes de Natal ), que encontrou o terreno parcialmente cercado por Djalma Maranhão, que também tinha mandado construir umas salas que serviram como canteiro de obra. Assim, devemos a construção principalmente a Agnelo Alves, que era o prefeito; a Ernani Silveira, que foi o primeiro presidente da FENAT; e, posteriormente, ao prefeito Ubiratan Galvão. Na fase de Agnelo, nós construímos as gerais e as intermediárias, em regime de administração direta. Eu, como diretor-adiministrativo, Ernani como presidente da FENAT, Rossini Azevedo como diretor-financeiro, fizemos um pacto pelo qual nenhum documento referente a despesas deixaria de passar sem a assinatura dos três. Levamos muitas cantadas, mas nenhum de nós cedeu. É tanto que, quando Agnelo foi cassado e foi criada a comissão de inquérito sobre o Castelão, a própria comissão reconheceu a lisura com que a FENAT trabalhou. O estádio acabou sendo inaugurado pelo governador Cortez Pereira que também era um entusiasta da obra, e pelo prefeito Jorge Ivan, mas, sem dúvida, o grande trabalho foi de Agnelo Alves e de Ubiratan Galvão. Ainda coube a mim organizar toda a parte administrativa do estádio. Organizei as portarias, as bilheterias... Mas depois verifiquei que aquele trabalho estava ficando pesado demais, pois ao meio-dia já estava tomando conta do estádio. Isso foi na época do primeiro Campeonato Brasileiro, quando passaram por Natal as maiores equipes de futebol do Brasil. Quase sempre o estádio lotava. Era um trabalho incrível ! Lembro ainda que na condição de diretor da FENAT evitei que fosse consumada uma grande injustiça. Na época da construção do estádio, nós vendemos cadeiras cativas a Cr$ 1.500 cada, para serem pagas em 30 prestações de Cr$ 50. Foi quando Agnelo Alves comprou cinco cadeiras: uma para ele, outra para a mulher e as demais para os filhos. Cassado e na “lona”, ele atrasou o pagamento das prestações. No dia da inauguração do estádio, a administração de então não convidou Ernani Silveira nem Agnelo. Eu então fui autor de uma proposta: Agnelo tinha pago diversas prestações das suas cinco cadeiras, que, se somados os valores dessas prestações, daria para quitar duas. Por que então não considerar pagas duas das cinco cadeiras que ele havia comprado? Depois de uma luta, a proposta foi aceita e Agnelo não perdeu de todo o que tinha pago. É provável até que ele não saiba disso, mas fui eu o responsável por ele ter ficado com duas cadeiras cativas no estádio, hoje impropriamente chamado “Castelo Branco”.
MARCOS - Nesta sexta-feira, data inclusive em que você completa os seus 60 anos, você está lançando um livro onde conta histórias do bairro da Ribeira e fala de personagens boêmios que freqüentaram a Confeitaria Delícia. Faça agora um resumo do que é seu livro.
JOSÉ ALEXANDRE - Durante muitos anos, freqüentei a Delícia e ouvi as histórias daqueles boêmios. Em geral, se dá um mau conceito ao boêmio, mas, no meu entender, o boêmio é uma pessoa bem conceituada, trabalhadora e que freqüenta os grandes ambientes. Fazer a noite em Natal ou qualquer outra grande cidade não é fácil. É preciso ser inteligente, saber conversar, dialogar. O elemento pernicioso não é boêmio e sim o cachaceiro, candidato potencial a uma cirrose hepática. O boêmio se cuida, alimenta-se bem, freqüenta ambientes selecionados. A Confeitaria Delícia era um dos lugares de bom nível, freqüentado por figuras como Cascudo, Zé Areia, maestro Cicco, general Leitão, Paulo Pires, o inglês Belinho e figuras jovens que eu também retrato em meu livro, como Heider Reis - que era líder da nossa turma -, como Mozart Silva, Ivan Arruda Câmara, Moisés Villar de Melo - que é um jovem de 80 anos -, como Raimundo Gomes da Costa, além de homens como Roberto Freire, Luiz de Barros, Wilson Maranhão, Limarujo e vários outros, que eu não retratei neste, mas vou retratar num outro livro para o qual já estou juntando material. Depois que comecei a publicar em DOIS PONTOS uma série de histórias e depois da homenagem que fizemos aos 77 anos de Olívio e seus 48 como barman, isso teve uma repercussão tão grande que as pessoas passaram a me parar no meio da rua para que eu contasse mais alguma coisa sobre como era a boemia naqueles velhos tempos. O livro se divide em duas partes: na primeira, eu falo da Confeitaria mostrando a precariedade que ela apresentava no começo, quando nem mictório possuía. Urinava-se numa lata que, quando estava cheia, Olívio ou um guarachué ia derramar no meio-fio da calçada. Na segunda fase, eu retrato 21 tipos, entre os boêmios tradicionais dos anos 40 a 60 .
MARCOS - Mas eu lhe perguntei sobre sua passagem pelo Lions e você não respondeu...
JOSÉ ALEXANDRE - Bom... Fui convidado por um homem de escol que a cidade esqueceu, chamado Evaldo de Lira Maia - a quem Natal está a dever um pleito de gratidão, pois foi ele quem primeiro falou em turismo por aqui. Foi pelas mãos dele, que ingressei no Lions Centro, clube do qual cheguei a ser presidente. Isso foi na fase das famosas quermesses, que eram festas fabulosas. Com parques de diversões, barracas, danças... Como presidente do Lions Centro, eu fundei mais dois clubes: o Natal-Norte - ao qual hoje pertenço, e o Lions Clube de Açu.
TICIANO - Você também teve uma ação destacada na Maçonaria, onde chegou a grão-mestre adjunto...
JOSÉ ALEXANDRE - Passei por uma fase muito difícil em minha vida. Foi quando Castelo Branco, o ditador, numa briga entre os despachantes de Santos e as casas comissárias de Santos, acabou com a privatização dos despachantes em todo país. Nos grandes centros, isso não teve nenhum efeito, mas aqui em Natal foi terrível. Daí em diante, os próprios comitentes resolveram despachar por conta própria suas mercadorias. Minha profissão praticamente perdeu a finalidade e eu entrei numa fase de dificuldades financeiras. Foi assim que resolvi me afastar de todas as atividades que eu considerava supérfluas. Deixei de pagar as mensalidades dos clubes sociais; deixei de ir a festas; afastei-me do Lions... Então, convidado por Armando de Lima Fagundes, ingressei na Loja Maçônica Bartolomeu Fagundes. Entrei sem muito entusiasmo, confesso. Mas eu sabia que meu pai tinha sido maçon, que meu avô e todos os meus tios tinham sido maçons... Convocado por Armando, ajudei-o quando ele foi eleito grão-mestre, primeiro como grande-secretário de Administração e depois como grão-mestre adjunto. Fiquei durante sete anos na administração geral do hoje Grande Oriente Independente do Estado do Rio Grande do Norte e voltei para a planície e hoje sou guarda-de-leis da Bartolomeu Fagundes.
MARCOS - Nessa fase difícil de sua vida, alguém lhe ajudou?
JOSÉ ALEXANDRE - Um homem chamado Firmino de Moura. Sabedor de minha precária situação, ele, num gesto de espadachim, levou-me a presença de José Daniel Diniz , então Secretário da Fazenda do Monsenhor Walfredo Gurgel, e lá chegando, falou: “Zé, quero que você me demita do cargo de Fiscal de Rendas e nomeie no meu lugar, o gordo Alex”. Zé Daniel , que tinha sido atleta no meu tempo de presidente da FNFS, admirou-se de como eu me encontrava, pois julgava-me rico. E prometeu dar um jeito. Dias depois, estava nomeado para o I.P.E. (Instituto de Previdência do Estado) como diretor de processamento e onde terminei como procurador, graças a este grande governador que o povo vem reabilitando, após tremenda campanha difamatória contra ele: Cortez Pereira.
MARCOS - Hoje, depois de ter-se aposentado da Procuradoria do I.P.E., você se dedica ao magistério superior. Conforme você nos disse, depois de lançar este primeiro livro, você já começa a pensar em outros. Fale sobre seus planos futuros.
JOSÉ ALEXANDRE - Este não é o primeiro livro que eu escrevo. Anos atrás, escrevi um livro maçônico denominado “O Maçom Esclarecido”, que teve ótima repercussão em todo país. Basta dizer que já vendi dele mais de três mil exemplares. Mas trata-se de um livro restrito às Lojas maçônicas, senão poderia ter tido uma tiragem muito maior. Ainda hoje, quase que diariamente recebo cartas de irmãos maçônicos me pedindo a remessa de exemplares e perguntando como fazer para me remeter o cheque correspondente. Foi um livro que eu mesmo financiei e que tive alegria em escrever. Pretendo continuar escrevendo. Desde 1980 estou na Universidade como professor do Departamento de Educação Física, na disciplina “Administração e Legislação dos Desportos”. Hoje sou assessor cultural do Núcleo de Arte e Cultura, na função de coordenador do Laboratório de Criatividade, ao qual desejo dar um grande impulso ao lado de Tarcísio Gurgel, de Luís Carlos Guimarães e de Franco Jasiello. Dependendo da repercussão deste livro que estou lançando hoje, quero continuar escrevendo!
DEPOIMENTO AO JORNAL DOIS PONTOS
DE 3 A 9 DE MAIO DE 1985
Rubens Lemos
(1941 – 1999)
Rubens Manoel Lemos nasceu em Santana dos Matos/RN no dia 07 de junho de 1941, filho de José de Lemos e D. Mariquinha Lemos.
Autodidata, fez do jornalismo o seu ofício: trabalhou na Rádio e na Folha de Londrina, 1958.
Em 1962, trabalhou na sucursal do jornal Última Hora, no Paraná, ao lado de Samuel Wainer.
Sindicalista, liderou o primeiro movimento grevista do rádio brasileiro no Paraná. Em 1964, assumiu a direção da Rádio Atalaia de Maringá.
Com o golpe de 64, exilou-se no Chile, só retornando ao Brasil no ano de 1973 com a queda do governo de Allende. Na volta ao Brasil, foi preso e levado para os porões do DOI-CODI, em Recife.
Libertado por falta de provas, passou a escrever no jornal Tribuna do Norte e a fazer comentário esportivo na Rádio Cabugi.
Fundador do Partido dos Trabalhadores – PT, disputou o governo do Rio Grande do Norte, em 1982.
Tempos depois, aceitou convite para ser Secretário de Comunicação de Cuiabá, assessorando o prefeito Dante de Oliveira.
Em 1978, publicou, pela Editora Clima, seu primeiro e único livro de poesia: Ciclos da Pedra e do Cão.
Para o crítico Ivan Maciel, “Os poemas de Rubens Lemos são, fundamentalmente, de extrema contenção verbal. As palavras nelas exercem dupla função: sensorial (por sua valorização visual e auditiva) e codificadora (por representarem sempre uma resposta a experiências aparentemente vivenciadas).”
Rubens faleceu em Natal no dia 04 de junho de 1999, aos 58 anos de idade.
Na rua existe um cachorro
latindo as broncas da noite.
Esse latido se cala
durante a hora do dia.
É que o cachorro sabe
pertencer o dia ao homem.
Quando é dia, brigue o homem;
se é noite, o cão tome conta.
Escuta: guarda os olhos
pra depois,
não será preciso, porém,
fechá-los.
É tempo de ver
a mão: o tato
entendendo o escuro.
É tempo de ter
o fato: o muro
escondendo o rosto.
Os olhos são
apenas necessários:
para acertar no muro,
descobrir o rosto,
provocar o claro.
É tempo: de assumir
a hora
correndo
sem muita pressa.
Rubens Lemos
Enquanto trabalhava na cabana, montando-a com cuidado, Homem da Canoa Grande observava seu derredor, os pássaros marinhos e silvestres, os animais que apareciam arredios, correndo pelas dunas. Olhava o mar e sentia-se pequeno diante da imensidão despovoada. Nada que pudesse dar sinal de vida humana, o que o intrigava. Nada, porém, que o assustasse, pelo menos até ali, à exceção dos silvícolas. Ele estava feliz, muito feliz, apesar de apreensivo, é verdade, mas certo de que logo dominaria aquelas terras, conheceria os seus segredos, a fauna, a flora, sua geografia. Viveria em paz consigo mesmo na solidão daquelas terras, e, se pudesse, faria amizade com seus habitantes.
No seu sexto dia em terras de Pindorama, Homem da Canoa Grande dormiu em sua cabana, ainda com o teto inacabado, mas já a protegê-lo contra a chuva, se viesse, pelo menos em um dos seus lados. Homem da Canoa Grande fez blocos de feixes de varetas de metro e meio, amarradas com os cipós encontrados com fartura na mata, e folhas maiores, de cajueiro. Aqueles blocos de madeira e folhas decerto o protegeria do sol e das águas que viessem do céu, proporcionaria mais conforto e segurança a sua estada naquelas terras desconhecidas, cheias de mistério e encantamento.
Nesse dia, além das maçarandubas, comeu peixe novamente, capturando-os com a mesma técnica do dia anterior, apesar de portar anzóis e linha de pesca. Estava interessado na caça de aves e animais, na pesca marinha, mas a preocupação com a cabana era a prioridade do momento. Primeiro, o abrigo, o lar, solitário lar, para depois explorar aquele curioso mundo, como difundido na Europa.
O cacique Potiassu junto a duas dezenas de guerreiros bem armados de arcos longos e flechas de pontas mortais cercavam a área do homem da canoa grande. A curiosidade que aquele novo habitante proporcionava era imensa para os silvícolas, ainda estarrecidos com a aparição daquelas naus gigantescas trazendo um povo para si desconhecido, com vestes diferentes, proteções de cabeça bem diferentes dos seus cocares de penas coloridas, apetrechos diferentes, intrigantes.
O cacique Potiassu não tinha dúvidas: era necessário observar aquele estranho ser, temê-lo, e, se preciso fosse, se oferecesse perigo, e só nesse caso, matá-lo. Recomendou aos seus comandados poupar-lhe a vida e insistia nisso: ele era uma aparição muito especial para que não fosse observado, estudado, sabidas as suas intenções, o que queria na terra dos Potiguares.
Mais além de suas fronteiras, a tribo tinha inimigos, Tapuias, Cariris. Aquele, porém, apesar de sozinho, a mercê da vontade do chefe, poderia representar perigo maior, até porque não chegou sozinho mas acompanhado de muitos estranhos, iguais a ele, e que não deixaram claras suas intenções; fizeram reconhecimento da terra; deixaram, fincado no chão da tribo, estranha pedra logo cercada e vista com espanto pela maioria dos nativos, pedra branca, desconhecida, com escultura trabalhada em seu relevo. Potiassu não gostava daquilo.
Em sua sétima noite em terras desconhecidas, Homem da Canoa Grande dormiu mais sossegado. Acendeu a fogueira em frente ao local que serviria à porta ainda não trabalhada da cabana, e cuidou de abrir fendas que pudessem fazê-lo ver o exterior, antecipando reação a algum perigo porventura a surgir.
O medo voltou a tomá-lo nessa noite, o cansaço daqueles últimos dias, contudo, fizeram-no dormir a sono ferrado durante toda a noite. Estava extenuado.
Nem a presença dos índios em derredor do acampamento ele percebeu, de tão silenciosos que foram os nativos em sua incursão de alumbramento. Em nada tocaram ou levaram, cuidando de apagar as pegadas sobre a areia fina daquele chão com galhos de árvore de folhas pequenas e redondas, a mangabeira, abundante na mata que dominavam.
Com o cuidado que se achegaram à cabana do homem da canoa grande, os índios se afastaram, sem molestá-lo, para voltar a observá-lo logo que despertasse daquele sono pesado, na manhã seguinte. As ordens de Potiassu eram de que o deixassem viver em paz, só o aprisionassem se alguma embarcação fosse vista no horizonte, e que levassem vida normal, não temesse se mostrar de longe ao visitante, até para que ele se apercebesse ser prisioneiro da tribo, mesmo em seus movimentos livres.
O fascinado lusitano, logo que começou a limpar a área que demarcara para sua morada, sentiu fome. Viu que era necessário ir à luta, buscar alimentação. Decidiu pela pesca no rio. Acompanhou a margem arborizada cem metros adentro, onde deparou-se com uma curva mais sinuosa que acumulava águas mais largas, mais rasas, onde os peixes, de bom tamanho, podiam ser facilmente capturados a pauladas. Homem da Canoa Grande não sabia, ali estava começando sua vida de índio. Igual a daqueles que o espreitavam curiosos.
Cinco peixes corpulentos e pronto, sua comida do dia estava resolvida, e podia ainda ser complementada com fruta que passarinho comesse. As técnicas de obtenção de fogo eram por ele conhecidas, e logo estava pronta sua primeira refeição em terras que viriam a ser brasileiras. O peixe era de boa aparência, até parecia com espécies do continente europeu, mas Homem da Canoa Grande sabia dos perigos que o rondavam. Apesar da fome imensa, convinha comer devagar, só um pouco. Depois, um tanto mais, sentindo, com cuidado, o efeito da comida sobre o corpo. Nem tudo que parecesse sadio, deixaria de ser experimentado com prudência. Há vegetais venenosos, carnes venenosas. Cuidado era preciso. Acautelava-se, falando consigo mesmo.
Depois de ir ao fogo de lenha seca, Homem da Canoa Grande tomou um dos três peixes que havia escamado e tirado as vísceras, colocou-os sobre um prato de liga metálica que trouxera, tomou o garfo, a faca, e começou a buscar o filé do costado do piau gordo, bem pesado, adulto, com certeza. Delícia de carne, podia comê-los de uma só vez e nada faria mal. Mas fez como recomendava a prudência, enquanto limpava os troncos que serviriam à sustentação da cabana.
Trabalhou durante todo o resto do dia e quando o céu começou a avermelhar-se, espetáculo que encantava os seus olhos postos sobre aquele mar, Homem da Canoa Grande parou, deixou-se ficar a contemplar o anoitecer, absorto, e chorou. Nem ele mesmo sabia explicar aquela loucura: ficar sozinho numa terra como aquela, primitiva, inesperada, cheia de perigos. Sim, com certeza, estava em perigo, sabia. Aqueles silvícolas referidos na carta de Caminha e confirmados pelo comandante Gaspar de Lemos existiam, ainda estavam em sua memória, comendo carnes humanas sem nenhum pudor, e não eram nada dóceis como dizia o primeiro texto sobre a terra.
A armação de sua cabana estava quase pronta. Na manhã seguinte faria os enchimentos de gravetos e os entrelaçaria com galhos de folhas grandes. Realimentou a fogueira antes que a escuridão chegasse e preparou os peixes que sobraram ao som da cantoria dos pássaros que disputavam espaço nas árvores da mata, o medo chegando, o guincho dos animais desconhecidos ecoando nas profundezas daquelas terras mais atrás, onde terminavam as dunas. Agora, ele sentia medo. Não medo da morte, que ele não sentia, mas medo da noite desconhecida, do inesperado.
Homem da Canoa Grande ainda não dormiu tranqüilo naquela noite, apesar de todo o cansaço da labuta do dia. Os guinchos vindo da escuridão o espantavam. As luzes, a piscar na mata, numa dança intrigante de vaga-lumes, causavam-lhe sono, mas os vôos baixos e espalhafatosos de corujas causavam-lhe sustos, e ele não se deixava adormecer. Lembrava os formigões pretos a caminhar naquelas areias, temia aranhas, cobras, escorpiões. Tudo ali era desconhecido. Que animais por ali rondavam, Homem da Canoa Grande não sabia, como nada sabia sobre insetos, vegetação, clima, nada. Nada ele sabia sobre aquelas terras.
Quando, à sua frente, sobre o oceano, os primeiros raios de sol da manhã iluminaram o céu vermelho, Homem da Canoa Grande rendeu-se ao sono. O dia, afinal, era mais amigo naquela ocasião, mais seguro, e o protegeria no descuido do adormecimento. Acordou com grãos de areia batendo-lhe no rosto. Era um certo tipo de caranguejo daquelas praias, a maria-farinha, mimetizada com a areia, a cavar um buraco para proteger-se da subida da maré. Levantou de um pulo, assustado, e matou o bicho com um facão comprido, de boa lâmina, peça cuidadosamente trabalhada. Um esmero.
O dia claro, o céu azul, de um azul claro, brilhante, aquela brisa, o ar marinho, um cheiro forte de iodo vindo dos sargaços à beira-mar, aquilo era muito gostoso para o corpo e para o espírito de Homem da Canoa Grande. Ele acordara disposto, apesar das poucas horas de repouso, quantas, nem ele sabia, e correu à mata para providenciar o enchimento dos lados e da cobertura de sua cabana.
Voltou à curva do rio onde pescara no dia anterior, e encontrou terra barrenta, que poderia dar mais proteção ao enchimento lateral de sua casa. Precisaria de algo para transportá-la. Mas isso seria serviço para um outro dia. Primeiro, preocupava-o o essencial. Olhando a vegetação em redor, Homem da Canoa Grande percebeu um bando de sagüis num cajueiro, comendo a resina da árvore, fazendo festa. “Se os macaquinhos comem, posso comer”, pensou, e dirigiu-se para a árvore onde estavam os pequenos primatas.
Após a debandada do grupo símio, tomou um pouco daquela resina e sentiu-lhe o cheiro doce a penetrar-lhe as narinas, mas não aprovou seu gosto. Como os símios permaneceram por perto, viu-os a comer uma fruta pequena, de uma árvore frondosa. Aproximou-se, colheu uma delas, tomou uma faca pequena e a cortou na metade. Sentiu o cheiro desconhecido, o sumo pegajoso e lambeu, cuidadoso, aquela polpa branca, sentindo um prazer gustativo jamais experimentado. Lambeu bem devagar, sentindo suas própria reações. Colheu outros frutos como aquele e voltou à cabana. Sim, poderia comê-los. Os lábios pegajosos deixados pelo sumo da fruta causavam um certo desconforto, mas aquilo era o de menos. Viria a saber depois, tratava-se da maçaranduba, farta naquelas matas e assim chamada pelos nativos.
Eduardo Alexandre
Observando os telejornais da terrinha, percebe-se o lugar-comum que habita o conceito da "Política". Os entrevistados são invariavelmente políticos, se revezando nos canais, repetindo sofismáveis discursos, ludibriando a inteligência dos midiotas. Os jornalistas, interlocutores do quarto poder, não-antenados, contribuem para a perpetuar o equívoco uníssono de que a Política é a primazia pelo controle do aparato estatal. Hegel, afirmava que o Estado é a síntese dos interesses contraditórios entre suas classes. Na vórtice da Política é inerente o conflito entre o Estado, detentor soberano de monopólios (inclusive da violência), o Leviatã de Hobbes, versus a sociedade civil, organizada no cerne "das políticas": da mulher, ecológica, dos sem terras, educacional, sindical... Nos remeteremos ao âmago da política cultural: Polética!
A cultura não é acessório supérfluo. É o amálgama que sedimenta toda nação. Alicerce na construção de qualquer sociedade humana. A cultura converge para as dimensões: Política, uma vez que almeja público, é pois, uma questão pública, inerente à coletividade. Sua prática torna-se instrumento eficaz de legitimação do Estado. Atualmente, não se coloniza apenas com exércitos, mas com a onipresença da indústria cultural, vide o "American Way of Life"; Social, fundamentada na edificação da cidadania, eclodindo uma arena pragmática de lutas cotidianas; Econômica, a cultura como fonte produtora de renda, geradora de empregos; indústria e mercado agregando valor nas interfaces produtivas entre a cultura e: o turismo, a educação, a arte, a tecnologia, o entretenimento.
Desde 82, quando o turismo ainda era incipiente, defendíamos como zênite na efetivação de uma política cultural, o binômio: "importar turista e exportar cultura". Não ficar reféns das belezas naturais, até porque, o tempo profundo (geológico) consagrou eternidades para esculpi-las e a insensatez do capital é imediatista, impiedosa, sem escrúpulo (nem memória), perversa e avessa à sustentabilidade do lugar. Gritávamos à plenos pulmões a necessidade de catalogar, resgatar, revitalizar as manifestações populares; e, essencialmente, fomentar uma prática cultural estruturante de identidade, enraizada no imaginário, possibilitando aos protagonistas lucrar com seu produssumo - sem culpa, nem pires na mão!
A contemporaneidade traz consigo o dilema do papel estatal e seu imbricamento com a Arte. Do Mecenato clássico, inspirador dos dogmas católicos, onde havia a cumplicidade assistencialista e ideológica; passando no início do século XIX para o Patrocínio, consolidado em meados do XX com o Marketing Cultural, que juntou interesses corporativos e mercadológicos. Recentemente, o Estado oferece benefícios fiscais instituindo o "investimento incentivado" - através das leis de incentivos. A lógica do mercado substitui a política pública. A questão é: como se dá a transferência dos recursos públicos? O Estado deve ser isentado de quais obrigações? Como fica a produção artística não convencional, experimental ou não-comercial?
O que podemos inferir é que em nosso estado as leis carecem de revisão! O mais preocupante é que o Estado deixou o mecenato e de ser patrocinador, mas continua participando da cena. Pior, está interferindo na captação de recursos. Exemplo: ano de 2002, o governador deveria se desincompatibilizar do cargo em maio e promoveu uma espécie de "Feira dos Municípios" antecipada, imaginem de onde vieram os recursos? Até a reforma do palco do teatro Alberto Maranhão foi paga com recursos da Lei Cascudo. Artistas e produtores reclamam, pois, quando aprovam os projetos, não conseguem captar. Eis uma luta injusta, desigual e capciosa. Quem o diretor da Cosern, Telemar vai receber: um desses escritórios especializados (tais empresas de alhures se proliferam na cidade, exigindo dos nativos a profissionalização) ou o poeta Jackson Garrido do morro de Mãe Luiza? Um representante sob a chancela de uma instituição oficial do governo ou o excrachado Paulo Augusto da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins?
Chega de engrossar o coro dos descontentes! Lagrimejar no muro das lamúrias! De que adianta reclamar do cenário cronicamente inviável da falta de apoio e/ou verbas? Urge sugerir, buscar saídas, formular parcerias. Emblemática a busca de transparência das instituições que procuram legitimar-se junto à sociedade, abrindo literalmente suas portas para a comunidade em eventos culturais - o Tribunal de Contas, a Assembléia Legislativa, a Câmara Municipal do Natal, a UNP, a exemplo do "Domingo na Praça" da TV Cabugi/UFRN. O que importa é metamorfosear, consumar as instituições existentes em espaços de ambiência cultural.
Sob o sisteima capitalista, o argumento de que o imperialismo é seu último estágio, feneceu. A globarbarização incide como estágio letal do famigerado. Avassalador, na labuta da mídia e dos interesses escusos, reelabora tradições, festas populares e até paisagens, e as transforma em objetos reificados. No lugar de artes expressivas, arremedos reprodutivos e repetitivos; ao invés de arte-criação, eventos efêmeros. Antes de experimentação, a consagração na fútil moda. Na civilidade da televisão, valores transgênicos pulverizados numa pós-modernidade centrada no consumo e lazer.
No dizer de Mário Faustino "o Artista deve antes de tudo sentir na pele a necessidade de experimentar". Vislumbrar as matizes da vanguarda de Djalma Maranhão, que focou sua administração na educação e cultura - criação de bibliotecas populares, de praças de cultura, do teatrinho do povo, da Galeria de Arte, formação de círculos de leitura, realização de encontros culturais, reativação de grupos folclóricos, exposições de arte. Conclamando a massa para lutar contra a miséria, contra o analfabetismo, contra a espoliação, uma organização da cidade onde o povo participava não apenas como mero espectador (ou recruta no exército de reserva da força-de-trabalho). Inverter o fluxo de dependência cultural, oferecendo a experiência da inclusão e o sentimento de pertencimento. Dos Pampas, adverte o Nei Lisboa: "Quando a corja fala de cultura, Gualber quer quebrar a tampa do caixão". Será que todo povo tem o novo que merece?
Plínio Sanderson
Inda cabe rigor nesse teu peito?
Marília, de afligir-me inda não cansas?
Cruel, não sentes, ímpia, não alcanças
De tua ingratidão o triste efeito?
Teu duro coração já satisfeito
Acaso não estará dessas provanças
Que me dão caprichosas esquivanças
Com que pisas de amor doce preceito?!
Entre surdos arquejos de agonia
Vou a vida de angústias acabando,
Que um teu ai, um só riso salvaria
Mas, embora ferina vás matando
Meu firme coração, com tirania,
Hei de, mártir de amor, morrer te amando.
Lourival Açucena
O corpo assim caverna de segredos justos
E tesouros tão guardados quanto expostos,
Nenhum mergulho aventureiro, mas
O gosto sempre de aventura e descoberta.
Eclipse pois serenidade louca
Na cada trajetória desse sexo
Que se conhece e nunca se repete
Porque novo segredo sempre aberto.
O corpo assim fechado ao tempo sério,
Abre-se forma, força, fogo e gesto
Definitivo no gozo dos sentidos
Que fabricam tesouros conquistados.
O corpo enfim exposto é só desejo desenhado
No amor já liberado
Tesouro igual mergulho no segredo
É todo em tudo o sonho desejado.
Rubens Lemos
Viagem ao universo de Marcelus Bob
Por Moura Neto
Fotos: Anchieta Xavier e
acervo do entrevistado
Mãe Luíza ainda não era um bairro urbanizado, mas do alto do morro descortinava-se uma das mais belas visões panorâmicas da cidade.
Numa noite enluarada, Odete do Carmo saiu do seu barraco, chamou o filho mais velho, Marcelino, na época com uns sete anos de idade, e lhe disse:
- Sempre que tiver a oportunidade de ver uma paisagem dessa, pegue papel e lápis e registre. Faz bem à alma.
O recado foi dado enquanto ela apontava para o cenário deslumbrante que se espraiava diante daquela gente humilde, mas honesta, que habitava então uma das áreas mais carentes da capital – a lua cheia despontando por trás das dunas e iluminando a vastidão do mar. O menino que já gostava de rabiscar o que vinha na imaginação se sentiu ainda mais estimulado com aquelas palavras. Quase 40 anos depois, ao recordar esta história, algumas lágrimas umedecem o rosto de Marcelino William de Farias. O filho de dona Odete, que adotou o nome artístico de Marcelus Bob, tem agora 46 anos, 25 dos quais dedicado à carreira de artista plástico.
O pseudônimo foi adquirido no tempo em que estudava na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (atual Cefet), onde concluiu o curso de mineração. Zé Aruanã, estrela do atletismo da escola, brincou com o colega que gostava de correr nas provas de 3 mil metros, mas que, bem sabia, tocava violão para a turma nos intervalos de aula:
- Se tem Bob Dylan, se tem Bob Marley, tem também Bob William!
Foi assim que ele ficou conhecido como Bob. Mais tarde, porém, outros dois amigos, Fernando Mineiro (deputado estadual) e Roberto Hugo (professor de matemática), passaram a lhe chamar pelo nome com o qual viria assinar seus quadros e ser reconhecido como um dos mais ativos e talentosos artistas da cidade. Foi ainda na ETFRN que recebeu, quase por acaso, um valoroso incentivo. O professor de inglês Thomé Filgueira surpreendeu o aluno desenhando a caricatura de Mick Jagger, o famoso astro do rock. Ao invés da censura, o elogio. “Muito bom”, exaltou o professor, hoje considerado uma das grandes expressões da pintura impressionista potiguar. “Apareça amanhã no ateliê”, recomendou. Ele foi, sim, e acabou pertencendo uma geração que fez jus ao ateliê da escola. Entre os anos de 1976/78, por lá também estiveram Carlos Sérgio Borges, Júlio César Revoredo e João Natal.
Os caminhos trilhados ainda com certa timidez o levaram a encontrar confiança para os passos que daria em seguida. Em março de 1980, aos 22 anos, tomou a decisão que deixou toda família apreensiva. Pediu demissão doIBDF (atual Ibama), onde entrou por concurso público, tendo se classificado em primeiro lugar, para militar exclusivamente no meio artístico. Ele até que gostava do que fazia no serviço público federal, onde, por mais de
dois anos, exerceu a função de auxiliar agropecuário. Na prática, reproduzia mudas nos viveiros do Instituto. Mas achava que os chefes tinham mentalidade retrógrada. Era demais para ele!
- Estou honrado em conseguir esta façanha neste elefante sem memória que é o Rio Grande do Norte -, afirma Marcelus Bob, referindo-se ao fato de viver para a arte e da arte durante duas décadas e meia.
Antes de explicar melhor o que quis dizer acima, um parênteses. A expressão “elefante branco sem memória”, segundo Marcelus Bob, foi cunhada pelo poeta Carlos Gurgel numa das muitas tertúlias que compartilharam. A façanha que deixa o artista honrado, contudo, é a de não ter tido outro ganha-pão, durante todos estes anos, senão aquele que conquista, dia após dia, com a criatividade com que manuseia pincel, óleo, esmalte sintético, acrílico e tudo o mais que pode servir de tinta e deixar marcas na
tela, como café e remédio, produtos com os quais já fez trabalhos experimentais.
- Nunca mais minha carteira foi assinada; nem sei por onde ela anda.
Arte irreverente e perigosa
Marcelus Bob é um legítimo exemplar remanescente da contracultura, coisa cada vez mais rara hoje em dia. Gosta de chocar com o comportamento irreverente e o estilo agressivo com que se apresenta até nos salões oficiais.
Além das aparências, contudo, temos a impressão de estar diante de uma pessoa sensível e gentil com seu semelhante.
Nosso primeiro encontro foi na Pinacoteca do Estado, abrigada no antigo Palácio do Governo, na Praça dos Três Poderes, centro da cidade. Conversamos por quase duas horas, à sombra das árvores frondosas do pátio externo do prédio. O artista usava camiseta sem mangas, pintada por ele mesmo, calça preta justa e desbotada, bolsa de pano a tiracolo, um par de chinelos “japonês” brancos e um colar de sementes nativas no pescoço. Os cabelos longos e ondulados estavam espalhafatosamente voando sobre o rosto, no qual repousava um óculos escuro sobre os olhos que estampavam o rescaldo das estripulias da noite
anterior.
- A cabeça de artista é algo muito perigoso – disse ele, tirando os óculos do rosto e fitando o tempo que se arrastava preguiçosamente naquela manhã.
- Por quê? – questionei, procurando entender o que residia no íntimo daquela tirada filosófica.
- A arte é imprevisível! A arte é Deus!
- Se é Deus, pode tudo?
- Pode tudo, sim, ela é absolutamente livre.
O diálogo reproduz a dimensão da essência do que Marcelus Bob é enquanto artista. Um transgressor. Numa das salas daquela mesma Pinacoteca há um quadro seu.
A cena retratada em óleo sobre tela é algo só concebível na imaginação livre do artista: uma freira joga baralho no boteco. Seu parceiro é um homem vestido de paletó, com gravata e chapéu. Na parede do estabelecimento, o relógio marca 2h35 da madrugada. Em cima da mesa, além das cartas, copos e garrafa de pinga. Ao fundo, o dono do bar, um “humanóide encapuzado”, como o artista batizou estas figuras que aparecem em muitos de seus trabalhos e se tornaram, como ele mesmo frisa, sua marca registrada (assim como a de Vatenor são os cajus e a de Assis Marinho, os pescadores).
- Como você classifica seu estilo?
- Possibilista – respondeu, com objetividade.
- E quais as influências que você recebeu?
- De todos os pintores que pude conhecer.
- Mas quem exerceu maior influência sobre sua pintura?
- Nunca tinha pensando nisso – disse, depois de uma pausa. Nova pausa e acrescentou:
- Acho que Van Gogh, pelo desprendimento, soltura, genialidade e extravagância
da sua arte.
- Em matéria de extravagância, há o surrealismo de Salvador Dali com o qual você deve se identificar muito bem, não é?
- É... Salvador Dali entendia de perspectivas. Antônio Marques (marchand e idealizador de uma feira de antigüidades) me disse uma vez que, tecnicamente falando, me considerava um grande artista porque eu também entendia de perspectivas.
Possibilidades e Perspectivas.
Estas parecem ser as ferramentas que Marcelus Bob explora para construir sua arte sem fronteiras.
Cem por cento autodidata, ele cresceu num ambiente familiar propício à carreira que escolheu. A avó gostava de ouvir música clássica. A mãe era vocalista de umcoral da igreja. O pai fazia esculturas em madeiras, depois de ter sido repentista no Vale do Açu (José Pedro de Farias Filho acabou sendo homenageado ainda em vida, emprestando seu nome para uma rua do Conjunto Nova Natal, na Zona Norte, onde mora: rua Artesão Farias).
Nascido em Natal, Marcelus Bob cresceu no Paço da Pátria, “debaixo da Pedra do Rosário”, às margens do Rio Potengi. Dali, mudou-se ainda criança para Mãe Luíza. Recebeu uma educação rígida, reconhece, mas sempre encontrou apoio na família para seguir seu destino profissional. Uma das causas do atrito com o pai, crente da Assembléia de Deus, foi a cabeleira que desde muito tempo cobre os ombros. Mas as discussões só aconteceram na juventude, esclarece, pois hoje já é aceito com o manequim que gosta de exibir.
Inspiração no morro de Mãe Luíza
O segundo encontro com o artista foi no seu ateliê, em Mãe Luíza, situado na rua Largo do Farol, nas proximidades do monumento que identifica o bairro, no mesmo endereço em que mora com a esposa Nilza, a sogra e o filho Lenon Li, nome dado em homenagem ao ex-Beatle John. Naquela casa simples, despojada de luxo, ele às vezes trabalha freneticamente, às vezes se entrega ao ócio das entressafras.
Certamente é ali, naquele bairro, que Marcelus Bob encontra inspiração na fauna humana para compor os personagens que permeiam sua obra. Nas vizinhanças todos o conhecem, todos sabem quem ele é. Parece ser tão popular quanto era um outro ilustre morador daquele morro, já falecido, o poeta dândi Blecaute.
Já ocorreu de levar seus quadros para a bodega do Deda, onde entre um gole e outro fica colhendo as impressões do povo a respeito da sua arte. Nestas ocasiões, os “humanóides encapuzados” costumam provocar polêmica. As figuras são interpretadas de muitas maneiras diferentes. Uns acham que elas são coisas de Deus, outros, do diabo. Uma mulher negra disse que os tipos sombrios que apareciam naquela tela eram semelhantes aos da Ku
Klus Klan, organização criminosa e racista dos EUA.
Segundo Marcelus Bob, as pessoas simples do morro têm uma sensibilidade aguçada pela arte de viver.
A serena rebeldia de Marcelus Bob o levou a buscar outro canal de expressão para fazer ecoar seu uivo iconoclasta. Foi assim que fundou há 12 anos, e ainda hoje lidera, o Grupo Escolar, uma banda de rock pesado, aliás pesadíssimo, como ele mesmo frisa, no qual toca guitarra e atua como compositor e vocalista. Pelo grupo passou gente da qualidade de Tadeu Litoral, Paulinho Procópio (também fundadores), Cleudo Freire, Geraldinho Carvalho e Ilo Sérgio. Hoje, ao lado de Marcelus Bob, figuram Glauco (baterista) e Leão (baixista). Numa das letras composta em parceria com Paulo Procópio, na música intitulada “A Bomba”, está escrito o singelo alerta: “Bomba... vamos explodir essa bomba/bomba, vamos trocar bombons por bomba”.
O artista que tempos atrás teve problemas com a polícia por sair nas madrugadas frias borrando os muros da cidade com “grafites”, agora se debruça sobre um projeto para comemorar os 25 anos de vida artística. Além de promover uma exposição, em data a ser definida, quer publicar um livro, pelo Sebo Vermelho, com fotos das séries de quadros que pintou (humanóides, repentistas, rendeiras, pescarias, instrumentos musicais, paisagens litorâneas, etc...). Os textos vão ficar sob a tutela de Dácio Galvão, Jota Medeiros e João da Rua, só para citar alguns.
Sua produção, neste período, é grande. Calcula uns cinco mil quadros, de todos os tamanhos e formatos, incluindo os minúsculos.
Talvez seja exagero. Talvez não. Atualmente participa do M8M (Movimento 8 de Março – Dia do Artista Plástico), que busca movimentar as artes plásticas no Estado.
É certo, contudo, que Marcelus Bob continuará produzindo e expondo.
Ele que já perdeu a noção de quantas exposições participou, contabiliza seis prêmios na sua carreira, dois deles conferidos pela Fundação José Augusto e outros dois em circuitos artísticos do Nordeste. É quase certeza, também, que toda vez que vê uma paisagem deslumbrante, como uma lua cheia despontando por trás das dunas e iluminando a vastidão do mar, o filho de dona Odete pega lápis e papel e registra. Faz bem à alma.