Vestido comprido, rodado, de chita estampada, com renda de almofada, babados e fitas. Chapéu de palha, camisa xadrez, calça enfeitada com remendos. Bandeirinhas coloridas de papel, fogueira, fogos, balões, sanfoneiro. E a quadrilha. Padre, noiva, noivo, cabo de polícia e delegado, os pares a dançar enfileirados. Alavantú! Anarriê. Chã de damas. Outra vez. Chã de cavaleiros. Outra vez. Changê. Preparar para o caminho da roça. Caminho da roça. Olha a chuva. Choveu. Olha a chuva. Choveu. O marcador gritava e os pares, dançando, obedeciam. O suor escorria enquanto a noite avançava. Foi quando ele chegou. O antigo namorado. Vestido de cangaceiro. Embrenhou-se pelo meio da quadrilha. E atirou. No hora do casamento. Ninguém atinou que era de vera, o tiro. Ninguém percebeu que, dentre as flores da chita, uma nuvem escarlate apareceu. E choveu sobre a blusa, sobre a saia do vestido. Até que a vida partiu. Ninguém notou. E ninguém viu. Até que a lua partiu. Até que o dia raiou. Até que a fogueira se extinguiu. Até depois, muito depois que a quadrilha terminou.
Quase um baião de dois
Ela aqui. Ele acolá. No meio, um número
definido em quilômetros: cinqüenta,
cento e vinte — quantos mais ? — mil e quinhentos?
Pouco importa. Tanto faz. O dia passa.
(E que faço pra rimar? Escrevo úmero?)
A manhã se faz molhada e sonolenta.
Na tevê, corrupção e alagamentos.
Ele lá e ela aqui e essa trapaça
da distância. Já não chove quando a noite
se ilumina desses fogos e fogueiras
fumacentas. Vento vem que nem açoite.
Um balão riscando o céu lá na janela.
Há vestidos de chitão e brincadeiras.
(Os mais velhos gargalhando as anedotas)
:
ele abre uma cerveja no Lorota's
ela abre uma no Poço da Panela.
Márcia Maia
Jean-Baptiste Debret
Aplicação do castigo da chibata
Estão engendrando uma reforma política onde se tira o direito do eleitor de escolher diretamente seus representantes. Esses seriam propostos e escolhidos pelos partidos políticos, mediante as já chamadas “listas partidárias preordenadas”.
Como funcionaria isso? O partido, em convenção, escolheria em lista decrescente os seus parlamentares preferenciais e estes seriam submetidos ao eleitor. A eleição se daria nos moldes que são hoje, observando-se o coeficiente eleitoral e através dele quantos seriam os eleitos. A diferença é que se o coeficiente indicar quatro cadeiras parlamentares a tal partido, estariam pré-escolhidos aqueles quatro que estiverem na ordem decrescente da lista inscrita nos TRE’s.
Ou seja, seria a ditadura das elites partidárias, onde o coronelismo voltaria a reinar com uma soberania nunca vista no cenário político brasileiro.
Ora, se organizações políticas modernas ainda são dirigidas por elites que manipulam resultados através de crachás previamente comprometidos (e normalmente submetidos pelo poder econômico), como evitar o gerenciamento dos interesses dos caciques partidários quando da elaboração de tais listas?
É retirar do eleitor o direito de escolher os seus próprios representantes, transferindo essa responsabilidade para cúpulas partidárias.
Hoje, o coeficiente indica quantos parlamentares cada coligação ou partido terá direito de representação pela ordem quantitativa de votos de sua lista (que já existe). Com a novidade, parlamentares que alcançarem mais votos do que outros do mesmo partido ficarão para trás pela simples pré-vontade de suas lideranças, já que estas é que realmente vão escolher seus preferidos.
Mais uma forma para burlar a democracia representativa de escolha direta, deixando as elites em posição de conforto e a emergência popular a cada dia mais distante do poder.
Uma coisa elaborada nos laboratórios dos coronéis, para mais uma vez descer a macaca no povo já tão espoliado.
Esteja atento e diga não a mais esse direito que nos querem retirar!
Eduardo Alexandre
Pouco mais de dez por cento,
eu tenho da tua idade.
Minha querida cidade,
eu louvo a todo momento.
Natal, és um monumento,
a transpirar de emoção.
Guardo no meu coração,
também na minha retina,
minha Natal pequenina,
meu amor quatrocentão.
Falando tão bem assim,
da minha linda cidade,
com toda sinceridade,
acrescento, outrossim.
E não falo só por mim;
Natal, prá teus filhos, és;
inspiração nota dez.
E esse poeta apresenta,
na década de sessenta,
seus bares e cabarés.
Era o vício que se tinha,
visitar depois da aula,
Francisquinho, Zéfa Paula,
Acapulco e Francesinha.
Otávio, Raquel, Aninha,
Arpege, Plaza, Ideal,
Rita Loura, que legal.
Margô, lembro em minha loa,
Virgínia e Maria Boa,
que era a melhor de Natal.
A Ribeira era um tesouro.
Lá na Quinze de Novembro,
com saudades, eu relembro,
Magrifh e Rosa de Ouro.
Quem ía furar o couro,
no Bar da Tripa passava.
Na Pensão Coimbra dava,
um beijo numa pequena,
no Beco da Quarentena,
certamente se encantava.
Cleide Drinks era cheio.
E lá na Tenda Cigana,
se tomava muita cana,
na velha Praia do Meio.
Fazendo grande arrodeio,
nas Quintas, se ía bater.
No Soçaite, espairecer,
depois de comer cióba,
ía lá prá Maria Taióba,
continuando a beber.
Ainda lá, digo a vocês:
Madalena, Elisaa, A Lua,
mais abaixo, na outra rua,
o Meu Rico Português.
Lá no Quilômetro Seis,
Dona Nêga e As Duas Rosas.
Jovens, alegres, formosas,
deixavam o cabra nos trinques,
Milagres e Tetê Drinks,
As Divinas e Maravilhosas.
Voltando à velha Ribeira,
lá na Boate Alabama,
com a cara cheia de rama,
na Rua São Pedro inteira.
No final da brincadeira,
Duruca fazia alí,
ensopado de sirí,
e quem passasse batido,
comia o peixe cozido,
na Peixada Potengi...
Bob Motta
Academia de Trovas do Rio Grande do Norte
União Brasileira de Trovadores – UBT – RN
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
François Silvestre
Volta e meia vem de volta essa cantilena de ter ou não ter o Rio Grande do Norte grandes escritores. Vou ser claro: grande escritor é uma coisa tão rara que nem deveria ter plural.
Grande escritor é Dostoievsky, Tolstoy, Pushkin. Cada um desses é um grande escritor. Em toda Rússia, de todos os tempos, há um ou outro além desses. Um ou outro. Não há muitos.
Grande escritor é Dante. Shakespeare é grandioso. Tão grande que há quem diga que ele não é ele. Cervantes é outro dos grandes. E ponha grande nisso. Homero, Virgílio, Camões. Ímpares. Grandes e solitariamente grandes.
Os grandes do Brasil são pouquíssimos. Tão pouquíssimos que cabem nos dedos de uma mão. Guimarães Rosa, Drummond, Nelson Rodrigues. São grandes. Para a dimensão do nosso roçado.
Câmara Cascudo foi grande etnógrafo, folclorista, pesquisador e fotógrafo dos hábitos do povo. Do seu cotidiano. Mas não era grande escritor. Nunca. Assim também pode-se dizer o mesmo de Gilberto Freire, que não era grande escritor. José Cândido de Carvalho foi grande escritor apenas num livro. Ariano Suassuna, idem. No geral da obra não são grandes escritores.
Então para que essa paranóia de querer ser grande escritor do Rio Grande do Norte? Aqui temos bons textos, bons prosadores e poetas, cronistas de boa leitura e texto agradável. Nada muito mais do que isso. E qual é o problema? O sol vai continuar nascendo no nascente. Sumindo no poente. A chuva vai continuar líquida. A noite fria e a manhã bela. Sem precisar de grande escritor.
Até porque no dia que aparecer um grande escritor no Rio Grande, vai ter gente se matando de inveja. E vai andar cada um com uma trena para provar que aquela figura não é tão grande assim. Então, para evitar suicídios intelectuais, é melhor continuarmos do tamanho que nós somos. Tudo na medida dos porta-retratos ou da pressão arterial.
O Rio Grande do Norte nunca teve nem tem grande escritor. E nem por isso deixa ser o centro do universo.
François Silvestre
Tribuna do Norte, 23/06/2005
Do rio, se diz que não passa duas vezes no mesmo lugar. Pode ser. Tem certa lógica que águas que caminham em uma única e contínua direção, jamais voltem ao lugar onde nasceram, não tornem a passar onde passaram. Mas o mar, não. O mar é sempre o mesmo, abrigo das águas desprovidas de caminhos. Por isso se repete o mar. Monótona e continuamente. Enche, vaza, enche, vaza. Um pouco mais. Um pouco menos. Dependendo dos humores da lua. Calmo ou agitado, conforme os desígnios dos ventos. E não vale falar que revolta de mar é tsunami. Tsunami é revolta de terra. De terra cansada de carregar a imensidão do mar em suas costas.
Pensava nisso ao pensar na vida. Não numa vida em particular. Pois uma vida quer-se rio. Muitas vidas podem rio querer-se, mas quase sempre serão mar. O que ontem iluminou algumas delas, outras em breve iluminará. E o que toldou-as como noite densa e treva, outras também há de toldar. Como houvesse um só pecado, uma só graça, uma só dor. Como apenas mudassem atores e cenário numa peça repetida eternamente e à exaustão. Concebida por um escritor bissexto provido de pouca imaginação e algum talento.
O resto é rio correndo em abandono. O resto é mar cansado de marés desprovido de saída, de opções. O resto é inverno, primavera, verão, outono e novamente inverno. O resto é essa tarde que se esvai sucessiva e calmamente. Mundo afora. Tanto faz se aqui ou no Japão.
Márcia Maia
Nosso nordeste é presente,
na política nacioná.
Do arto da sua isperiença,
lá no pranarto centrá;
eu sô fã de um deputado,
pra o quá dô meu recado,
na Câmara Federá.
Cabra macho nordestino,
êsse poeta agarante:
É premêro sem sigundo,
persona grata, importante.
Nêsse cordel qui hoje faço,
lhe vai meu fraterno abraço,
Severino Cavalcante.
Na Capitá Federá,
Severino é festejado.
É nordestino da gema,
e sabe dar seu recado.
Numa inleição cuntundente,
foi eleito Presidente,
da Câmara duis Deputado.
Pensaro qui êle seria,
facilmente manobrado.
Qui nem um marionete,
puros baibante guiado.
Quem pensava essa bestêra,
q’uia sê dessa manêra,
tava era munto inganado.
E se passando por besta,
cum carinha de inucença,
Severino, caladinho,
isperô cum paciença.
Mostrando a sua isperteza,
se sigurô cum firmeza,
nais rédea da Presidença.
E muntos duis Deputado,
findaro se arrependendo,
de in seu Biu tere votado,
e ao mundo, fôro dizendo,
do seu medo, seu menino,
dais merda qui o nordestino,
na Câmara tava fazendo.
E na Câmara Federá,
êle é o Papa; é o Reis.
E aos nobre Deputado,
afirmo mais uma vêiz:
Biu só segue a vossa Escola;
quem cagô na rabichola,
ao votá, fôro vocêis.
O cabra tem pulso firme,
mermo sendo meio “usado”.
Cum seus mais de oitenta ano,
é macho todo; arrochado.
Prá lá de firme, o sujeito,
o qui êle fizé, tá feito,
ungido e sacramentado.
Biu nais suas decisão,
só numa qui êle tumô,
incobriu todos seus êrro,
qui dizem qui praticô.
Amostrô qui num era bronco,
quando dais célula tronco,
o seu uso êle votô.
Cum isso êle abriu mil porta,
afirmo no verso meu.
Mais um fio de esperança,
ao nosso povo, êle deu.
Êsse bravo nordestino,
foi o Instrumento Divino,
qui Jesus nuis concedeu.
O gesto de Severino,
alavancô ais pesquisa.
Quem carece tratamento,
naquela hora precisa,
viu qui o gesto de coerênça,
se aliô à ciença,
e a cura viabiliza.
Mais Severino, o mió,
lhe digo in minha poesia:
Além de sê nordestino,
tu me deu ôta alegria,
quando acendendo o facho,
amostrô sê cabra macho,
bem no mêi da cantoria.
No Festivá de Ceilândia,
de viola nordestina,
tu amostrô tua fibra,
e qui ainda se destina,
munto prá lá de animado,
quando viu pertíin, do lado,
ais calcinha da menina.
Cum a galêga surridente,
pegue logo a cuxixá.
E tu, cabra véi da peste,
só surrindo, sem pará.
Parecia um bizerríin,
quando corre ligêríin,
prá vaca, mode mamá.
Ela cum vinte e trêis ano,
e tu cum oitenta e quato.
Ela fêiz tu remoçá,
muntos ano alí, no ato.
É capaiz dela fazê,
numa juntada, pode crê,
de tu, Biu; gato e sapato.
Uis repórte apruveitaro,
e amostraro p’ro Brasil,
qui a galêga te dexô,
cum teu coração a mil.
Só num dêxe, meu irmão,
lhe pegare cum a mão,
alisando o seu bombril.
Se ela te pegá, seu Biu,
do jeitíin qui eu cunheço,
dá-lhe uma surra de xiníin,
te revira pelo avêsso.
Nesse carrumbamba tôda,
dêxe qui o mundo s’isprôda,
in quaiqué um indereço.
Meu querido cunterrano,
no verso vai meu recado.
No meu poema em cordel,
no verso metrificado.
Você pode errá de fato;
cague o resto do mandato,
qui por mim, tá perdoado...
Bob Motta
Academia de Trovas do Rio Grande do Norte
União Brasileira de Trovadores – UBT – RN.
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Meados da década de cinqüenta. Tempo em que o Atheneu era Atheneu.
Fui aluno de Cascudo, Esmeraldo Siqueira, Luiz Maranhão, José Saturnino, Ivone Barbalho, Antônio Pinto de Medeiros e muitas sumidades mais. Fundador e orador do Centro Estudantil “Celestino Pimentel” - invenção de Hélio Vasconcelos, Jardelino Lucena e , entre outros, Claudius Fulvius dos Antoninus Pio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque (ufa!), filho, “entendeu você”, do desembargador Floriano – também tirava onda ora como primeiro, ora como segundo “tarol” da Banda.
Não a chamávamos “marcial”. Intitulava-se assim a do Marista, odiada rival. A patota dos irmãos, no Sete de Setembro, desfilava cheia de alamares, fardas impecáveis, militarizada demais para o nosso gosto. Na briga entrava , também, um ano ou outro, a turma da Escola Industrial.
O Professor Celestino, sisudo, grave, falando pouco, por debaixo do pano, de julho até o desfile do Sete de Setembro, mandava dar nota oito a quem fosse escolhido para a Banda, nem que fosse mesmo para exercer a função de “cambiteiro”, um aprendiz, um carachué que apanhava e substituía as baquetas que caíam no chão... Era uma concorrência daquelas!
Passar o dia todo marchando, sem estudar um tico, se mostrando para as meninas do Feminino, na Jundiaí e, de propósito, passando, na hora da saída, em frente ao Colégio da Conceição, era bom demais!
Só não podíamos – nisso Celestino era severíssimo – pender para os lados do Marista, senão o pau comia com os “meninos da matinha”, viciados no mel das abelhas dos religiosos tarados...
Mas, de sacanagem, provocando, chegávamos perto, fazendo “alto” no final da Deodoro, quebrando baquetas, tocando com força redobrada, um esporro daqueles.
No dia Sete, farda engomada, instrumentos polidos, às encondidas, no outão, a cana comia frouxa na Livraria Atheneu. E íamos à luta!
Daquela era, muita gente já foi tocar no Azul... Mas lembro de dois jovens “cambiteiros” do meu tempo, hoje famosos, cada um deles no seu galho, no seu destino: o escritor e poeta Nei Leandro de Castro e o engenheiro e senador do PTB (epa!) Fernando Bezerra.
No Atheneu eu fui “tarol”
na Banda de Celestino
Fiz muita “fita”, farol,
desfilei na Deodoro,
só de lembrar quase choro:
no Atheneu eu fui “tarol”!
Marchava de sol a sol
mais de um mês, era menino...
Mas o orgulho supino
era vencer o Marista
- todo mundo era um artista
na Banda de Celestino !
Laélio Ferreira
por sobre o rio de lixo
(além do mar de lama!)
deslizam barco e vida
em busca de um destino
qualquer que seja digno
(aquém do mar de lama?)
Márcia Maia
Quando me enrosco em teus braços
debaixo dos teus "cheiros"
fico completamente indefeso,
como um lírio brejeiro
como a areia da praia
que o vento sopra nas dunas
como a espuma das ondas
das águas do mar,
como um peixe na rêde
sem poder se livrar.
A relva do campo
na terra fincada
a liberdade dos homens
condicionada
são as meias verdades
que alguém, um dia falou
é a rotina da peça
que a censura cortou.
É o grito encravado
em cada garganta
é a voz desse povo
que não se levanta,
mas é tudo que quero
e que sempre quiz
apesar disso tudo
eu sou muito feliz.
Chagas Lourenço
http://freicarmelo.blogspot.com
Baldo
O Jornal de Hoje
18/19/06/05
Esse causo de hoje, verídico e referente ao saudosíssimo Seu Luiz Tavares, boêmio de quatro costados de Natal de mil novecentos e antigamente, quero dedicar aos seus filhos, meus colegas de infância e vizinhos nos famosos Baldo e Santa Cruz da Bica, Amaro, Augusto, Arlindo (saudoso poeta vaqueiro), Álvaro; e às suas irmãs Ana Lígia e Ana Flávia (que saíram da vizinhança ainda novinhas); além de dona Áurea, a exemplo de seu marido Luiz Tavares, também de suadosíssima memória. Também quero dedicar ao "Jua", leitor dessa coluna, que mora na Cidade da Esperança, na Rua Encanto, nº 21, quase em frente a Agamenon (meu colega de birita de outrora...), cuja casa da mesma rua, é a de nº 24.
Pois bem! Pouquíssimas pessoas em Natal, dos cinquenta pra lá, não tiveram a felicidade de conhecer essa saudosa , irreverente, boêmia, querida e muitíssimo amada criatura, que era seu Luiz Tavares. Um "côipanzí do tamãe d'um aimazém", a voz grossa e de bem pra lá de cem decibéis, que dava o toque especial a todas as presepadas do qual era o galã principal ou ator coadjuvante. Em compensação, era uma verdadeira flor em delicadeza, zelo e paciência com todos aqueles que tivessem a felicidade de privar de sua amizade. E essa "arrumação" que conto hoje, bastante conhecida de todos os seus amigos, me foi contada pelo seu próprio filho Augusto, nos mínimos detalhes, há poucos dias, no Bar das Mangueiras, do nosso amigo Adriano e de dona Vera, sua esposa, numa mesa onde se encontravam, além de mim e dele, Augusto: Zé Augusto Othon, Sena Filho, Borba, Teixeira, Daniel Holanda, meu colega da Academia de Trovas Majó, Danilo Bessa, André, Djalma, Otacílio, e mais uma ruma de cabra ruim e que gosta de fuleragem, que não tô lembrado no momento. E Augusto me contou que, certa feita, seu Luiz Tavares foi a uma festa no interior da Bahia, nos arredores de Feira de Santana, onde ele comprava gado, e lá, num sítio, foi a um casamento.
Nos comes e bebes, nosso querido personagem "deitou e rolou" pra riba de uma galinha de cabidela com graxa e tudo, misturada com arroz de leite e farofa de bolão. Foi fundo literalmente... E o indivíduo tanto foi fundo, que não deu meia hora e sentiu a primeira pontada de uma bruta cólica intestinal... Daquela de dar suó frio... Dá prá tu, leitor?... Aguentou-se por ali, muito bem "enfatiotado no seu impecável terno de linho branco", inté quando deu.
Mas lá pras tantas, meu fíi, num teve foi jeito... Levantou-se de repente, arrastando intempestivamente o banco inteiriço e quem nele estava sentado, e saiu "cum toda mulexta duis cachorro", em desabalada carreira, em procura do banheiro no fundo do quintal. Não deu nem tempo de tirar o paletó...
Já "suando frio e munto", sentou-se no trono e foi aquele reconfortante alívio que o leitor bem sabe avaliar. O intestino tinha "trabaiado ligêro" e a galinha já tinha virado uma "espécie de papa cor da farda da puliça de antigamente"... Veio a tranquilidade seguida da calma, pelo terrível problema resolvido. Mas, como alegria de pobre dura pouco, de repente, surgiu outro problema ainda maior. E esse, de bem mais difícil resolução, pois não havia um só pedaço de papel no banheiro... Nem higiênico e nenhum outro tipo qualquer...
E Luiz Tavares ficou alí matutando sem saber o que fazer. De repente, algo lhe chamou a atenção. O banheiro era desses das telhas bem baixinhas, e ele, ao olhar pra cima, avistou uns pombos que estavam ali dormindo...
Não pensou duas vezes! Deu um "bote", pegou um dos pombos e limpou-se com o mesmo. Só que, quando soltou o pombo, o bichinho todo cagado, deu aquele característico tremelique, espanando as penas, balançando as asas e fazendo uma verdadeira "obra de arte" no impecável terno branco do nosso saudoso Luiz Tavares, que saiu da mesa limpo e com dor de barriga, e voltou sem dor, mas literalmente todo cagado!
Bob Motta
Imagine, meu caro leitor, que você compra um monte de coisas de valor e carrega um navio com elas, para entregar em algum lugar. No meio da viagem o barco se perde e fica vagando por aí, prato cheio para qualquer sabido que o encontrar primeiro e se apossar dele. Essa imagem "barco perdido, bem carregado" eu conheço desde criança e sempre a vi ser aplicada àquelas pessoas que estão por aí, inocentemente, dando sopa, cheias de amor pra dar, soltas na gandaia e sem ter noção do perigo que correm.
Há uma música de Elino Julião, um dos maiores nomes da música regional nordestina, que começa assim: "Barco perdido, bem carregado/ Eu tinha chegado em Natal/ Muito mal eu sabia onde era as Rocas/ Caí na fofoca legal", diz a primeira quadra, traçando o retrato da situação. E continua: "Do Areal eu fui à Pista/ Limpei a vista na Tetéia/ Saí tomando uns capilé/ E quando dei fé, tava na Coréia..." Reconstituindo o roteiro do personagem, vemos que ele não conhecia a cidade pois "muito mal sabia onde era as Rocas". Junta-se a uma turma, das Rocas passa ao Areal e do Areal à Pista, que era como chamavam na década de 1950 à Avenida Hermes da Fonseca, a primeira avenida asfaltada da cidade, tendo sido o asfalto feito pelos americanos na época da Guerra. Aí o compositor diz que, depois de chegar à Pista, "limpou a vista na Tetéia". Mas que Tetéia era essa? Perguntei a um, perguntei a outro, entrevistei notáveis e conceituados biriteiros mas ninguém me dava notícia do que seria a Tetéia.
Foi o próprio Elino Julião quem me solucionou o mistério. Segundo ele, na curva da Pista, quando a Hermes da Fonseca dobra ali na Praça das Flores, pertinho de onde hoje é o Mercado de Petrópolis, havia uma barraquinha, uma birosca, onde a rapaziada encostava pra tomar uma cachacinha com parede de tripa ou ribaçã assada, sirigüela ou picado. A proprietária, idosa, mal humorada, reclamando de tudo, cachimbo no canto da boca, um pano amarrado na cabeça, atendia pelo doce nome de Tetéia. E "limpar a vista" era tão somente tomar uma "chamada", para aclarar as idéias. Com efeito, o personagem da música sai dali "tomando uns capilés" e quando dá acordo de si está na "Coréia" onde, como repete no estribilho, "só tem véia, só tem véia, no forró da Coréia..."
Elino Julião é ainda quem informa que o tal forró ficava nas imediações da lagoa que existia onde hoje é o Centro Administrativo. Forró pobre, decadente, sem paredes, latada precária, fora de mão, longe de tudo, freqüentado apenas por aquelas mulheres que, desgastadas pelo exercício profissional, banidas dos bordéis de luxo, somente ali encontravam guarida.
A segunda estrofe da música fecha a história e é um apelo do personagem, ainda atordoado pela terrífica visão das velhas bacantes: "De outra vez quando eu for ao Rio Grande/ Por favor não me deixe eu andar só/ Eu prefiro ficar em Igapó/ Daquele forró, tenho receio/ A Praia do Meio é bom pra mim/ No Alecrim a gente se faz/ Eu fico lá trocando idéia/ Na Coréia eu não vou mais..."
E por falar em Elino Julião, ele está com disco novo na praça, com o título "É a mulher quem manda", onde tem músicas novas e repete alguns velhos sucessos como "O Baile do Tancredo" e "Na Unha do Guaxinim". Nesses tempos de São João, o único antídoto que podemos usar contra o veneno do forró pasteurizado que empesteia a nossa música é o trabalho dos nossos verdadeiros artistas do forró, dos quais Elino Julião é um dos mais geniais representantes. Compre o disco, prestigie o que é nosso. E viva São João!
Clotilde Tavares
Mércia Carvalho, Léo Sodré, Oswaldo Orf Ribeiro,
José Torres, Meire Gomes
Meu amigo Oswaldo Ribeiro Filho, Orf para os íntimos, gosta de procurar novidades na Internet. Mês passado, ele localizou para mim um livro difícil de ser comprado por estas bandas, Forget Foucault, de Jean Baudrillard, que já se encontra em minha cabeceira, graças também à inabalável eficiência dos Correios, apesar de Maurício Marinho, Roberto Jefferson e cia. Quinta-feira, Oswaldo enviou-me o link de uma matéria da BBC Brasil, com título "Estudo mostra que ter amigos prolonga a vida".
O texto refere-se ao Estudo Longitudinal do Envelhecimento, pesquisa feita por cientistas australianos e publicada no Journal of Epidemiology e Community Health, com a conclusão de que idosos com maior círculo de amizade sobrevivem mais. "Relacionamentos escolhidos, com amigos e confidentes, se comparados a relacionamentos involuntários com familiares e crianças, nos quais há pouca interação, têm mais efeitos positivos na sobrevivência", diz Lynne Giles, um dos autores da peça científica.
Não estranhe, por favor, a expressão "um dos autores" referindo-se a uma mulher. Ocorre que a Língua Portuguesa é machista e basta um homem no grupo para o gênero masculino predominar. Lingüisticamente falando, claro. Explico-me porque pretendo viver com qualidade até o último instante. Não quero perder algum amigo, principalmente do sexo feminino, por causa de mal-entendidos gramaticais. Cada ligação perdida representa um ano a menos para quem aprecia cultivar relacionamentos.
Tenho muitos amigos e poucos inimigos. Sim, como diria Ariano Suassuna, existem os "equivocados" que me detestam. Não me queixo deles, dos inimigos, considero-os inclusive necessários ao fortalecimento da autocrítica, embora evite desperdiçar os preciosos momentos da existência terrena, que por mais longa que pareça é sempre curta, pensando no ódio alheio. Acredite: o rancor só pesa nos ombros de quem o carrega. Digo tais palavras por experiência própria. Já perdi tempo sentindo raiva.
Meu avô materno repetia duas frases ótimas, que demonstravam a força do seu caráter. Ele afirmava que não há meio-termo, "ou o sujeito é amigo ou inimigo", fazendo, porém, uma ressalva com referência, digamos, aos conhecidos que assumiam cargos importantes. "Tenha cautela quando for chamar de amigo alguém que está no poder, porque a mera ilusão do poder afeta a memória dos homens fracos". A sentença não é literal, mas o sentido dos conselhos do velho está rigorosamente preservado.
William Bennett, n'O Livro das Virtudes, adverte que a amizade "requer tempo, esforço e trabalho para ser mantida", pois "amizade é algo profundo. De fato, é uma forma de amor". Para Aristóteles, em Ética a Nicômaco, "sem amigos ninguém escolheria viver, apesar de todos os outros bens". Em Cícero, "Quem está na posse de um verdadeiro amigo vê a exata contraparte da própria alma". E Emerson, o poeta, dá a chave-de-ouro: "Amigo pode perfeitamente ser considerado a obra-prima da natureza".
Cid Augusto
aceitei o desafio
e começo o duelo
com as palavras que inundam, sem licença, sem vergonha
, sem autorização a minha periferia
titubeando, sem ter a menor idéia para onde ir, só
reconhecendo uma velha figura,
que escondida atrás das nuvens tenta sussurrar versos,
diversos, anexos, aversos, perversos, inversos
continuo na batalha, infinita, inacabada,
de ser poeta.
Deborah Milgram