"QUANDO NÃO CONHEÇO A LÍNGUA, BRINCO ELA"
Estou escrevendo SOBRE o violão. Já tinha escrito uma crônica SOBRE ele, mas não foi SOBRE o instrumento, foi SOBRE as costas dele. Escrevi apoiando o papel em sua base, fazendo-o de mesa. SOBRE o violão, continuo escrevendo, na tentativa de justificar a falta de uma mesa. Se dispusesse da mesa, e o violão estivesse SOBRE ela, eu continuaria na mesma? Ou será na mesa?
Já escrevi SOBRE um livro de capa dura de Manoel Bandeira, e já escrevi SOBRE uma capa de disco de vinil. Já escrevi até SOBRE um azulejo branco. SOBRE estes encostos escrevi muitas crônicas. Parece cômico, mas é mesmo crônico. Será que é arte da língua SOBREpor palavras que não explicam o óbvio? Ou será que SOBRE estas coisas preciso escrever, mesmo sem ser SOBRE elas, digamos, SOBRE uma escrivaninha?
Confesso que pode ser a falta de um tema temático, redundante como quase tudo que se passa SOBRE minha cabeça agora ou simplesmente falta de inspiração. O fato é que esta é primeira vez que escrevo SOBRE o violão, SOBRE ele mesmo. Penso que, para partilhar igualmente os bens, vou ter que escrever também SOBRE um livro de Manoel Bandeira, uma capa de disco de vinil e um azulejo branco. SOBRE eles vou decerto dissertar algum significado que me livre deste impresso fardo.
SOBRE quase tudo nessa vida dediquei palavras. SOBREtudo ainda não gastei todas as prosopopéias necessárias para se chegar a um acordo lógico SOBRE o verdadeiro significado da preposição SOBRE. Que me venham todos os professores Pascoales. Ítalos, lusitanos, latinos e brasileiros. Todos os que saibam mais do que eu SOBRE o que é SOBREpor SOBRE a mesma
coisa.
Sei que a última Flor do Lácio de Bilac, a Língua Portuguesa que o poeta chamou de inculta e bela, é matreira como amor sem vocabulário, amor mudo, amor sem dicionário. Sei, como todo louco que escreve, que quando escrevemos, ao mesmo tempo descrevemos. Então, expliquem-me por que SOBRE o SOBRE escrevo, subscrevendo-me, se, no final, eu vou ter que assinar embaixo do papel? Assinar embaixo do papel, não seria assinar sob o papel?
Meu Deus das letras, que incógnita é esta que está no meu português em vez da matemática? Que dúvida é esta que me dá SOBREnome antes do primeiro nome? Devo ter faltado à aula neste dia. Só pode ter sido. Se meus mestres tivessem me alertado SOBRE o que encontraria de tão SOBREnatural em um texto deste, além das metáforas, não teria SOBREpujado tanto a minha (in)capacidade lingüística; teria sido apenas um mero leitor. Mas que culpa tenho eu se minhas flexões literais atrapalham minhas reflexões literárias?
Faz minutos que tento justificar-me porque escrevo SOBRE as coisas. Acabei escrevendo uma crônica SOBRE o que do SOBRE mais se SOBRE-aproveita. Cousas da minha língua, a do paladar, e a do palavrar. SOBREtudo escrevi SOBRE tudo que me veio dúbio, e, acreditem: em Natal, com este calor, ainda tem gente vestindo um SOBREtudo. Graças a Deus, arranjei SOBRE o que escrever, mesmo sabendo que escrever SOBRE preposição é subestimar a língua pátria. Desculpem-me os que não me compreendem. Desculpem-me se saio deste ensaio sóbrio e SOBRE a sombra das dúvidas. Não valeria a pena tanto desgaste se não fosse para
SOBREssair-me aos porquês. Que sempre me sobrem palavras, prepositivas ou
não, quando me faltar a inspiração.
Mário Henrique Araújo, sóbrio e SOBRE o papel