(Mensagem para Sanderson Negreiros)
Laélio Ferreira de Melo
Poeta, ex-repórter, pesquisador
Escavacando papel velho, dei, por cá, com uma folha de anotações que diz respeito a você e à Poesia.
No final dos anos oitenta, a pedido de amigos, organizei numa clínica de saúde mental, em Natal, uma pequena biblioteca. Sugeri aos diretores um nome, imediatamente aprovado: “WALFLAN DE QUEIROZ”. Era, o próprio, um dos pacientes mais antigos do lugar, parente dos donos da instituição. A um dos irmãos, pedi a doação dos livros do poeta e nas estantes os arrumei com carinho. Do homenageado, com muito jeito e agrado, auxiliado por um fotógrafo sorrateiro e camarada, descolei razoável fotografia colorida e ampliada, para a indispensável entronização na sala acanhada. Finalmente, na data aprazada, foi uma festa e tanto, Mestre Sanderson.
Conhecia Walflan há mais de quarenta anos – tinha eu uns seis ou sete - desde a casa do meu Pai, na Avenida Rio Branco, cercanias do velho Mercado. Sempre de terno de linho branco impecável, na gravata encarnada um alfinete de pérola, sapato “Fox”, brilhantina nos cabelos, com fala grave e sonora, ao cair da noite papeava com meu Pai, velho amigo do seu. Uma algaravia, um charabiá repleto de erres que eu e meu irmão, um pouco mais velho, curiosos, não entendíamos. Era, descobrimos perguntando, tão somente dois Poetas falando francês, o belo idioma de Hugo, Verlaine e Rimbaud! Bom mesmo, para nós, meninos, era a moeda de mil réis que o rapaz risonho nos dava “para comprar confeito”, terminada a conversa.
Anos depois, a luta pela vida me afastou de Natal e de Walflan por muitos lustros. Por onde andei, poucas notícias tinha do moço culto de terno branco que me dava moedas, do filho do Doutor Letício, bacharel no Recife, promotor público, monge trapista, sábio, embarcadiço, aventureiro, diretor de museu – que confessava em versos ser “poeta maldito” e ter “pedido esmola na porta de Notre Dame”.
Nos ocasos de alguns dias, quando o reencontrei na clínica de Capim Macio – abatido, o rosto cavado pela magreza, os dedos finos manchados pela nicotina -, nas raras ocasiões para o diálogo, instado, provocado, reconhecia-me, pedindo cigarros ao “filho de Othoniel”! Recitava salmos e suratas, indagava pelo “Grande Ponto”...
No pico das doses mais fortes de aldol, no prelúdio do sossego, ainda agitado, subia a um dos bancos do jardim e, numa mescla de cantochão gregoriano e pregão de muezim, desandava o querido vate a declamar, com sofrível dicção, palavras e nomes do seu gigantesco vocabulário, algumas e alguns por mim gravados, à época: “Alá, Adonai, arrabil, Aluízio Alves, Apolinaire, Aramis, acadiano, Baudelaire, Gotardo, apocalipse, Miriam Coeli, Baal, Bel, Li Po, Vale de Josafá, Iavé, Jeová, Eloím, Trapa, Otoniel, Rancé, Cister, cisterciense, Dalton Melo, humanista, Djalma, Soligny, Islã, trapista, eloísta, mulçumana, Roldão, Brama, Parnaso, geena, faiança, Giralda, runa, Excalibur, Saladino, durindana, Natan, Betsabé, deambulatório, Leviatã, consitório, Patmos, Jó, Rimbaud, Patagônia, João Café, Moisés, Tânia, Genilda, paladino, Walt Whitman, Dom Quixote, Irene, França, Ulisses Cavalcanti, mamãe, Sheaskspeare, amidalite e - deixei para o final – Sanderson Negreiros...
Este é o registro, dou fé.