sábado, fevereiro 12, 2005

Notícias do Grande Ponto

Tribuna do Norte

Nei Leandro de Castro

João Pessoa, Princesa Isabel
e Rio Branco se juntavam ali,
como todo mundo,
pra falar mal da vida alheia.
- Fulano deu pra fulano.
- Essa aí dá muito mais
do que paca de mão branca
em noite de lua cheia.
- Sabe quem anda chupando?
- Beltrano é corno e não sabe.
- Ora não sabe. Ele gosta.
- O Doutor deu um desfalque
e fugiu com a amante.
Indiferente aos murmúrios,
o menino roubava chocolates
da confeitaria antiga,
espiava os sorvetes
exibidos na Cruzeiro,
tomava carapinhada,
torcia pelo América
via os matinês do Rex,
tentava pegar nos peitos
da primeira namorada,
sonhava ganhar dinheiro
e comprar todos os sonhos
de valsa que ele roubava.

Um dia o adolescente
quase morre ledamente
afogado num pileque
monumental no Bar Cisne,
O cafezinho ao lado
às vezes queimava a língua
de quem falava demais.

Os copos de Cuba Libre
se levantavam no ar
contra a invasão dos marines.
Os políticos da província
do alto dos seus palanques
prometiam tudo, até
a independência do Reino
Unido do Grande do Ponto.

Às onze horas da noite
João Pessoa, Princesa Isabel
E Rio Branco trocavam
um cordial boa-noite
e prometiam voltar
na manhã do outro dia
a falar da vida alheia.

In Poesia Viva de Natal, Manoel Onofre Jr.
Fundação Capitania das Artes/Nordeste Editora, 1999


O Grande Ponto à meia noite



Joanilo de Paula Rêgo

Há cidades, sítios, locais, lugares, praças e ruas, envolvidos por uma atmosfera singular e misteriosa, por uma aura sobrenatural e mágica, que lhes demarcam o espírito e a alma, o fluxo e a presença, a solidão e a vida.
Dizia Camus que Tipasa, no verão, era habitada pelos deuses. Para Manuel Bandeira, Pasárgada era outra civilização... Shangri-La, para James Hilton, era a visão transcendental do paraíso na terra, uma escala no caminho de Deus. Para Baudelaire, a magia e a beleza estavam em "algum lugar", naquele pedaço insinuado no seu "Invitation au Voyage".
Em Natal, o Grande Ponto é o território encantado onde vive a alma errante, boêmia e lírica, curiosa e loquaz, da gente natalense. É um simples cruzamento de ruas. Poderia ser um boulevard, talvez seja um calçadão. Por enquanto, ainda é aquela área que se delimita pela Praça Pio X, ao Sul, onde se alteia a nova Catedral; pela praça João Maria, ao Norte; pelo Café São Luís, ao Leste; e pelo Cinema Rex, a Oeste. É o território profano de uma legenda sagrada, onde há várias décadas, gerações sucessivas elegeram aquele chão para pouso e escala das suas idas e vindas cotidianas ao trabalho e ao lazer. O Grande Ponto é a fusão, ou o "ménage à trois" da Rio Branco, Princesa Isabel e João Pessoa, justamente o epicentro do H, que forma o lendário, maldito, tradicional, eterno e imortal Grande Ponto.
Ali, é onde as coisas germinam e acontecem, onde elas adquirem vida, forma e notoriedade, principalmente a publicidade, o sussurro, o murmúrio, o comentário, a maledicência, sem que os fatos mais importantes se perderiam no vazio e os fatos mais triviais jamais alcançariam as manchetes. Ali, aportam os sobreviventes do diuturno naufrágio, as vozes de todos quantos percorrem as ruas da cidade, no desfile processional de cada dia, os passos perdidos nas calçadas, as vozes dissolvidas no anonimato das multidões.
Onisciente e onipresente, o Grande Ponto comanda a vida da cidade e das pessoas, de seus habitantes e moradores, de seus transeuntes e turistas. As coisas só acontecem e vivem se o Grande Ponto as registrar. Os acontecimentos, ali, se vestem com as roupas do sensacionalismo e as fantasias do escândalo, ou se desnudam no "strip tease" de sua chocante tragicidade e beleza.
Ali, se sabe de tudo, de todas as verdades e mentiras, de todos os atos e fatos e boatos, e, o que não se sabe, logo se conta com as tintas da verdade e do exagero, e o que não é mas poderia ter sido se inventa como se tivesse acontecido. Onisciente e onipresente, o "Grande Ponto" comanda a vida da cidade e das pessoas, de seus habitantes, de seus moradores, de seus transeuntes e de seus turistas.
Políticos, intelectuais, prostitutas, contrabandistas, profissionais liberais de todas as profissões e de todas as liberdades, pederastas e protestantes, bêbados e missionários, "minas" e coroas, adúlteras e tarados, marinheiros e vendilhões, cientistas e mendigos, aleijados de corpo e alma, santos de alma e de corpo, drogados e loucos, de nascença e de sofrimento, a virtude e o vício de mãos dadas, o bem e o mal em idílio fescenino e astral, toda essa formidável procissão de adoradores, amantes e amancebados dessa puta-vida como a chamou Gabriel Garcia Marquez, fazem dali o seu porto ou trampolim, sua bússola ou âncora, nas circunavegações que cada um faz em torno de si mesmo, para vencer as travessias do cotidiano.
O pai da pátria, o candidato, o técnico em idéias gerais, em futebol e finanças, o governador de amanhã, o ladrão em potencial, a menina que fugiu, o desastre que aconteceu, a mulher que trai, o último travesti, o velho transviado, a bailarina de nudez transparente, a "pirada" que faz tudo, o vapozeiro, o cara que inventou a máquina de economizar gasolina, o mão-boba e o bóia-fria, o sujeito que descobriu uma erva que levanta até defunto, o mago que conhece a poção e a fórmula que curam impotência, o contador de anedota pornofônica, o escriba pornográfico e o glosador fescenino, o derradeiro conto de vigário, tudo surge ali nu e cru como uma cicatriz: ou uma navalhada na carne.
Negócios são fechados com três palavras. Cantadas se consumam em um minuto e a vítima cai na primeira esquina. Ouve-se sempre a clássica "chamada" ou "armada", que é gritar o nome de uma pessoa e esperar que a vítima se volte e fique a procurar alguém que nunca se apresenta. No Grande Ponto, funciona a grande agência de informações para todos os viajantes e transeuntes, os perdidos e achados da vida...
O Grande Ponto é o tribunal maior da cidade, onde são julgados e quase sempre condenados os culpados e inocentes, e todos são condenados, porque o Grande Ponto não perdoa ninguém. Os jurados preferem jogar o bolão dentro de barro na túnica do justo a reconhecer-lhe de pronto a inocência que não é normal na criatura humana, ou melhor, na condição humana. Todos são degredados filhos de Eva... ou como diria Camus: "Não há mais inocentes ou culpados, todos somos vítimas".
O Grande Ponto é do contra. Contra-fé, contra-mão, contra-cultura, contra-ladrão, contra-razão, contra-ponto, contra-tudo. É sobretudo contra a força e a prepotência. Contra os governantes corruptos e antipáticos, os Narcisos do poder. É o território livre dos comícios, das passeatas, dos discursos e das badernas. E das tavernas. É a favor dos humildes, do injustiçado e do descamisado, enquanto permanecer como tal. Mas, se passa a ser forte, dominador e bandido, ele se volta para o outro lado. Passa a condenar quem antes defendia. É contraditório e instável como os ventos, o mar e Deus, e como a brisa vespertina que vem das dunas trazendo o cheiro do cio da terra. O Grande Ponto é o retrato da alma boêmia da cidade, alma leviana e borboleteante das ruas. A passarela de todas as alegrias e dores. Os esgotos de todas as sujeiras. O altar de todas as virtudes. Do Grande Ponto, se sai, pela mesma alameda, para a Catedral e para o retiro de Maria Boa.
O Grande Ponto é o palanque de todos os partidos, o parlatório de todos os assuntos, o pelourinho de todas as idéias, o purgatório de todos os pecados da humana criatura. É a grande tribuna da cidade. Sua voz, seu grito, seu protesto, seu incêndio e sua sagração. As passeatas políticas mais exaltadas, os oradores mais incendiários, os choques de paixões mais inflamadas, os fanatismos mais desenfreados, tudo ali assume dimensões de lenda e de canções de gesta, e as personagens parecem verdadeiros titãs surgidos de alguma mitologia bárbara. Grandes líderes de todos os tempos ali travaram batalhas memoráveis, duelos oratórios formidáveis, confrontos de força e prestígio, coragem e bravura. Pedro Velho, José da Penha, José Bernardo, Café Filho, José Augusto, Dinarte Mariz, Aluízio Alves, Djalma Maranhão, líderes do povo, voz do povo, amor do povo, vivem na lembrança, na saudade, na presença e na paixão dos que amam a sua terra e cultuam os seus heróis, com toda a força ciclópica das multidões em êxtase cívico.
Toda força, todo poder, toda magia, todo Dom divinatório, todo carisma, enfim, toda liderança vem do povo, nasce no estrume e no barro do sofrimento coletivo, se nutre da seiva e sangue das aspirações da gente, e floresce no sonho e na esperança da alma multitudinária. O povo ama seus líderes, nascidos de seu ventre trespassado por mil espadas, e por eles luta, mata e morre. O povo não segue jamais, antes condena e repudia os tiranos e os prepotentes, os donos do poder abocanhado como uma presa de guerra, os dirigentes gerados em chocadeiras e concebidos em estufas, fecundados na cama e na mesa das alcovas e restaurantes palacianos, no concubinato de interesses espúrios, de negócios ilícitos e das relações perigosas e clandestinas.
Há uma página de deslumbrante beleza cívica do jornalista Bruno Pereira, e de não menos palpitante atualidade, contra a invasão do Rio Grande do Norte por hordas bárbaras e indígenas. O Grande Ponto sempre foi cosmopolita e poliglota, ecumênico e universal. Zona Franca e Território Livre, bazar de todos os assuntos e mercado de todas as transações. Na Ribeira, existiu uma réplica do Grande Ponto, o café "Cova da Onça" com privatividade para os assuntos políticos.
O Grande Ponto lembra ainda o terminal de todas as linhas de bonde e ônibus que despejam a população migrante, e o local de onde partiam as excursões, os piqueniques e as comitivas políticas ou desportivas. Ali se comemoravam todos os festejos juninos, carnavalescos e natalinos. Os desfiles de pastorinhas, de escolas de samba, blocos de sujos, batalhas de petardos, aconteciam lá no pedaço. Era dali que partiam as caravanas de jogadores de futebol para as violentas disputas entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, os dois mais ferrenhos adversários no Campeonato brasileiro, disputado entre as seleções dos estados. Batalhas homéricas se travavam entre as duas torcidas, numa rivalidade que não conhecia limites e exaltava os ânimos a todos os extremos. Naquelas horas as torcidas se uniam, o vermelho do América, o verde do Alecrim e o negro do ABC, mesclados numa só legenda para defender os brios potiguares contra a bazófia, a prepotência e a arrogância dos tabajaras. O estádio era um grito só: "Não paraibanizarão o Rio Grande do Norte!"
Revejo as figuras oraculares de Djalma Maranhão, João Machado, Ivanildo Deus e tantos outros que comandavam ajuntamentos e rodinhas que se postavam no meio da rua, obstruindo o trânsito, a ponto de os automóveis trafegarem em marcha lenta, pedindo licença para passarem. Ali no Grande Ponto ninguém escapou no passado, e nem escapa no presente, à navalha e à língua do povo. Fala-se muito, fala-se demais, e fala-se mal. Ali o instrumento de trabalho é a língua, como chave de todas as portas e instrumento de todas as mensagens. Quem tem língua, vai a Roma, diz o ditado, e, no Grande Ponto, a língua é açoite e carícia, para falar mal da vida alheia e prometer mistérios gozosos.
Ama-se o Grande Ponto com amor felino e sexual. Os que beberam de seu vinho e se banharam em suas águas premonitórias, que tinham suas nascentes no canal do Baldo, aprendendo a ler na bola de cristal a perscrutar os alguidares das pitonisas e a decifrar o baralho das cartomantes, e não esquecerão jamais, enquanto vida tiverem, os momentos ali vividos. Poderão desertar dele por temporadas, mas voltarão sempre, ao primeiro cochilo da mulher, sob os pretextos mais variados, como a compra dos jornais do Rio, do remédio, do encontro com o amigo para realizar um negócio importante, e até para a olhada nas vitrines e a degustação de um cafezinho.
Maior do que o amor de seus discípulos eternos é a vontade de pecar dos que nunca conheceram ou a ânsia de reincidir dos freqüentadores de outrora.
Há nomes de pessoas, bares cafés, restaurantes, sorveterias, que se perenizaram nas idades e na tradição oral. Há namoradas inesquecíveis de sonhadores imortalizados através de gerações de contadores de histórias. Há os "reitores" dessa Universidade, que são nomes famosos na cidade, os verdadeiros poetas e amantes dessa "filha de Poti mais Bela" (bela adjetivo ou substantivo), como foi batizada por um primaz da Igreja, que tanto amou esta cidade entre o Potengi e a beira-mar plantada.
Natal, à meia-noite, quando começa a viver sob a lua e o sol, o início de um novo dia, é a coisa mais bela do mundo vista do Grande Ponto.
À meia-noite, hora dos espíritos e das assombrações, das serenatas e dos presságios, Natal é uma mulher nua, amada-amante, oferecendo aos que acordados a vigiam e cantam, em versos e serestas, a ceia larga de suas estrelas cadentes e o seio largo de sua sensualidade perfumada pela brisa dos morros, de seu sexo em flor cheirando a jasmim e rosas, concha marinha aberta ao orgasmo delirante de seus apaixonados. É de lá que se vê sobre o rio a estrela da manhã. Pura ou degradada até a última baixeza, como dizia Manuel Bandeira, mas só de lá é que se vê, em todo seu resplendor embaciado, em seu brilho sujo de fumo e cachaça, saliva e esperma, lágrima e riso, a estrela da manhã sobre Natal...

In Grande Ponto - Antologia do Laboratório de Criatividade/UFRN - 1981


Fragmentos do Grande Ponto

Léo Sodré

Luciano de Almeida

Grande Ponto dos sonhos de incontáveis gerações de potiguares que, em épocas diversas, se encontraram nesse logradouro para conversar, lutar, amar, protestar ou simplesmente passar.
24 de agosto de 1954: milhares de pessoas oriundas de todos os recantos da cidade, convergem para o centro do centro com o objetivo de lamentar a morte do presidente Getúlio Vargas. As portas de rolo batem ruidosamente no chão ante a ameaça dos manifestantes. O choro é convulsivo entre os populares que, com paus e ferros, riscam as tiras articuladas das portas das casas de comércio, produzindo uma sinfonia dodecafônica que causa medo a todos nós.
Enquanto isso, eu, menino, recolho avidamente carteiras de cigarros vazias depositadas nas sarjetas do Grande Ponto. São maços de Camel (a nota mais valiosa), Luck Strike, Pall Mall, Chesterfield, Hollywood, Continental, Astória, etc. No Botequim, a conversa rola solta. É agradável o odor que emana do Café Maia. Na Confeitaria Cisne, jogadores do ABC e América resolvem, no braço, a partida de futebol que restou inacabada no Juvenal Lamartine.
Fins da década de 50: os estudantes secundaristas se postam no Grande Ponto, exigindo que a direção do Cinema Rex passe um filme de graça, ameaçando depredá-lo caso não atendam a reivindicação. A direção cede; os estudantes, em algazarra, entram maciçamente no cinema.
Noutro momento, uma turma (ou turba) de estudantes sob o comando de Pecado, investem furiosamente contra um ônibus da linha Rocas-Quintas, que passa lentamente no Grande Ponto. O ônibus é forçado a sair de seu itinerário e, perseguido por centenas de jovens excitados, contorna a praça Padre João Maria, entra na rua da Conceição e é encurralado na Coronel Cascudo. Os passageiros do coletivo mal têm tempo de pular apressadamente pelas janelas; os estudantes, impiedosamente, começam a apedrejá-lo e, por fim, põem fogo no veiculo. O esqueleto calcinado permanece vários dias no local.
No inicio dos anos 60, o Grande Ponto fervilha politicamente. A esquerda discute freneticamente o destino do Brasil. As vozes vibrantes do ferroviário Vavá e do telegrafista Afrânio Noronha são ouvidas de ponto a ponto, de lado a lado, do Grande Ponto. Eles denunciam o imperialismo norte-americano, defendem a Revolução Cubana, querem as reformas de base, apoiam o governo de João Goulart.
A Praça da Imprensa é a praça do povo. Na sacada do Fórum de Debates, em cima do Vesúvio, o deputado Leonel Brizola, com arma no coldre, cospe palavras de fogo, atacando o embaixador Lincoln Gordon e o general Muricy, a quem chama de “gorila” (com o perdão dos gorilas).
Organizada em colunas de oito pessoas, desfilam desafiadoramente no Grande Ponto os operários da construção civil, à frente o presidente do sindicato, Evlim Medeiros, que grita palavras de ordem em defesa da categoria em greve na cidade de Natal.
Discretamente, passa pelo Grande Ponto, com seu fino bigode à Clarck Gable, Carlos Villa, carregando debaixo do braço toda a imprensa socialista (Novos Rumos, Semanário, Panfleto, Terra Livre, etc.). Pelé solfeja a Tocata em Fuga em Ré Menor. Dom Inácio, nosso Marco Pólo do vale do Ceará Mirim, tendo em volta Alma de Vaqueiro, Bosco Lopes, Onofre, Hélio Brucutu e outros, relata suas fantásticas viagens pelos confins do Brasil.
Em meio a isso tudo, o golpe militar é urdido à socapa pelas forças políticas reacionárias. Os espiões espionam e listas são preparadas, contendo os nomes dos que serão presos quando da vitória da ofensiva golpista em desenvolvimento.
Um casal de mulheres, de braços dados, dão a volta no quarteirão. Sinal dos tempos. O prefeito Djalma Maranhão, envolto na bandeira nacional, comemora alegremente a conquista do bi-campeonato mundial pela seleção brasileira no Chile em 1962.
31 de março de 1964, o medo é instaurado no Grande Ponto. A repressão desencadeada pela ditadura militar alcança numerosos membros da comunidade que freqüentavam o logradouro. Tempos ásperos, anos de chumbo. 1968. Fugaz primavera. Os estudantes (universitários e secundaristas) voltam a ocupar o espaço político do Grande Ponto. Em abril daquele ano, milhares de estudantes, artistas e intelectuais natalenses se reúnem na Praça das Cocadas.
Cesildo Câmara e Ivaldo Caetano denunciam a morte de Edson Luiz no Rio de Janeiro e chamam o povo para a resistência aos usurpadores do poder. Carlos Furtado e Selma se beijam e rodopiam na calçada do Novo Continente. João Gualberto e Graça Arruda passam abraçados pelo Grande Ponto. Anchieta Fernandes, Dailor, Falves, Alexis Gurgel dirigem-se para a Livraria Universitária para uma conversa de fim de tarde.
Juliano Siqueira, Bené Chaves, Sobreira, Manu, Gilberto Stabili, Ivanez, Marcos Silva e outros discutem a Nouvelle Vague, o Neo Realismo e o Cinema Novo, enquanto se preparam para assistir, no Nordeste, mais uma sessão do cinema de arte.
Com o Ato 5, soa o dobre de finados para toda a atividade política no Grande Ponto. Ponto final.


Grande Ponto, 1960




Os passeios de elevador, escada rolante
e os malditos militares que mataram Silton
Petit das Virgens

Era 1960.
A casa de número 714, da Rua Gonçalves Lêdo, era muito comprida. Na frente, todos os dias, ouvíamos as guarânias "iraquitaneanas" dos ensaios do trio dos Guanabara. A porta de trás dava para a Rua Voluntários da Pátria, de frente para a casa de Dr. Temístocles Duarte, pai de Ticiano. Foi lá onde eu conheci Zequinha, um dos meus primeiros amigos natalenses: hoje, Zeca Melo. Vizinho era a escola de Dona Beatriz Cortez.
Foi lá que eu conheci Vulpiano Cavalcanti, meu primeiro amigo fora da Cidade Alta. Ele me levou até o Tirol pra me mostrar o avião que "um dia ia voar", que estava construindo na garagem da casa. O pai era médico, comunista e um perseguido político.
Há pouco tempo, fui deixar Vulpiano no cemitério do Alecrim, pertinho de papai. Quem sabe, ele está voando naquele avião que nunca sairia da garagem.
Agora, voltando à Cidade Alta, o vizinho da frente também era Zequinha e logo ficamos amigos. Eu também ainda não me chamava Petit. Somente dois anos depois, irmão Louis, um velhinho francês de Lion, que tomava conta das abelhas do Colégio Marista, aqui em Natal, seria meu professor de francês e só me chamaria de "mom petit enfant". Mamãe mesmo, até hoje, prefere chamar-me Edinho.
O Grande Ponto era para mim uma grande Nova Iorque. Eu estava chegando de Nova Cruz onde meu quintal era o rio Curimataú. Os poucos automóveis que conhecia eram o Impala de Seu Totô e a sopa (ônibus) dos irmãos Flôr. A vida andava de trem. Meu "grande ponto" era a estação. O meu mundo agreste tinha três donos: dona Joanita Arruda Câmara, a prefeita; papai, Joaquim das Virgens, o juiz; o outro era o vigário.
Natal era uma metrópole de muitos donos e minha nova morada. No Grande Ponto não passava mais bondes que hoje dão charme a cidades turísticas como São Francisco ou Lisboa. Os trilhos e os paralelepípedos ainda estavam lá, mas logo um dos donos cobriria a avenida Rio Branco de asfalto - diziam, na época, com dinheiro de Moscou. Depois disso, a Cidade Alta nunca mais teria a temperatura média de 28 graus. Meu sonho é ver um dia os bondes de volta, agora carregando os turistas até às atrações natalenses.
Em pouco tempo, adaptei-me à nova vida. Minha mãe me botou pra ajudar missa no Convento Santo Antônio. Tinha que usar uma batina roxa com um babado branco no pescoço. Eu me sentia importante. Era divertido botar incenso no turíbulo para fazer fumaça. Um belo dia, em vez de três, eu coloquei oito colheres de incenso. Na hora da elevação, foi uma fumaceira total. As pessoas todas tossindo e, finalmente, depois da missa, veio a sentença de Frei João Batista:
- Dona Sinhá, seu menino não dá pro ofício.
Comecei a fazer muitos amigos. Meus primos Flávio, Fernando, Ângela e Rosane Pípolo de Amorim, na Voluntários, eram um alento, pois também tinham vindo de Nova Cruz, onde éramos vizinhos. Logo fiz amizade com Tarcísio, filho do dono da padaria e o meu primeiro "televizinho". Era assim que a gente chamava os amigos mais ricos que já tinham televisão em casa. A vizinhança ia toda assistir. Logo eu estava cheio de amigos: os irmãos Paulo e Rui, Netinho, Aninha, Wilson Maranhão, Zilmar e os irmãos.
Um coleguinha era especial. Roberto morava num sobrado no Beco da Lama e o pai trabalhava no Cinema Rex. A gente podia entrar de graça nos filmes proibidos para menores de idade. Foi ele quem me ensinou a assobiar alto quando aparecia alguma mulher nua na tela. No domingo, depois da missa na catedral, o grande programa era assistir o seriado no Rex. Tarzan, Batman, Superman nas maravilhosas cores preto e branco.
A briga entre Dinarte Mariz e Aluízio Alves estava no auge por conta da candidatura de Djalma Marinho a governador. A disputa da memorável campanha terminava atingindo a molecada, que se divertia subindo nos telhados para colocar bandeiras verdes ou azul e rosa. Eu não podia botar lá em casa, pois papai, em sua dignidade extrema, não permitia que a casa de um juiz tivesse bandeira nenhuma. Três anos depois, ele morreria de um câncer que o devastou em 53 dias.
Aluízio sairia vitorioso e, alguns anos depois, receberia, no Grande Ponto, o senador americano Robert Kennedy. Ele representava, na inauguração da praça Kennedy, o irmão-presidente assassinado. Foi o momento mais emocionante do Grande Ponto. Pouco tempo depois, Bob Kennedy também seria morto a tiros.
Apesar da politicalha provinciana, o romantismo imperava, principalmente quando íamos à casa de Flávio Pípolo, ouvir o boêmio pai João Alfredo Amorim dedilhar o violão e cantar "teus olhos castanhos de encantos tamanhos"... à amada Dulze. À tardinha, era obrigatório tomar banho e se arrumar para ir passear no Grande Ponto. O périplo começava na calçada do Cinema Rex, mais especificamente em frente à Cruz Vermelha, onde funcionava o juizado de menores. Era lá mesmo que tinha uma banca de puxa-puxa, muitas vezes usada para arrancar dente de leite. Eu e Flávio Pípolo comprávamos o doce e íamos para a vitrine da loja quatro e quatrocentos (depois Lobrás e preparando-se pra ser Marisa) ver os carrinhos de corda importados e passear de escada rolante.
Depois tinha uma parada no pipoqueiro, antes de passear no único elevador de Natal: o do edifício São Miguel. Ele ainda existe e outro dia andei nele quando levei meus filhos para tirar retrato no Foto do Estudante, ali em frente ao Banco do Brasil. Ele ainda funciona perfeitamente com aquelas grades sanfonadas. Na volta, uma parada em frente ao Natal Clube, na Praça Kennedy, para uns saquinhos de castanha confeitada ou um algodão doce feito na hora. Finalmente, um sorvete na Sorveteria Oásis, no mesmo prédio do Cinema e da Radio Nordeste.
Quatro anos depois, viriam aqueles terríveis militares no mesmo local, arrecadando "ouro para o bem do Brazil". Com esse ouro, eles sustentaram um regime que prendeu meu cunhado quase um ano; condenou à morte meu amigo Theodomiro Romeiro dos Santos e; assassinou, num tonel, meu outro grande amigo José Silton Pinheiro, depois de uma sessão de tortura num "pau-de-arara", no Rio de Janeiro. Ambos eram da minha sala no Colégio Marista.
Nunca mais o Grande Ponto foi o mesmo.


Grande Ponto

Carlos Lyra

Luís da Câmara Cascudo

O Grande Ponto tem uma história bem diversa da que suponhamos existir. É, incontestavelmente, a situação geográfica mais popular da cidade. Localiza, fixa, delimita. Todo natalense conhece o Grande Ponto. Nada recorda o nome. Entretanto, é inegável para toda população - "Você se encontra comigo no Grande Ponto", "Vamos chegar no Grande Ponto". Contudo, o que era denominado de Grande Ponto desapareceu há mais de meio século. Era uma casa comercial, de duas portas para a Rio Branco e três para a Pedro Soares, que, depois de 30, tomou o nome de João Pessoa. Essa mercearia era de propriedade do português Custódio de Almeida, mercearia afreguesada, com algumas mesas para se tomar cerveja; no salão ao lado, dois bilhares utilizados pelos devotos dos divertimentos. Não era o lugar freqüentado por meu grupo, que, nessa época, década de 20/30, preferia o Bar Majestique, antes chamado de Potiguarânia, o grande bar da minha geração, situado na rua Ulisses Caldas, e freqüentado por jornalistas, professores, literatos. Também freqüentamos o Bar Delícia, na Praça Augusto Severo. Estes eram os dois pontos mais freqüentados em Natal, na época. A minha geração toda passou por lá: Othoniel Meneses, Jorge Fernandes, etc.; era o bar - o Majestique - da bebida, da classe média, da intelectualidade. O Grande Ponto, ao contrário, era um lugar de passagem, uma fixação puramente topográfica. Era, na geografia da cidade, ponto fixo. Grande Ponto foi denominação daquela esquina e aquela esquina se tornou imóvel e catalisadora nas memórias. Havia, porém, uma outra esquina - para quem estuda trânsito, a posição das esquinas tem uma grande função delimitadora de bairro e fixadora de local - a qual Djalma Maranhão denominou-a de "esquina do mundo", a esquina da Tavares de Lira com a rua Dr. Barata. Ele a chamou de "esquina do mundo", pois era a Ribeira o bairro socialmente mais conhecido, e a esquina o ponto, além de um dos mais conhecidos também, o de mais fácil indicação. Dizia-se: "Você se encontra comigo na esquina do mundo." Era a esquina da Tavares de Lyra.
Quanto ao Grande Ponto, eu, muito acidentalmente, passava por lá; e quando isto ocorria, bebia-se cerveja assistindo ao jogo de bilhar - aí por volta de 23, 24, 25. O português Custódio de Almeida, dono da mercearia e casado com uma filha do Capitão, mais tarde Coronel Toscano de Brito, era exatamente relacionado, simpático, grande conservador, conversava muito, sempre vestido de branco, baixo, grosso; depois de 30, mudou-se para o Recife, onde abriu uma mercearia diante do mercado São José.
Mas o nome Grande Ponto permanecia na fachada de seu edifício, que dava para a Rio Branco. E era também um grande ponto. Por ali cruzavam-se os bondes elétricos. Pela rua Pedro Soares, então João Pessoa, vinham os bondes de Tirol e Petrópolis. Pela Rio Branco, chegavam os da Ribeira e Alecrim. Cruzavam-se todos no Grande Ponto. Era o ponto de encontro. Depois de 30, ficou famoso pelos políticos, partidários, eleitorado, que se reuniam no Grande Ponto. Era o chamariz. Os comunistas tentaram pôr o nome de Praça Vermelha, em 35. Djalma Maranhão chegou a chamar-lhe Praça da Imprensa. Mas o povo defendeu sua preferência, que era Grande Ponto. E o Grande Ponto marcava a situação topográfica da cidade. Todo mundo sabia as tabelas de táxis e o pagamento de bonde da Ribeira ao Grande Ponto, do Alecrim ao Grande Ponto, de Petrópolis ao Grande Ponto, do Tirol ao Grande Ponto. Não tinha outra localização. Não se falava na casa de Ângelo Roselli, onde está, hoje, o Hotel Ducal, que era um palacete, habitado por um parente dele, deputado e um dos primeiros advogados da cidade.
Também existia, nessa época, o Natal Clube, maior centro social da cidade, situado na outra esquina. À tarde e à noite, jogo de pôquer, copas. Porém o nome que de fato subsistia era o da mercearia de Custódio de Almeida, o Grande Ponto, que ficou.
Grande Ponto. Há 50 anos não se escutava a sua história. Mas o próprio Aldo Pereira aludia à situação topográfica dizendo, "Grande Ponto", e não existe, em Natal, topônimo mais conhecido que ele, mesmo nas gerações posteriores, e que não alcançaram aquele edifício de Custódio de Almeida - cujo caixeiro, Amaro Mesquita, trouxe outro episódio emocional: caixeirinho moreno, pobre, humilde, varrendo a calçada, parava o movimento da vassoura e dizia: "Nesse lugar vai ser o meu sobrado" ou "eu farei aqui o meu sobrado". E fez. Construiu um edifício de vários andares, botando abaixo a mercearia da esquina na época, o maior sobrado de Natal, e que ainda hoje está aí. O caixeirinho Amaro Mesquita chegou a ser um grande comerciante de Natal. Mesmo o sobrado, ninguém dizia: "Você se encontra comigo em Amaro Mesquita". Os cafés, os bares já existiam na rua João Pessoa. Também ninguém se referia a eles. Só se falava: "Você se encontra comigo no Grande Ponto". E o Grande Ponto não existia mais. Contudo, era uma presença e continuação. Este é o meu depoimento.

Natal, 11 de junho de 1981
Luís da Câmara Cascudo

In Grande Ponto - Antologia do Laboratório de Criatividade/UFRN - 1981


Redinha, 400 anos

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Redinha velha cansada
Muito orgulhosa de si,
Deita o corpo embriagada
No leito do Potengi.

João Alfredo


A praia da Redinha comemora 400 anos com uma vasta história ocorrida em suas areias finas, onde o tempo generoso guarda todas as lendas de uma praia, habitada por pescadores, com suas casas de palha e seus humildes quintais.
A primeira referência existente, sobre o local onde é hoje a Redinha, figura no texto de sesmaria, concedida ao vigário do Rio Grande, Gaspar Gonçalves Rocha, por João Rodrigues Colaço, em 23 de junho de 1603.

Nesse recanto de mar aberto, os portugueses daquela época já conheciam o potencial pesqueiro da praia, que era o antigo porto de pescaria dos capitães-mores, os quais foram os primeiros colonizadores do lugar. Segundo o historiador Olavo de Medeiros Filho, existe um mapa intitulado “Perspectiva da Fortaleza dos Reis Magos”, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, localizado pelo historiador pernambucano Antônio Gonçalves de Melo, referindo-se a um “Porto de Pescaria”, com a presença de “rede”, no mesmo local onde hoje é a Praia da Redinha.

O topônimo da praia, segundo Câmara Cascudo, faz referência a uma vila em Pombal, na beira baixa do rio Tejo, em Portugal. “Distrito vila, a margem esquerda do município de Natal. Redinha-de-fora é um local arruado. A Redinha-de-dentro fica na foz do Rio Doce, desaguadouro da lagoa de Extremoz”, diz o mestre Cascudo, no livro Nomes da Terra.

A igreja de pedras pretas, construída pelos veranistas, em 1954, foi erguida de costas para o mar – sem má fé, mas imperdoável para os pescadores. E é por isso que os pescadores continuam freqüentando a capela de Nossa Senhora dos Navegantes, bem mais antiga, construída em 1922 – igrejinha menor, “branca, como uma capelinha panda ao vento”, para usar a expressão da Praieira de Othoniel Menezes.

Na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes há duas procissões, com duas imagens: a da capelinha antiga é a imagem da Procissão Marítima, pelas águas do rio Potengi, entre a Boca da Barra e os confins da Base Naval; e a imagem da igreja preta que vai por terra, levada pelos veranistas ao longo das ruas e becos da vila.

O toque de fé e lirismo é o encontro das duas imagens, sob o aplauso fervoroso do povo simples de lá, inclusive nós que cantamos o Hino da Santa arrastando a esperança de que, não tendo faltado à sua procissão, seremos felizes o ano inteiro. Uma velha certeza, mistura de lendas e crenças populares.

De pedras do mar, também foi construído o Redinha Clube, em 1937, para o deleite festivo dos veranistas e pescadores em épocas de carnaval e durante a Festa do Caju. Durante décadas, o Redinha Clube teve uma importância relevante para a sociedade que freqüentava aquele recanto do Potengi. Hoje, está abandonado e esquecido, quase enterrado pela areia que avança para a vila.

A praia da Redinha sempre foi cortejada por intelectuais, boêmios e artistas, os quais viam em sua paisagem balneárias, entre mangues de rio e mar aberto, um lugar mágico para inspiração e descanso.

Quando visitava Natal, em 1929, o folclorista e escritor paulista Mario de Andrade, de passagem pela Redinha, encantado, disse no seu livro Aprendiz de Turista: “Oculta nessa monotonia de banda do mar, fica a Redinha, praia de verão, bairro em que ninguém sonha pela preguiça do pensamento que atravessa o rio com esse sol.”

O escritor Mario de Andrade foi convidado pelo mestre Câmara Cascudo a conhecer o folclore e a beleza do povo potiguar e ficou maravilhado com a travessia de barco, que saía do cais da rua Tavares de Lira até o trapiche, em frente ao Mercado da Redinha. Naquela época, a travessia pelo Rio Potengi era feita de barco a vela, só dependia do vento e dos braços fortes do pescador que comandava a embarcação.

É na Redinha que o cronista parnasiano, Vicente Serejo, adotou sua morada e, cuja prosa poética não esconde a paixão pela praia quando escreve: “Redinha boa, Redinha mansa, Redinha cheia de solidão como Pasárgada de Bandeira, lá todo mundo é Irene e ninguém precisa pedir licença”.

Os versos do poeta João Alfredo, morador antigo da vila, contempla os 400 anos de história da Redinha com acalantos à praia amada, como se o eterno canto de amor do poeta saísse feito uma prece ungida da alma, exprimindo todo sentimento e orgulho de ser potiguar.

Alexandro Gurgel


FESTA NA REDINHA

ODOIÁ, MINHA MÃE,
SANTA DOS NAVEGANTES
Eduardo Alexandre
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Senhora dos Navegantes e de quem dela se acerque pedindo proteção, do topo da igreja de pedras escuras talvez trazidas dos arrecifes do outro lado do rio, da praia de Santa Rita ou Jenipabu, vizinhas, deita seus olhos sobre o mar: recomenda ao Senhor a dádiva dos peixes para os que se aventuraram na imensidão das águas, rogando retorno feliz.
Zelosa, também estende proteção aos que ficam, e todos, agradecidos diante de sua imensa bondade, fazem dengo, aprontando a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, no último domingo de janeiro, sobre águas corredouras do Potengi e solo da paciente Redinha, por assim se chamar pelas extensas redes-de-pesca dependuradas e a fazer voltas, labirintos, para a secagem, limpeza e reparos da malha, em varas bifurcadas fincadas em meio ao areal branquinho que recebe, não se recordam os anos, manso, o vento que renova o chão que é quase pó, da ponta de céu azul, claro, de poucas nuvens, onde se misturam águas doces, de pra lá dos igapós, aos sargaços desaguados do mar atlântico, imenso e verde, quase sereno.
O rio, Grande por nominação de conquistadores lusitanos, mercenários de El-Rey, tomado de barcos decorados em bandeirolas coloridas por todos os lados, comemora. O velho mercado, nativo da vila originária de antigos pescadores, também, no seu cheiro de dendê e cachaça, ginga tostando no óleo da caçarola, à frente dos fiéis, fogão já não mais à lenha, parece templo, quase silêncio.
Em derredor do Redinha Clube, herança de primitivos veranistas, armam-se barracas para a venda de comidas e bebidas - grude de Extremoz, tapioca, fuba embutida em barquinhos feitos artesanalmente em palitos de palha, linhas e papel-seda de cores vivas, vermelho, amarelo, azul; quentão na ordem do dia, quando a caipirinha, a de dois dedos (mindinho e indicador), a cerveja, falam mais alto e ajudam o canto e os acordes do violão. Em operação, carrossel, roda-gigante, balanços de barcos pesados, estandes de tiro, jogos-de-argola, e até alto-falante, a oferecer músicas às bem-amadas. Desejo.
No palanque montado de véspera, em frente à capelinha branca, oratório de pescadores, de poucos bancos, humilde como eles, será encenado o boi-de-reis, uma chegança, quiçá um fandango, participantes excitados, gajeiro encantado pela presença e beleza das pastorinhas - cordões azuis, encarnados, espíritos de velha etnia. Tradição.
O povo fará procissão. O padre, em paramentos cuidados, dirá missa e, feito batista, sacramentará os pagãos; moças casadouras ganharão aliança em vestes bem brancas; novenas anteciparão maior proteção.
- Viva Nossa Senhora dos Navegantes !
- Viva !
As Imagens são duas, que importa, se a festa é única como a crença do povo?
- Odomiô !
Apinhado de fervor à espera das bênçãos que vêm do rio, o trapiche que serve ao embarque e desembarque da Santa, o mesmo usado pelos que fazem a travessia fluvial, hoje no Albacora Azul - pintado de verde e branco - estará pleno, e os rojões espoucarão à passagem da boa mãe poderosa, tranqüila e terna, eterna na memória católica.
- Vai um alfinim, moço? Cuscuz ao leite-de-coco?
A praia, da ponta do cemitério dos ingleses - hoje ancoradouro da balsa do Pipes - ao quebra-mar do farol da barra, estará toda tomada por uma multidão de devotos. Bugres, a circular, trazendo gente bonita, bronzeada ao sol do passeio pelas dunas móveis, fazem a alegria dos turistas. Os donos de bar, os balaieiros de pitombas, serigoelas e cajás, os meninos do picolé, o sorveteiro Clóvis, festejarão lucros, e das ruas da vila, junto ao prefeito e indefectíveis pedintes de voto, sorridentes e prometedores, virá a procissão de terra trazendo a Santa dos mesmos milagres, mais humilde, não menos gentil, saída da capelinha branca e erguida, ninguém sabe quando, na mais elevada duna, acompanhada de cantorias e rezas entoadas ao ranger de terços de velhas senhoras, muitas, filhas de finados caçadores-de-caranguejo dos mangues seculares da lamacenta Camboa, para onde não se dirigirão Os Cão, aguardo de terça-gorda de carnaval.
Tudo será alegria, e o encontro das Imagens é a fé renovada a cada fim do mês do caju.
Alegria tanta que se desdobra em novidades, fazendo o insistente Baiacu na Vara antecipar a quarta-de-cinzas e de tristeza, lembrança de que o ano nosso começa na quinta, ainda devagar, para se firmar na segunda-feira de fim de folia.
Na margem oposta, da Pedra do Rosário, local onde a Padroeira Nossa Senhora da Apresentação foi deixada por colonizadores impositores de religiosidade, ao quebra-mar do Forte, protetor da Povoação dos Reis, depois cidade Natal, contra corsários do norte e indiada em revolta, sem querer entregar-se, virar escrava, ceder o chão, na boca da barra, a gente acotovela-se, aplaudindo a passagem da Santa da igreja de pedra, renovando súplicas por dias melhores.
No cais do porto, o navio apita e a tripulação acena, agitando lenços ou bandeirolas que enfeitarão de gestos multicores os nautas da procissão embarcada. Os ioles descerão as rampas dos clubes da rua Chile, outrora importante a ponto de abrigar sede de governo provincial, o ex-todo-poderoso Lloyde inglês, grandes frigoríficos da indústria da pesca, famílias de tradição e labuta, e singrarão o rio soberbos como em memoráveis regatas, ao lado de lanchas modernas e velozes, algum iate porventura ancorado no clube da Limpa, jet skis em manobras lépidas e mergulhos radicais, velas coloridas das pranchas do wind surf da paisagem mais jovem, uma ou outra quase extinta jangada de praia do litoral norte, mais distante do progresso, Maracajaú, Pitangui, Muriú, ou, quem sabe, um paquete como os que subiam a praia do Maruim sobre rolos de troncos de coqueiro, nos fins de tarde, entupidos de mistérios e de lulas, polvos, tartarugas, ciobas fresquinhas, cavalas, ariocós, galos-do-alto, xaréu, e até o pegajoso cangulo de apreciado e, dizem, milagroso caldo.
Os timoneiros estarão em festa. Os ultra-leves, como as gaivotas, pairando, seguindo a frota, também. Os pescadores contarão estórias, falarão das tormentas e cerrações, nortadas, e recordarão comemorações de outrora, ritual de anos sem conta, antecipando o 2 de fevereiro de Iemanjá, de Iara, rainhas das águas, quando teria festa no mar.
Uma imagem pelo rio, outra pelos becos e ruas da chamada e amada prainha, esquina à venda do cansado Deífilo, rua do Cruzeiro, cemitério às homenagens dos póstumos, Pé-do-Gavião, calçadas profanas do povo novo, de profissões hoje diversas. Todos confundem-se à passagem das Senhoras do navegante, são todos iguais nesse momento, na fé e na festa, no aplauso aos rogos atendidos, na crença na Santíssima Unidade, dogma de bem-querer.
Como começou essa festa, não se sabe. Vem de antes da virada do século, diziam os mais idosos repuxando memórias que vinham dos pais, referências de avós, de tios que enfrentaram os mares e os ventos de antigamente, embarcações diminutas contra o tenebroso oceano e que só retornavam se guardados pelas súplicas da Boa Senhora.
A procissão de duas imagens é recente, dos tempos da construção da igreja dos veranistas, época na qual os nativos insurgiram-se contra a posição da Imagem voltada para a vila, de costas para o mar, de onde vinham as orações mais recorrentes, salgadas de perigo e medo de morte medonha, incerta, muitas vezes sem choro de corpo presente.
Atendido o apelo, a paz voltou à vida da velha vila e estância gostosa e romântica de veraneio, cativante, acolhedora, balneário a amealhar boêmios e corações mais despojados, amantes de violões que cantavam praieiras de doces e revelados amores, e que falavam de ventos que assobiam em telhados, assanham cabelos da morena e encrespam ondas do mar... tempos que jamais voltarão, é verdade, mas que materializam-se em sonhos no dia da festa santa.
- Saravá !


Lula Augusto

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Muito Além do Beco


Becolamense


Galeria do Povo / Campina Grande

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Exposição da Galeria do Povo, novembro de 1977, em Campina Grande/PB. Na foto, Rominho, filho de Clotilde, ajuda na montagem de exposição comemorativa aos 10 anos do Poema Processo.
Dunga




sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Tu me chama

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Bar de Nazaré

Ardo
Queimo
E o que resta é cinza
Um amor, um desejo...
Um prazer que se vai...

...e s vai...se

Que fica dentro

Em minha essência

Em mente, espírito, corpo, sexo, coração

Em mim toda

Presente passado
Quiçá futuro[?]

É bom ser labaredas

De vez em quando, meu bem!!

Civone


Um Beco como saída

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Piru e Zé Antônio, do Esquina 16

Há algo de podre na límpida lama do Beco.
A fama do Beco bóia no Potengy rio arrimo.
A primazia institucional pelo aparato do Beco,
atrapalha o trabalho, sacrofício.

Se tudo flui,
a cidade arrabalde conflui às suas entranhas.
Absorto em pedra e botecos.
Tudo sedimenta no Beco.
Cloaca do universo.
Tinha um Beco no meio do caminho...
Não foi um rio...
Foi um Beco que ficou em minha vida.
Levitante alma na lama
arte não reta, ereta!

Nas intempéries da confusão de toda urbe
Suspiros poéticos e hospício ao céu que reluz
o Beco é estorvo criador
à imagem e semelhança das suas criaturas.
Tipos. Figuras. Espécimes.
Trastes. Bichos. Personas.
Ratos Humanos. Homens Gabirús. Escrotas Corjas. Santos Dementes. Putas que Pariram.
Jogo do Bicho. Toda sorte e azar ao léu.
Nicho nojento que dá na bocágua e álcool.

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Assis Marinho, pintando no Beco


Beco cordão umbilical do imaginário udigrudi.
Potiguarânia, Magestic ... Zenitê reduto zero.
Amálgama das nações Canguleira & Xária.
Espaço sagrado, vomitado, sangrado.
Chão de profundezas infinitas...

Não podemos reproduzir as provençais
picuinhas da política tradicional
das seculares oligarquias barrocas de NATALVESMAIA.
Chega de tentar dissimular:
discursos modernosos, lábias & lorotas alheias.
Ao cerne the question: práxis!

Como Diluir a lama na fama?
Como suscitar o Beco como saída
contra o tódio desmemoriado?
Como inserir, edificar
a mítica viela em espaço concreto?
Onde assentar os Sem-Beco?
Espacializar & territorializar o Beco!

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Intituto Histórico


A labuta é fazer tradição.
Exercitar história. Render a memória.
Excitar a libido, feito portas de igreja
e pernas de prostitutas
sempre prontas a deixar-se passar...
Beco vício vil, falaocioso.
O Beco não cabe em si
funda-se em santíssimos saberes:
vicissitudes no coito cotidianus.

O culto à m ística do Beco é um buraco neglo.
Da clara lama ao caos da fama
sambas & rachas & bambas
Alilás, a ofensiva lilás é a interseção
entre o rego e o brilho
do gênero ao sui-generis.
Na calçada de lama, altos saltos da egolatria.
Urge altruísmo!

Transformar é argumento pragmático.
Como? Venham a nós todos
os quadros do Beco e do Bequismo
todas as siglas numa suculenta sopinha de letras
todas as matizes Pererálticas
para lavar, pixar, pintar o Beco.
Põe Pôla na sua vida e caótico fuxico se instaura.
Escarrar no Beco
enquanto esperamos Gardênia.
Maledicências febris...

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Carlança


Na contramão da abstração “das kapital”
a mais-valia boemia se produz e
reproduz em delírios in tremens.
Ébria produção do delírium vitae.
Cada gole como se fosse o último
fosso átimo fossa.

Milacrias
o Beco na veia ou no veio ávido.
Saída onírica para SAMBAS em todos os TAOS.



Plíno Sanderson - Poeta, escritor, artísta plástico, antropólogo, professor de geografia e anima-a-dor-cultural. Diretor cultural da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências.


RN

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A bela Yasmine, boa jornalista como o pai, apresentando para a galera Rubens Lemos Neto, já conhecido por RN.


Mais Frei Carmelo

Alguns anos atrás, andando pelo sertão, vi falar em um cidadão cujo apelido era Frei Carmelo, esse era de Jaçanã, mas a origem do apelido era outra, nada a ver com andar um ano trajado de capuchinho como sói acontecer muito por esse mundão de deus, criancinhas pagando promessas feitas pelos pais e ficando o resto da vida com essas lembrança muitas vezes ridículas: andar fantasiado de Frei. Era uma historia bem picante, tinha até a palavra proibida, a interdita, a impronunciável, a parole maudit bequiana no meio...

Mais não conto, vamos esperar Frei Carmelo se pronunciar, se ele for mesmo de Jaçanã, só tenho a agradecer a honra de ter boa memória, embora ela - memória - nesse caso específico fique muito seletiva para não recordar maledicencias alheias.

Orf
Oswaldo Ribeiro


Esse rapaz, eu conheci, não era de Jaçanã, era de Araruna e tinha familiares em Cuité, onde passava muito tempo, muito próximo daquela cidade. O nome dele era Antônio e o apelido "frei sabugo", que andava muito acompanhando Frei Damião em suas andanças pela região. Andava sempre de batina de capuchinho e ameaçava os meninos que se aproximavam com o cordão de São Francisco. Ele realmente tinha(não sei se ainda é vivo) "aquele defeitinho". Eu , carrego apenas o apelido, que não me incomoda, ao contrário, até uso, como aqui; gosto de mulher, não tenho preconceitos e todo prazer me diverte.
FC
Frei Carmelo

Em tempo: Jaçanã foi onde morreram os militantes do PCdoB, Glênio Sá e Alírio Guerra, em um acidente de autómovel, numa campanha política.


Bastidores do Beco

No becodalama@yahoogroups.com pintou essa troca de mensagens agora a tarde, depois que o Frei Carmelo pediu inscrição na lista.

Prezados Bequianos,

Nasci numa cidade muito simpática e acolhedora, do interior do Rio Grande do Norte. Quando ainda era criança, com pouco mais de quatro anos, fui acometido de um enfermidade muito séria que todos achavam que não sobreviveria. Minha mãe, muito religiosa, fez uma promessa aos céus, que se eu conseguisse sobreviver, passaria um ano usando uma túnica de capuchinhos, o que me valeu o apelido de Frei Carmelo. Como podem ver, sobrevivi, estudei, sou bacharel em letras pela UVA, professor de história e contador de estórias. Por gostar muito de poesia, prosa e cultura de modo geral, interessei-me por este grupo, que segundo informações de amigos, é muito inteligente, bem humorado e esclarecedor.
Gosto de tomar cerveja, uma cachacinha de vez em quando, e de uma piada picante, e sei que aqui vou encontrar tudo isso e muito mais.

Grande abraço,é um prazer estar com vocês doravante.

FC.


Freiríssimo Carmelo,

Aonde você nasceu? É bem capaz de ter sido em Santa Cruz...

Comece a mandar suas estórias e histórias.

O departamento de cervejas é dirigido por Dunga, o moderador. O de cachaça, quando Rosélis viaja, é dirigido por Júlio Capão Pimenta. Já o departamento de piadas picantes fica sob a orientação de Mário Henrique Boga Spam, que no momento anda desaparecido, mas volta. As poesias ficam entregues a Antoniel Maia, digo, Campos e Crystina Tinôco. Os aboios e pé-quebrados é setor de Chagas Lourenço, o cavalgador das praias. O departamento de churrascos está entregue ao casal José e Meire. A seção de pecados é com Padre Agustin, que na Quaresma passa penitências quilométricas. O setor de pesquisas (qualquer coisa) é com Oswaldo (com w) Ribeiro. A Comissão de Ética é dirigida por Petit das Virgens e Casciano Vidal. Hugo Macêdo e Lenilton Lima são os fotógrafos oficiais. A Ouvidora do Beco é Clotilde Tavares. Simmmm! Tem um bocado de gente que somente olha, olha, olha...

Outra coisa: o moderador vive implicando com aquela palavra que termina em U. Portanto, todo UIDADO é pouco.

CLOe, o anfitrião

Nasci em Sitio Novo, meu caro Cloe, bem próximo de Santa Cruz e o meu apelido se deve ao Monte Carmelo daquela cidade, onde estudei o primário.

Abraço, FC.



Cloe, você é ótimo.

E como se auto denominou: o melhor anfitrião. Acho até que merecia outras denominações/incumbências mas tudo vem de vc tão espontaneamente, não é?

Espero ter o prazer de lhe conhecer.

A próposito, vc existe?

Que tal se nos apresentarmos em fotos ou marcarmos um grande encontro para conhecermos os novos e velhos membros que ainda não conhecemos?

Fica a sugestão.

E o aniversário de Simone?

Crys
Cristina Tinôco


Férias

Ana Cristina Cavalcanti Tinôco

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Pra que te quero, férias?

Para ter tempo para desprogramar o tempo. Para poder dormir até matar o sono e acordar sem saber que dia é, que horas são, em que ano estamos. Férias para não ter hora certa para nada, apenas e simplesmente para tudo que se queira fazer naquela hora. Para andar descalça o dia todo; não arrumar unhas nem sobrancelhas, e redescobrir o próprio cheiro. Para poder olhar a ardilosa lagartixa – e torcer por ela -, tentando pegar o desprevenido mosquito. Para ver a mulher do pescador devolver ao mar o bagre agressivo. Para ver a miúda delicadeza da flor do coentro; a teimosa perseverança dos cupins; para arrumar gavetas e deixar os cabelos bem desarrumados.

Férias para fugir da cidade; desvestir a farda; usar roupas bem velhinhas, folgadas e macias; pendurar as máscaras; soltar as amarras e desejar bom dia até a quem não se conhece. Férias para ouvir música. Muitas músicas: a música do vento trazendo de terras longínquas, notícias de um amor que ainda vai nascer. A música da brisa marinha dedilhando no farfalhar do coqueiral cantigas de paz e solidão. A música das ondas querendo ninar e pacientar ouvidos que pedem palavras de amor. A música das árvores lembrando que verde é vida; que elas dependem de nós bem menos que dependemos delas.

Férias para sentir prazer em preparar um cozido suculento e depois desmaiar numa rede na varanda; um bolo de laranja fofinho e comê-lo com um café bem forte. Para cozinhar peixe no coco com pimenta de cheiro e pirão mole. Para comer mangas dulcíssimas e cajus tenros. Para caminhar quilômetros e quilômetros amando a própria companhia e pedindo perdão a Deus pelo pecado da gula. Férias para avaliar amores e amizades. Para certificar-se que tudo foi válido e que são os erros que mais ensinam. Para agradecer e não lamentar o que passou; quem se foi. Para esperar quem virá mesmo sem saber quem é. Para se aquietar e ouvir a voz da terra, ou das nuvens, anunciando a abençoada chuva.

Mas, afinal, férias pra que te quero? Para perceber que assim como os homens, os bichos também têm suas amizades sinceras ou interesseiras; que é difícil, muito difícil, entender as pessoas e que por isso algumas delas preferem os animais chegando mesmo a parecerem com eles. Férias para ver castelos em nuvens e esperar amantes príncipes gentis e apaixonados nos levando em caravelas por mares nunca dantes navegados. Para sonhar loucas danças ao luar. Para ser borboleta amarela em canteiro de violetas. Para sentir o cheiro do tomateiro molhado pelo orvalho da madrugada, das mangabas maduras, caídas do pé, que se desmancham na boca, e o cheiro da maresia. Sinta o cheiro da maresia na hora do sol nascente. Parece até que estamos fazendo uma grande limpeza no pulmão.

Férias, te quero sem precisar de passaporte, bilhetes aéreos ou hotéis com algumas estrelas. Sem precisar de malas e bagagens, roupas especiais ou qualquer maquiagem. Férias para abrir os poros e deixar entrar a natureza. Para ver no mar o espelho de Deus. Para trocar a luz do escritório pela do sol, da lua, das estrelas. Para olhar pássaros e peixes ao invés de monitores e teclados. Para voltar a ser mulher das cavernas e sentir a energia que os astros exercem sobre nossos rudimentares instintos. Para se deliciar e dar gargalhadas com A agulha do desejo, da amiga Clotilde Tavares. Para chorar, sofrer e se identificar com os tristes amores de Flor Bela Espanca. Para carregar a bateria pois logo logo tudo passa e um longo período de muito trabalho nos aguarda. Mas, enquanto não chega, que chegue o lazer, o prazer e o doce nada fazer.


O mistério do despertar

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Independente de como passo a noite, acordo bem e disposta e não raro com uma canção em mente, para ser regurgitada durante minha ducha quente de cada dia. "Fanatismo", musicado por Fagner; "Rosa" de Pixinguinha; "Procissão", de Gil; "Alma" de Pepeu Gomes na voz de Zélia Duncan; "Imagine" ou "Woman" de John Lennon e tantas outras figuram no palco iluminado do meu banheiro. Quando acordo mais zen e com preguiça de ser intérprete, ouço música egípcia, indiana ou tibetana, até porque cantarolar tais músicas toda ensabonetada sob a fumaça do box no banheiro e com a pressa habitual do dia-a-dia, soaria no mínimo bizarro.
Mas nos últimos dias algo estranho vem acontecendo. Algo que vem me fazendo acreditar em mensagens subliminares ou no poder que a mente tem de aprender enquanto dormimos. Talvez o sono seja uma espécie de embriaguez, e embora todo bêbado que se preza não lembra de nada no outro dia, no fundo, no fundo, ele fica com uma vaga lembrança do que aconteceu e se remexer um pouco os etílicos neurônios, consegue lembrar de alguma coisa. Sendo o sono assim, um mero estado de embriaguez, por quê não nos lembramos de algum acontecimento posto aos nossos ouvidos enquanto dormimos? Dia desses acordei sendo perseguida mentalmente por "Te amo tanto, tanto, tanto, tanto, que não posso maaaaaaaiss, te amo tanto, tanto, tanto, tanto que perdi a paaaaaaz, quero ter você comigo para amaaaaar e todo meu amor, meu bem eu vou te dar...". Preferi tomar a coisa como um acontecimento banal, esporádico, e não me torturei por isso.

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No outro dia, acreditem, não só cantei de olhos esbugalhados toda aquela estrofe, como complementei "Acredite amor, quero você pra mim, quero você comiiiiigo até o fiiiiiiiim!" Fiquei pasma. De onde pode ter vindo essa anti-pérola da MPB, tão viva e forte, com todos seus açucarados acordes, saídos involuntariamente de minha própria boca, afogando inclemente meus próprios tímpanos ? Olhei estupefacta (ou estupefata?) para meus CDs de Zé Geraldo, Babal, Zé Ramalho, Fagner, Caetano, Djavan, Cazuza, e pedi-lhes fervorosamente perdão por não conseguir tirar aquilo, aquela coisa, aquela música, da minha cabeça. Não teve jeito, passei o dia cantarolando silente, e o pior é que eu já estava quase gostando.
Consegui libertar-me da maldição da música com um CD do Lô Borges, que passou a manhã toda rodando no micro. Procurei levar uma vida normal. Matei um leão depois de mais um dia de trabalho, e dormi. Acordei pelo meio da madrugada, e um som rouco e distorcido era carregado junto ao vento que sibilava na minha janela. Sim, eu moro estrategicamente na direção do som de um Boteco

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e só descobri isso nessa madrugada. O Boteco, é ele !!! O Boteco está enviando mensagens subliminares para meu cérebro, através do vento da madrugada, não sei com que ardiloso propósito. Sonolenta e satisfeita com a descoberta do mistério dos últimos despertares e certa de que, conhecendo o plano nefasto do Boteco eu estaria imune à invasão das ondas sonoras em meu cérebro, adormeci.
Resignada, acordei hoje cantarolando em ritmo de forró, "cartas já não adiantam mais, quero ouvir a tua voooooooz! Vou telefonar dizendo que eu estou quase morrendo, de saudade de vocêeeeeeeeee!". Vi que seria em vão lutar contra a realidade. O Boteco triunfou.

Meire G.


Chegando em Campina Grande

Marcus Otrtoni
Dunga chegando em Campina Grande para realizar exposição da Galeria do Povo, em novembro de 1977. Na foto, Beth Partel e Clotilde Tavares (cabelos pretos).


O boi de Navarro

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Galeria Metropolitana


Eduardo Alexandre*

Chamado pelo escritor François Silvestre para ouvir sugestões a sua administração, o jornalista Luciano de Almeida recomendou ao presidente da Fundação José Augusto que fosse refeito o painel de Newton Navarro que embelezava a Galeria Metropolitana, na Praça André de Albuquerque, construída pelo ex-prefeito Djalma Maranhão e demolida na administração do ex-prefeito Vauban Farias.

A obra de Navarro, um boi, encantou a quantos tiveram oportunidade de vê-la. A Galeria Metropolitana, tombada, ida ao chão, mesmo, pela força das marretas, levou consigo o painel público daquele que é considerado o mais poeta dos artistas plásticos natalenses. Poeta, escritor, cronista, pintor, desenhista, orador de rara sensibilidade, boêmio, Navarro representou para Natal o que de mais romântico pode existir como símbolo de dedicação a vida entregue e dedicada a arte.

Navarro foi e soube ser um grande artista. O maior de sua geração, pois se somou a qualidade de todos os grandes do seu tempo, soube cultivar o contato amiúde com o povo que, como Cascudo, aprendeu a amar.

Navarro, com Djalma Maranhão, Mailde Pinto, Moacyr de Góes e muitos outros, soube apreender o que de mais bonito existiu no étnico de sua gente: a preservação espontânea de suas cultura e tradições.

Nesse 2004, mais precisamente no dia 2 de abril, fará 40 anos da deposição de Djalma da Prefeitura do Natal. Deposto, preso e levado ao exílio no Uruguai, tudo o que Djalma havia construído tornou-se vítima da ira e da covardia bajulatória dos governantes apoiadores do golpe de estado de 1964.

Uma das vítimas do absurdo advindo foi a demolição da Galeria Metropolitana, onde estava o mural de Navarro.

Reedificar ali na Praça André de Albuquerque a Galeria Metropolitana parece carta fora do baralho. Mas devolver-se à cidade o boi de Navarro ali pintado, isso pode ser feito em outro local. Um local, na visão de Luciano de Almeida, de destaque na cidade do Natal, talvez no paredão da balaustrada (era assim chamada) da avenida Getúlio Vargas, mirante natural do Forte dos Reis Magos e todo o litoral norte, perdendo-se além de Jenipabu (com o j das palavras nativas).

Que a sugestão de Luciano seja escutada por François Silvestre e que o boi de Navarro volte a encantar as íris de quem tenha a felicidade de contemplá-lo.

* jornalista


Precisando de um banho, Barbinha?

Desejos
Barba
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Bar de Nazaré


Não lavei as mãos

Para não apagar

As impressões do teu corpo

Enquanto eu te acariciava.


Não lavei a boca

Para não esquecer

O sabor da tua boca

Enquanto eu te beijava.


Não lavei o rosto

Para não perder

O gosto do teu sexo

Enquanto eu te amava.


Não lavei o corpo

Para não esfriar

O calor do teu corpo

Enquanto fazíamos amor.


Eu só queria

Sentir novamente

Pensando em você,

E depois, contigo dormir.


Ciclo e sangue

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CICLO E SANGUE
DESTINO iça velas
Desatracada ÂNCORA
Correntezas, correntes de ar, atlântico
Corta entre-mares / afluentes
nem o Danúbio nem o Potengi são azuis
as Veias = os Rios
Rios Grandes
espaçosos na memória
guardo a imagem de crepúsculo sobre o Potengi
... as valsas de Tonheca Dantas
céu de âmbar flamejante
cinza verde lodo Donau / Danúbio
Dúbio prazer em re VER ora Outonal
...céu d’azul luzente
valsas vienenses
Próximo porto, taça de “sekt”, beijo espumante
Sina, emoções fluentes, cheias de sangue veias, ventos nas andejas costas...
estratégias de xadres, pulsação d’amor...
respiração, inspiração, transpiração
e a discreta Primaveva do lado hemisférico de cá

Civone Medeiros-Tönig


Cada verso que escrevo é sem razão

Image Hosted by ImageShack.usNalva Melo



Se a esquiva é o desvão do fingimento,
o silêncio sugere o sim e o não.
Se a lembrança prepara o esquecimento,
cada verso que escrevo é sem razão.
Muito mal representa este momento;
o passado e o futuro, pouco então.
A distância do verbo ao pensamento
é-me acima a do claro à escuridão.
Já não sei o porquê do movimento
que se dá entre a pauta e a minha mão.
Se há gozo, confundo com o tormento
—duas faces da mesma sensação—.
Um poema não diz meu sentimento,
cada verso que escrevo é sem razão.

Antoniel Campos


Reflexões sobre uma onda

Eduardo Alexandre

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Depois da tsunami de dor
Quilômetros a dentro lavando terras
Ceifando vidas, destruindo tudo
O que fica como pergunta?
O que resta como resposta?
Uma Hiroshima sem radiação?
Uma Nagazaki de corpos
Num filete litorâneo?
Quanta dor vinda do mar!
Quanto amor tragado em fúria!
Reconstruir? Recomeçar?
Quantos megatons de força
Necessários serão a esses povos,
A essa gente
Até que vida nova possam ter?
Aos que se foram
Levados pelas águas da morte
Nossos silêncio e pranto
Aos que agarrados ficaram
Uma celebração à vida
E a certeza de que frágeis
Todos nós somos.

Natal, 31 de dezembro de 2004


Dia da Poesia 2002

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No Beco da Cultura

Na foto, Barbinha, o filósofo do Beco, concentra-se na leitura das novidades do dia.


O homem do fio

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Foto: Hugo Macêdo


Nos idos dos anos 60, o profissional era conhecido como “o homem do fio” ou “guarda-fios”. Na realidade era o funcionário dos Correios que percorria a imensidão dos sertões e caatingas nordestinas, entre uma cidade e outra, tendo muitas das vezes como única sombra a réstia do fio do telégrafo, que acompanhava para fazer os reparos necessários ao bom funcionamento do (às vezes único) sistema de comunicações.

Seu Cornélio era um desses “homens do fio” que percorria o interior do Rio Grande do Norte, fazendo a manutenção dos fios do telégrafo onde necessário fosse. Amigo íntimo das aguardentes, não passava por um boteco que não tomasse “umazinha” pra combater o sol escaldante. Com seu espírito brincalhão e divertido, onde chegava, fosse vilarejo, povoado ou cidade era sempre bem recebido e festejado. Com seus conhecimentos de eletricidade e eletrônica, aprendidos por esforço próprio através dos cursos por correspondência do Instituto Universal Brasileiro, sempre estava pronto a socorrer quem dos seus préstimos necessitava, sem cobrar nada pelos serviços, fosse o telefone do Prefeito ou o rádio valvulado da viúva da esquina.

Mas como diz o velho deitado: “araruta tem seu dia de mingau”.

Numa dessas viagens de rotina Seu Cornélio, chegou no finalzinho da tarde à cidade de Sítio Novo e hospedou-se na pensão de dona Eufrásia. Depois de guardar os apetrechos de trabalho, pediu para tomar um banho pois o calor naquele dia estava de fritar os miolos. Dona Eufrásia indicou onde ficava o banheiro. Ao chegar no local indicado, fora da casa, Seu Cornélio estranhou ao ver que a única fonte de água disponível era uma lata de biscoitos “cremi-craquer”. Voltou, e foi falar com a dona da pensão:

-Dona Eufrásia, a água pra tomar banho é aquela da lata?

-É, sim Senhor! Respondeu ela. Tá faltando mais alguma coisa?

-Um pincel! Respondeu Seu Cornélio sem perder a esportiva.

-Pincel? Estranhou Dona Eufrásia.

-É. Pincel. Porque com aquela “quantidade toda” de água, pra tomar banho só se for com um pincel. Profetizou Seu Cornélio.

Foi a última vez que se hospedou na tal pensão.


Tadeu Neri


AUTO RETRATO

Eu amo o Vento e as Palavras que ele leva.
Gosto de chuva, de bolero, de poesia.
Eu me revelo em tudo quanto me enleva.
Amo o silêncio madrugado de estesia.
Às vezes penso ter uns quatrocentos anos.
Às vezes penso que não passo de um menino.
Quem mais me ensina são meus próprios desenganos.
Do que eu sei, nada mais sei quando defino.
Vivo num tempo que pra mim chegou bem antes.
Nada me acalma, muito menos me apavora.
Amo o passado, tempos idos, bem distantes.
Desde o futuro meu presente me devora.
Minha certeza é além de um berço ou cemitério.
Bem poucas coisas nessa vida eu levo a sério.

Antoniel Campos




quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Cores do Beco


Resenha do Cloe



Gennnnnnte!

Márcia não ama Dani, que não ama Lula, que não é amada por Yasmine, mas é amada por Casciano, que não sabe nem quem ela é...

Dani Danadinha está em nove de dez mensagens que chegam no Beco. Ela trabalha?

Osvaldo (aquele da motocicleta) passou o carnaval todinho na Internet pesquisando. O quê? Tudo!

Petit das Virgens, fantasiado de tolete, encontrou Simone Meia-inteira no carnaval de Olinda e confundindo-a com Dani Danadinha (lembram?). Deu a maior bronca por causa da quantidade de ursinhos voadores. Silêndia não entendeu nada, mas ficou bege.

Camilo Lemos, de chapéu de cangaceiro, não quis nem saber de voltar para casa e continua em Recife brincando o carnaval. Pense num bicho disposto! Ele anda tão magro que Urbano, o empalador, disse que dentro de poucos dias somente irá sobrar a espingarda e as balas. Tô cinza!

Júlio Imperador Capão foi filmado no sábado de carnaval pela TV Tropical dançando de rosto colada com a minha ex-colega Gardênia Lúcia. Um horror!


Alex Gurgel - que anda meio desaparecido -, quando soube que o presidente Dunga havia sido demitido do emprego, comentou com Hugo Macêdo: o adversário está ficando enfraquecido: está na hora de botarmos a campanha na rua para tomar o Beco. Tô amarelo!

Chagas Lourenço, aquele do charutão, agora somente se refere às pessoas pelas iniciais do nome. Parece até executivo americano. Quem diria que o menino de Santa Cruz ia ficar internacional...

No sábado, durante a passagem do Bloco `Empeno Mas Não Caio´, devido à multidão de gente, um belo pedaço de carne de sol que estava sendo servido na mesa da diretoria da SAMBA caiu no chão de Nazi. Rapidamente Eugênio Cândido ½ apanhou o bicho e cuidadosamente raspou o pedaço que ficou em contato com a rua. Quando Antoniel Cristhine reclamou, ele disse: fique na sua que eu sou da Vigilância Sanitária. Léo ainda acrescentou: e tem micróbio que resista a uma queda dessas? Vige!

A foto que colocaram de Sodré dando um pum na cara de Isaura, a escrava da casa de Dani Danadinha (todo mundo se lembra de Dani, né?) foi muito escrota. Quem não peida nesse mundo? To bege.


Dani Danadinha (aquela que vez por outra manda umas mensagens para o Beco, lembram?) tomou todas na festa “Baile de Máscaras”, na Confeitaria Ateneu. Não tardou, sapecou um beijo na bochecha do jornalista Cefas Carvalho. Jeane estava do lado e fechou a cara. `O Céu escureceu de medo...´

Márcia continua elogiando Antoniel
Antoniel continua elogiando Márcia.

Lêndea Urbana continua desaparecida (o). Dizem que foi vista no carnaval do Recife antigo junto com um gordinho dos braços curtos. Tô roxo!

Na sexta-feira, no Beco, o Imperador Capão cantava `Voltei Recife´ em ritmo de fado. Pois, pois companheiro!

Na segunda-feira de carnaval, Léo Sodré passou a tarde conversando em alemão com Helmut Cândido. Garanto que nenhum dos dois entendeu nada!

Ricardo, do Lorota’s, telefonou para Osvaldo perguntando se Karl Leite (KVA) ia hoje, que era para aumentar o estoque de limões. Tô verde!

Quanto a mim, periferia, fui brincar o carnaval no Rio, precisamente na Beija Flor, a campeã. Tenho culpa? Nenhuma! Venço todas!


CLOe, cansado de sambar e doido para fofocar.


Comer no Beco

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Beco da Quarentena, Ribeira


Quero comer teu riso
Não tema!
É instinto!
Insisto!
Se antena!
Na madruga...
Quero te comer no Beco da Lama ou no da Quarentena

© Civone


Pastores da noite



Cláudio Emerenciano

A alma da cidade. Entidade que agrega gerações de todas as épocas e instantes da História. Une-as, especialmente, pelo amor à terra comum. Esse sentimento, profundo e indestrutível, investe-se de um conteúdo que também incorpora o meio ambiente, sonhos, esperanças, amarguras, lutas, desafios e sofrimentos de cada um. Ideais perseguidos e utopias acalentadas. É uma simbiose, mistura que nunca se completa, nunca se exaure, porque revela a existência da cidade no curso do tempo.

André Gide dizia que as vilas, os povoados e as cidades têm a idade dos sentimentos e dos sonhos que os inspiram. Outra não foi a percepção de Saint-Exupéry, contemplando das alturas, em seu minúsculo e frágil avião monomotor, em plena noite, os pontos de luz que demarcavam aglomerados humanos nos pampas argentinos: "A terra enchia-se de apelos luminosos, cada lar ateando a sua estrela perante a noite imensa, tal como a luz de um farol voltado para o mar".

Século passado. Natal nas décadas de 20 e 30. Paraíso sonhado e ansiosamente desvendado pelos primeiros heróis da travessia aérea do Atlântico. Cidade bucólica e provinciana. O mar e o rio eram contornados por uma cidade exuberantemente verdejante. Era um pomar. Não fora em vão que o grande Juvenal Lamartine dera os nomes de Petrópolis e Tirol aos novos bairros, cercados por morros e envolvidos por um microclima ameno. Da terra exalava um hálito frio, que se estendia do entardecer até o começo da tarde do dia seguinte. Como tantas vezes disse o mestre Cascudo, o natalense cultivava seus valores e sua percepção do mundo e da vida no peso de suas relações humanas. O estranho era um irmão novo. Mais um a compartilhar da vida da cidade. Alguém mais ousado, temerário, diria que, na simplicidade das pessoas, na riqueza de sua cultura popular, na dignidade da alma coletiva, havia uma espécie de "civilização local". Era um caldo cultural, que inspirou Cascudo ao conceber sua Universidade do Povo.

Há duas vertentes de interpretação quanto à influência da Guerra em Natal. Uns dizem que a cidade mudou. Metamorfoseou-se. A Guerra, com a presença dos aliados, especialmente americanos, como um Midas, que ao tocar tudo transformava em ouro, alterara-lhe sua alma, suas tendências, seu pensar, convertendo-a numa cidade de espírito cosmopolita, aberta e receptiva ao mundo. Outros dirão que o cosmopolitismo natalense já existia. Mermoz o testemunhara.. Ele e tantos outros pilotos da epopéia atlântica.

Natal das décadas de 50, 60 e 70. A cidade daquelas gerações que possuíam a mente, os olhos e os sonhos direcionados para o mundo da "aldeia global". Natal do "grande ponto". Centro sentimental, telúrico e convergente de todas as tendências, todas as opiniões, todos os interesses, todas as lutas, todas as ousadias e todas as conspirações.

Os pastores da noite. Eram aqueles tantos, cujos nomes, entre ilustres e anônimos, corajosos e tímidos, eruditos e populares, partilhavam horas da noite e da madrugada. Eram vigias sentimentais da cidade. Citar um nome seria injusto. Porque cada um, qualquer que fosse sua participação nesse fórum, no melhor conceito da democracia grega, ateniense, expressava idéias, sentimentos e aspirações da cidade. Ou, pelo menos, de parte dela.

Será que a cidade mudou? O "grande ponto" decaiu como todos os centros de grandes cidades. E o espírito da cidade? Sua alma cosmopolita. Seus valores atávicos. Sua cultura popular. Sua religiosidade. Suas emoções. Também seu provincianismo, revelador de uma cândida e singular ingenuidade. Será que tudo isso tende a desaparecer? Vítima, entre tantas causas, da violência urbana e de uma "globalização" que a televisão dissemina, difunde e contamina. Não creio nessa "morte" programada. Porque em cada coração, em cada consciência de natalense, sobrevivem sentimentos, compromissos e sonhos eternos. A cidade sempre estará viva, no esplendor e amplitude de sua vocação, pelo pensar e sonhar das gerações passadas, presentes e futuras.


Paparazzi

Foto: Léo Sodré
Lenilton Paparazzi Lima
o fotógrafo do Beco


E nem assim saberei

Dani
Eduardo Alexandre

ESSA HISTÓRIA
IMPREVISÍVEL
SURPREENDENTE
QUE LEVA BÁRBAROS
VÂNDALOS DO NORTE
À DESTRUIÇÃO
DO IMPÉRIO ROMANO

ESSA VONTADE
DE ONDE VEM?

QUE FORÇAS LEVARAM
VIETCONGUES
A DERROTAR
TODAS AS ARMAS
DO TIO SAM?

ESSES POVOS ANTIGOS
ESSES SÉRVIOS
CROATAS
ESSES BASCOS QUE LUTAM POR CHÃO
QUE DESTINO CUMPRIRÃO?

ESSA PORÇÃO SOVIÉTICA
ESSE POVO DA GEÓRGIA
ESSES RUSSOS-BRANCOS
COMO COEXISTIRÃO
CAZAQUISTANESES
COM UCRANIANOS?

ESSES MOMENTOS
ESSES AMORES
TORMENTOS EM ALTO-MAR,
MOVEM MAOMÉ À MONTANHA
DESLOCAM THATCHER
A RETOMAR AS MALVINAS
CARREGAM CASTRO
À SIERRA MAESTRA!

ESSES MISTÉRIOS TERRÁQUEOS
ESSAS CONTRADIÇÕES
TRANSCENDEM
FAZEM VOAR
UM DISCO VOADOR
DO LAGO NESS
AOS JAZIGOS ETERNOS
DOS FARAÓS...

E NEM ASSIM SABEREI
DE UMA SEREIA
NUM DOCE SUSSURRO
DOS ABISMOS PROFUNDOS
DOS SEGREDOS DO MAR!


Nirvana


Meire Gomes
19/10/2003

Olhos lavados
Buscam a sanidade perdida
Na tua boca
Profana e sacrossanta boca
Boca que incita
Os mais sacrílegos instintos

Perco-me
No verbo da tua língua
Na filosofia do teu corpo
Na falta de rima
No poema, no furor
Na dança de pés descalços
No passado
Na tua boca ...
Tua maldita e abençoada boca

Corpo esguio, minha flor de mármore
Tortura-me a tua falta
Saudade que enforca
Minha alma
Peso que arde ...
Fecho os olhos
Sinto-te aqui
Tuas mãos suaves, teias de aranha
Devolvem-me um fio de vida
E tua boca, tua bendita boca!
Suga o resto de mim
Para dentro de ti ...

Vício santificado
Bizarro despreendimento corpóreo
Levitação cheia de graça
Nirvana a dois
Fundida a ti
Somos um


Simulacro da Polética

Léo Sodré

Plínio Sanderson
25/11/2003

Observando os telejornais da terrinha, percebe-se o lugar-comum que habita o conceito da "Política". Os entrevistados são invariavelmente políticos, se revezando nos canais, repetindo sofismáveis discursos, ludibriando a inteligência dos midiotas. Os jornalistas, interlocutores do quarto poder, não-antenados, contribuem para a perpetuar o equívoco uníssono de que a Política é a primazia pelo controle do aparato estatal. Hegel, afirmava que o Estado é a síntese dos interesses contraditórios entre suas classes. Na vórtice da Política é inerente o conflito entre o Estado, detentor soberano de monopólios (inclusive da violência), o Leviatã de Hobbes, versus a sociedade civil, organizada no cerne "das políticas": da mulher, ecológica, dos sem terras, educacional, sindical... Nos remeteremos ao âmago da política cultural: Polética!

A cultura não é acessório supérfluo. É o amálgama que sedimenta toda nação. Alicerce na construção de qualquer sociedade humana. A cultura converge para as dimensões: a Política, uma vez que almeja público, é pois, uma questão pública, inerente à coletividade. Sua prática torna-se instrumento eficaz de legitimação do Estado. Atualmente, não se coloniza apenas com exércitos, mas com a onipresença da indústria cultural, vide o "American Way of Life"; a Social, fundamentada na edificação da cidadania, eclodindo uma arena pragmática de lutas cotidianas; a Econômica, a cultura como fonte produtora de renda, geradora de empregos; indústria e mercado agregando valor nas interfaces produtivas entre a cultura e: o turismo, a educação, a arte, a tecnologia, o entretenimento.

Desde de 82, quando o turismo ainda era incipiente, defendíamos como zênite na efetivação de uma política cu ltural, o binômio: "importar turista e exportar cultura". Não ficar reféns das belezas naturais, até porque, o tempo profundo (geológico) consagrou eternidades para esculpi-las e a insensatez do capital é imediatista, impiedosa, sem escrúpulo (nem memória), perversa e avessa à sustentabilidade do lugar. Gritávamos à plenos pulmões a necessidade de catalogar, resgatar, revitalizar as manifestações populares; e, essencialmente, fomentar uma prática cultural estruturante de identidade, enraizada no imaginário, possibilitando aos protagonistas lucrar com seu produssumo - sem culpa, nem pires na mão!

A contemporaneidade traz consigo o dilema do papel estatal e seu imbricamento com a Arte. Do Mecenato clássico, inspirador dos dogmas católicos, onde havia a cumplicidade assistencialista e ideológica; passando no início do século XIX para o Patrocínio, consolidado em meados do XX com o Marketing Cultural, que juntou interesses corporativos e mercadológicos. Recentemente, o Estado ofe rece benefícios fiscais instituindo o "investimento incentivado" - através das leis de incentivos. A lógica do mercado substitui a política pública. A questão é: como se dá a transferência dos recursos públicos? O Estado deve ser isentado de quais obrigações? Como fica a produção artística não convencional, experimental ou não-comercial?

O que podemos inferir é que em nosso estado as leis carecem de revisão! O mais preocupante é que o Estado deixou o mecenato e de ser patrocinador, mas continua participando da cena. Pior, está interferindo na captação de recursos. Exemplo: ano passado, o governador deveria se desincompatibilizar do cargo em maio e promoveu uma espécie de "Feira dos Municípios" antecipada, imaginem de onde vieram os recursos? Até a reforma do palco do teatro Alberto Maranhão foi paga com recursos da Lei Cascudo. Artistas e produtores reclamam, pois, quando aprovam os projetos, não conseguem captar. Eis uma luta injusta, desigual e capciosa. Quem o diretor da Cosern, Telemar vai receber: um desses escritórios especializados (tais empresas de alhures se proliferam na cidade, exigindo dos nativos a profissionalização) ou o poeta Jackson Garrido do morro de Mãe Luiza? Um representante sob a chancela de uma instituição oficial do governo ou o excrachado Paulo Augusto da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins?

Chega de engrossar o coro dos descontentes! Lagrimejar no muro das lamúrias! De que adianta reclamar do cenário cronicamente inviável da falta de apoio e/ou verbas? Urge sugerir, buscar saídas, formular parcerias. Emblemática a busca de transparência das instituições que procuram legitimar-se junto à sociedade, abrindo literalmente suas portas para a comunidade em eventos culturais - o Tribunal de Contas, a Assembléia Legislativa, a Câmara Municipal do Natal, a UNP, a exemplo do "Domingo na Praça" da TV Cabugi/UFRN. O que importa é metamorfosear, consumar as instituições existentes em espaços de ambiência cultural.

Sob o sisteima capitalista, o argumento de que o imperialismo é seu último estágio, feneceu. A globarbarização incide como estágio letal do famigerado. Avassalador, na labuta da mídia e dos interesses escusos, reelabora tradições, festas populares e até paisagens, e as transforma em objetos reificados. No lugar de artes expressivas, arremedos reprodutivos e repetitivos; ao invés de arte-criação, eventos efêmeros. Antes de experimentação, a consagração na fútil moda. Na civilidade da televisão, valores transgênicos pulverizados numa pós-modernidade centrada no consumo e lazer.

No dizer de Mário Faustino "o Artista deve antes de tudo sentir na pele a necessidade de experimentar". Vislumbrar as matizes da vanguarda de Djalma Maranhão, que focou sua administração na educação e cultura - criação de bibliotecas populares, de praças de cultura, do teatrinho do povo, da Galeria de Arte, formação de círculos de leitura, realização de encontros culturais, reativação de grupos folclór icos, exposições de arte. Conclamando a massa para lutar contra a miséria, contra o analfabetismo, contra a espoliação, uma organização da cidade onde o povo participava não apenas como mero espectador (ou recruta no exército de reserva da força-de-trabalho). Inverter o fluxo de dependência cultural, oferecendo a experiência da inclusão e o sentimento de pertencimento. Dos Pampas, adverte o Nei Lisboa: "Quando a corja fala de cultura, Gualber quer quebrar a tampa do caixão". Será que todo povo tem o novo que merece?



Bequiana nº 1

Leonardo Sodré

Cai a noite
e criva o dia
de cansaço e desordem

E a cidade se desarma
do vai-e-vem
da labuta

Noite calma
Almas tortas
se recolhem em segredo

Uns por medo
ou orgia
todos para o outro dia

Artlima
dezembro 2003


Cartaz do Carnabeco

Afonso Martins
Folia no Beco da Lama

Tentando resgatar as antigas tradições carnavalescas, o II Carnabeco foi uma alternativa viável e bem-humorada para quem não curte o formalismo oficial do Carnatal e o som dos trios elétricos puxados por bandas baianas.

O II Carnabeco foi realizado no Beco da Lama e nas ruas adjacentes. O evento é promovido pela Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (SAMBA), com o apoio da Fundação José Augusto e Offset Gráfica. Segundo o diretor executivo do Samba, Eduardo Alexandre, a festa foi criada para dar aos foliões natalenses um carnaval tradicional, puxado por uma banda de frevo, a Leões Potiguares, comandada pelo maestro Duarte.

O Carnabeco teve início com a concentração no Abech Pub, cujo proprietário, Pedro Abech, compôs “Não Empurre Não”, hino oficial do Carnabeco. O percurso da banda, animando os foliões começaram na Gonçalves Lêdo percorrendo vários bares no Beco da Lama e nas adjacências.

A maior concentração dos foliões foi no Bar da Nazaré e no Bar do Nazir, redutos etílicos tradicionais da boêmia natalense. Jornalistas, advogados, publicitários, fotógrafos, arquitetos, professores, intelectuais, artistas e profissionais liberais, reconhecidos pelos seus talentos em Natal, fizeram a mística da folia do Beco da Lama.

De acordo com o vice-prefeito de Parelhas, Radir Macêdo, que participava da festa, o Carnabeco tem todos os ingredientes para ser um grande sucesso. “É um resgate as nossas tradições carnavalescas de rua. Uma maravilha!”, disse o vice-prefeito, prometendo ser um folião assíduo.

Eduardo Alexandre avalia o II Carnabeco como uma opção para aquelas pessoas que não querem participar do modelo baiano de carnaval com seus abadas e camarotes. O diretor da Samba afirmou que foram gastos somente R$ 400,00 para pagar a banda. "Se investe milhões e a maioria do dinheiro não fica aqui no Estado. Queremos mostrar que é possível fazer uma boa festa, com pouquíssimo dinheiro e com qualidade. Principalmente dando espaço para os artistas potiguares", disse Eduardo.

Alexandro Gurgel
Jornalista - MTB 1032 (DRT RN)
RNatal - Brasil
alexgurgel@matrix.com.br


Vem até quem já morreu

João Arthur



Finado meu

finado teu

vivos mortos imortais

ecos & ícones de fama

das adjacências e do

Beco da Lama

Civone


Flores brancas sobre o corpo...

Por
José Correia Torres Neto – Engenheiro Mecânico



Antes de tudo um forte. Sob um sol inclemente, puxando uma tropa de burros, cruzando o chão rachado, arrastando um passado sofrido em busca de um futuro incerto.

Esse homem nordestino de pele clara, de olhar cansado de tanto mirar esse céu azul sem nuvens, guarda nas lembranças as aventuras dos Ferreiras e Conselheiros. Louva o padre maior desse sertão tão esquecido pelos homens e protelado pelos deuses.

O chapéu de palha é seu companheiro quando cruza as fronteiras da miséria. Os pés rachados se protegem com o couro escuro de suas alpercatas. As mãos calejadas pelos fardos do sofrimento unem-se, a cada fim de tarde, e imploram um pouco mais de vida.

Seus filhos, como sementes jogadas ao mundo, espalham-se em busca de uma sobrevivência. Marias e Josés levam no nome uma lembrança do sertão em vida; nos semblantes um pouco de esperança e tristeza além da conta.

O velho sertanejo continua a tanger a tropa de burros. Anos e anos em busca do que não se conhece. O rosto cansado peleja uma sombra boa no alpendre de sua casa. Matar a saudade da companheira, tão sofrida quanto ele, é tudo que deseja.

Não vê os filhos crescerem, nem os netos, nem os bisnetos, nem os filhos dos bisnetos. O corpo envelhece. O esquecer da vida é a pena a ser cumprida. Hoje já não mais existe a tropa de burros e nem mais a companheira. O seu chapéu descansa no armador de redes. Seu corpo enrugado ocupa o centro da estreita cama.

O paladar, a audição e seus olhos claros fazem parte de um passado. O tempo, mais uma vez, tornou-se vencedor. Seu corpo está frio. Suas mãos pararam de tremer. É o fim.

O sertão está muito mais triste, assim como eu. Seus filhos se reúnem e cada um chora a sua dor da forma que lhe convém. A cidade grande e sua crueldade de vida não os fizeram esquecer do amor. Uns lamentam. Outros rezam.

As sementes que foram jogadas ao mundo se reúnem pela última vez ao seu lado. Nada dizem, apenas choram. Seus olhos inundam a alma. A seca, pela primeira vez, não se faz presente.

Seu corpo agora é segredo de nossas terras. Virou semente de lembranças. E essa vida que levou os seus verdes roçados, que expôs a carcaça da velha tropa de burros ao sol ingrato e que encantou sua velha companheira agora o arrasta, sem nos pedir licença, para o desconhecido.


“Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre. (A.S)”

Pela memória desse meu avô sertanejo - Conhecedor dos segredos do sertão, do plantar, do colher, do criar e procriar...


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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Praieira
(Serenata do Pescador)


veja a letra aqui

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

layout by
mariza lourenço

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