Catedral do Assu
Chagas Lourenço
Li um causo do Poeta Renato Caldas no Natalpress e lembrei da seguinte história:
Um feirante que vendia batatas no Açu, num certo dia de feira, não estava conseguindo vender nada, quando viu Renato Caldas.
- Ô seu Renato, venha até aqui, por favor!
- Pois não, meu amigo. Em que posso ajudar, disse Renato.
- Não tô conseguindo vender minhas batatas e queria que o sinhô disesse um velso, que as suas eu dô de graça.
Era tudo que Renato queria:
Batata, batata doce
Batata que o povo gosta
Um quilo dessa batata
Dá vinte quilos de bosta.
Depois disso, o feirante deu dois quilos de batata a Renato e, em menos de uma hora, vendeu todo o estoque.
POESIA TAMBÉM É MARKETING....
Poesia do mato
Tribuna do Norte
06/10/02
Franklin Jorge - Colaboração
Renato Caldas e Franklin Jorge
Transcorre no dia 8 de outubro o centenário de nascimento de Renato Caldas, autor de uma verve espontânea, irreverente e fecunda, que por muitos anos surpreendeu e deliciou gerações. Nascido no Assu, onde está enterrado, Renato forma com Fabião das Queimadas e Moysés Sesyom a tríade dos nossos poetas populares mais representativos. Inspirado pela circunstância, sua cultura era toda empírica.
Eu teria oito ou dez anos quando o conheci, freqüentando a casa dos meus avós à rua Moisés Soares 89, um casarão comprido, velho de mais de cem anos. Educado e amável, Renato tinha a fama universal de boêmio e de notável improvisador. Por essa época, em conseqüência dos achaques que prenunciavam a velhice, vivia confinado ao Assu, após uma vida de aventuras pelo mundo afora.
Em 1987, como parte de uma série jornalística que urdi para colocar a terra de minha infância em evidência, o entrevistei longamente para o Caderno de Domingo, suplemento que então se publicava em "Tribuna do Norte", onde fiz minha estréia no jornalismo local. As duas matérias incentivaram inúmeros telefonemas, cartas e bilhetes dos fãs do poeta, cumprimentando-me pela iniciativa de trazê-lo outra vez à vida. Também lhe dediquei capítulos em "Assu, mitologia e vivências" e "Almanaque do Assu", livros que continuam inéditos.
Já bastante alquebrado pela doença e pela velhice, o poeta continuava freqüentando diariamente o Bar de João Nogueira (por essa época já falecido), onde, num reservado, ao pé de uma escada, consumia de cada vez, metade de uma cerveja servida por Cândida. Após uma vida de boêmio impenitente, pagava com juros e correção os esbanjamentos da mocidade despreocupada e sonhadora. Consolava-o, conforme me confessou, não sem uma certa emoção, o afeto e a dedicação de Dona Fausta, com quem se casou e foi feliz.
Nesse que seria o nosso último encontro, Renato contava 85 anos e, apesar da má saúde, conservava a memória e a lucidez. Ele me fez então algumas revelações surpreendentes, autorizando-me a usá-las de acordo com meus interesses de jornalista empenhado no resgate da cultura potiguar que se diluía sem que nenhuma instituição lhe aplicasse qualquer freio.
O poeta ainda se ressentia de um episódio que lhe ocorrera em 1940, embora não guardasse ódio de ninguém, sentia profundamente o desgosto de ter sido chamado de "vagabundo" pelo deputado Theodorico Bezerra ao recusar o exemplar autografado de "Fulô do mato", atualmente, na sétima edição. Disse-me também que, ao contrário do que se contava, jamais estivera pessoalmente com o governador Carlos Lacerda, não obstante ter escrito os versos que deram margem a esse equívoco.
Renato contou-me ainda que a sua noite de núpcias com Dona Fausta fora adiada em quinze dias, por causa de uma "despedida de solteiro" promovida por seus amigos, que o levaram de casa após a cerimônia na matriz de São João Batista, padroeiro do Assu. A noiva já havia se deitado quando ele voltou, altas horas, apenas para pegar o violão...
Amigo do poeta Jorge Fernandes, na época um dos sócios e depois o único proprietário do Café Majestic, de onde saiu para uma sinecura numa repartição pública, Renato tinha um vago parentesco com Luís da Câmara Cascudo, que certa vez, por motivo que ele não lembrava mais, o chamou de "filho da puta". Donana Cascudo, muito aflita, repreendeu imediatamente o filho mimadíssimo. "Não diga isto, Luís; Renato é filho de uma boa mãe e nosso parente"... Tudo isto ele me contava numa voz lenta e cheia de pausas que não prenunciavam nenhum bem.
Quando já me despedia, ele levou-me até o terraço da sua casa, na praça Pedro Velho, e voltou a tocar na questão da velhice, tema que o obsediava. Aí me fez anotar uns versos que improvisara havia pouco, no Mercado, em resposta aos conselhos que o poeta João Fonseca lhe dera a propósito de doenças e terapias. Ei-los: Prisão de ventre, quiabo.../ Cerveja preta ou Pitu.../-- Tomei até o diabo./Só falta tomar no c...
Quando prefeito do Assu, em 1993, Lourinaldo Soares quis fazer um memorial em honra do poeta, falecido não fazia muito tempo. Coube-me então a tarefa de organizar e classificar os papéis de Renato, que se resumiam a umas poucas cartas escritas durante seu noivado com Dona Fausta e uma ou outra fotografia. Não havia nenhum livro, nenhum manuscrito; nada, enfim, que justificasse a criação de um memorial. Da sua copiosa produção, dispersa ao longo dos anos, não restara nada.