Diário Íntimo da Palavra
TN 18.02.05
Nei Leandro de Castro - Escritor e poeta
Em 1986, conheci em Madri o poeta Pedro José Galván, casado com uma brasileira, publicitária, ex-colega minha, com quem Pedro aprendeu e aperfeiçoou o seu português. Desde então, trocamos correspondência. Antes da era da informática, antes dos e-mails rapidinhos como uma ejaculação precoce, escrevíamos cartas longas, derramadas, de quem não tem pressa nem receio de vírus. Uma das mais belas, tristes e longas cartas de Pedro foi quando ele se separou da brasileira minha amiga. Disse, entre outras coisas, que havia sido mutilado irremediavelmente, que a parte mais luminosa de sua alma havia sido arrancada, como um torturador franquista arrancava pedaços de suas vítimas. E concluiu dizendo: só viria ao Brasil outra vez quando encontrasse um amor à altura daquele que quase o leva ao suicídio. Dezenove anos depois, apaixonado por outra brasileira, Pedro anuncia por e-mail que está vindo ao Rio. De repente, eis que ele chega na companhia de Maria Mônica Lima, sua “grande e definitiva paixão”, como anuncia, os olhos brilhando. Maria Mônica sabe que é amada e aceita, sem ciúmes, as duas outras grandes paixões de Pedro José Galván: poesia e erotismo. O poeta, sempre generoso, me estende um presente que faz alterar minha pulsação cardíaca: uma “Antología de la poesía erótica española e hispanoamericana”, compilada por seu amigo e xará Pedro Provencio, edição Edaf, Madrid, 2003. Poemas que vêm desde a Idade Média até o século XX, distribuídos em 657 páginas.
Numa noite de vinhos e emoção, Pedro leu em voz alta poemas dos séculos XII, XIII e XIV, tão envolventes quanto as lusitanas cantigas de escárnio e mal-dizer. Passou por Lope de Vega e Francisco de Quevedo, grandes representantes do Século de Ouro espanhol, visitou García Lorca, Antonio Machado, Vicente Huidobro, apresentou autores de quem eu jamais ouvira falar, como o uruguaio Eduardo Milán, a mexicana Iliana Godoy, o argentino Jorge A. Boccanera. Foi uma festa, melhor, um festival de poesia. No dia seguinte, um vizinho invejoso me perguntou: “Quem era o artista que dizia poemas em voz tão alta? Pena eu não ter entendido nada do que ele disse.” No meio da noite de causar inveja, Pedro José fez uma pausa, bebeu umas taças de vinho, acendeu um charuto quilométrico e por fim me perguntou: “Agora me diga: como é que vai a poesia erótica brasileira?” Eu disse, não sem tristeza, que a poesia erótica no Brasil, para a maioria dos seus raros leitores, está no nível dos sites pornôs. Talvez uns degraus abaixo. Com certeza, menos prestigiada do que aqueles “peep shows”, exibições para voyeurs. O Brasil não tem nenhuma tradição de poesia erótica, parece até que não foi colonizado por portugueses que, como os espanhóis, cultivam a poesia docemente sacana desde a Idade Média. Não há registro de grandes poetas brasileiros expondo ao público, de peito aberto, sua sensualidade. Bernardo Guimarães (1825-1884), autor de “A Escrava Isaura”, fez duas tentativas: “O Elixir do Pajé” e “A Origem do Mênstruo”. Longos e medíocres poemas, verdadeiramente pornográficos, naquele sentido wildeano de que não há obras imorais, há obras mal escritas. A poesia erótica de Drummond, trancada a sete chaves até sua morte, não está à altura de sua obra poética. Em pleno século XXI, quando a intimidade sexual é escancarada em bancas de revista, nas telinhas da TV e do computador, o autor brasileiro de poesia erótica ainda é visto como um anormal, um tarado. Por conta do meu “Era uma vez Eros”, duas mulheres de amigos meus não me recebem em suas casas. Talvez tenham medo de eu impregnar de pornografia a sala, a mesa de jantar, a louça, o ambiente sacrossanto onde moram. Pedro me ouviu em silêncio, estupefato, depois gritou: “Yo no creo! Solo me resta emborracharme!” (Não acredito! Só me resta tomar um porre!).