Os passeios de elevador, escada rolante
e os malditos militares que mataram Silton
Petit das Virgens
Era 1960.
A casa de número 714, da Rua Gonçalves Lêdo, era muito comprida. Na frente, todos os dias, ouvíamos as guarânias "iraquitaneanas" dos ensaios do trio dos Guanabara. A porta de trás dava para a Rua Voluntários da Pátria, de frente para a casa de Dr. Temístocles Duarte, pai de Ticiano. Foi lá onde eu conheci Zequinha, um dos meus primeiros amigos natalenses: hoje, Zeca Melo. Vizinho era a escola de Dona Beatriz Cortez.
Foi lá que eu conheci Vulpiano Cavalcanti, meu primeiro amigo fora da Cidade Alta. Ele me levou até o Tirol pra me mostrar o avião que "um dia ia voar", que estava construindo na garagem da casa. O pai era médico, comunista e um perseguido político.
Há pouco tempo, fui deixar Vulpiano no cemitério do Alecrim, pertinho de papai. Quem sabe, ele está voando naquele avião que nunca sairia da garagem.
Agora, voltando à Cidade Alta, o vizinho da frente também era Zequinha e logo ficamos amigos. Eu também ainda não me chamava Petit. Somente dois anos depois, irmão Louis, um velhinho francês de Lion, que tomava conta das abelhas do Colégio Marista, aqui em Natal, seria meu professor de francês e só me chamaria de "mom petit enfant". Mamãe mesmo, até hoje, prefere chamar-me Edinho.
O Grande Ponto era para mim uma grande Nova Iorque. Eu estava chegando de Nova Cruz onde meu quintal era o rio Curimataú. Os poucos automóveis que conhecia eram o Impala de Seu Totô e a sopa (ônibus) dos irmãos Flôr. A vida andava de trem. Meu "grande ponto" era a estação. O meu mundo agreste tinha três donos: dona Joanita Arruda Câmara, a prefeita; papai, Joaquim das Virgens, o juiz; o outro era o vigário.
Natal era uma metrópole de muitos donos e minha nova morada. No Grande Ponto não passava mais bondes que hoje dão charme a cidades turísticas como São Francisco ou Lisboa. Os trilhos e os paralelepípedos ainda estavam lá, mas logo um dos donos cobriria a avenida Rio Branco de asfalto - diziam, na época, com dinheiro de Moscou. Depois disso, a Cidade Alta nunca mais teria a temperatura média de 28 graus. Meu sonho é ver um dia os bondes de volta, agora carregando os turistas até às atrações natalenses.
Em pouco tempo, adaptei-me à nova vida. Minha mãe me botou pra ajudar missa no Convento Santo Antônio. Tinha que usar uma batina roxa com um babado branco no pescoço. Eu me sentia importante. Era divertido botar incenso no turíbulo para fazer fumaça. Um belo dia, em vez de três, eu coloquei oito colheres de incenso. Na hora da elevação, foi uma fumaceira total. As pessoas todas tossindo e, finalmente, depois da missa, veio a sentença de Frei João Batista:
- Dona Sinhá, seu menino não dá pro ofício.
Comecei a fazer muitos amigos. Meus primos Flávio, Fernando, Ângela e Rosane Pípolo de Amorim, na Voluntários, eram um alento, pois também tinham vindo de Nova Cruz, onde éramos vizinhos. Logo fiz amizade com Tarcísio, filho do dono da padaria e o meu primeiro "televizinho". Era assim que a gente chamava os amigos mais ricos que já tinham televisão em casa. A vizinhança ia toda assistir. Logo eu estava cheio de amigos: os irmãos Paulo e Rui, Netinho, Aninha, Wilson Maranhão, Zilmar e os irmãos.
Um coleguinha era especial. Roberto morava num sobrado no Beco da Lama e o pai trabalhava no Cinema Rex. A gente podia entrar de graça nos filmes proibidos para menores de idade. Foi ele quem me ensinou a assobiar alto quando aparecia alguma mulher nua na tela. No domingo, depois da missa na catedral, o grande programa era assistir o seriado no Rex. Tarzan, Batman, Superman nas maravilhosas cores preto e branco.
A briga entre Dinarte Mariz e Aluízio Alves estava no auge por conta da candidatura de Djalma Marinho a governador. A disputa da memorável campanha terminava atingindo a molecada, que se divertia subindo nos telhados para colocar bandeiras verdes ou azul e rosa. Eu não podia botar lá em casa, pois papai, em sua dignidade extrema, não permitia que a casa de um juiz tivesse bandeira nenhuma. Três anos depois, ele morreria de um câncer que o devastou em 53 dias.
Aluízio sairia vitorioso e, alguns anos depois, receberia, no Grande Ponto, o senador americano Robert Kennedy. Ele representava, na inauguração da praça Kennedy, o irmão-presidente assassinado. Foi o momento mais emocionante do Grande Ponto. Pouco tempo depois, Bob Kennedy também seria morto a tiros.
Apesar da politicalha provinciana, o romantismo imperava, principalmente quando íamos à casa de Flávio Pípolo, ouvir o boêmio pai João Alfredo Amorim dedilhar o violão e cantar "teus olhos castanhos de encantos tamanhos"... à amada Dulze. À tardinha, era obrigatório tomar banho e se arrumar para ir passear no Grande Ponto. O périplo começava na calçada do Cinema Rex, mais especificamente em frente à Cruz Vermelha, onde funcionava o juizado de menores. Era lá mesmo que tinha uma banca de puxa-puxa, muitas vezes usada para arrancar dente de leite. Eu e Flávio Pípolo comprávamos o doce e íamos para a vitrine da loja quatro e quatrocentos (depois Lobrás e preparando-se pra ser Marisa) ver os carrinhos de corda importados e passear de escada rolante.
Depois tinha uma parada no pipoqueiro, antes de passear no único elevador de Natal: o do edifício São Miguel. Ele ainda existe e outro dia andei nele quando levei meus filhos para tirar retrato no Foto do Estudante, ali em frente ao Banco do Brasil. Ele ainda funciona perfeitamente com aquelas grades sanfonadas. Na volta, uma parada em frente ao Natal Clube, na Praça Kennedy, para uns saquinhos de castanha confeitada ou um algodão doce feito na hora. Finalmente, um sorvete na Sorveteria Oásis, no mesmo prédio do Cinema e da Radio Nordeste.
Quatro anos depois, viriam aqueles terríveis militares no mesmo local, arrecadando "ouro para o bem do Brazil". Com esse ouro, eles sustentaram um regime que prendeu meu cunhado quase um ano; condenou à morte meu amigo Theodomiro Romeiro dos Santos e; assassinou, num tonel, meu outro grande amigo José Silton Pinheiro, depois de uma sessão de tortura num "pau-de-arara", no Rio de Janeiro. Ambos eram da minha sala no Colégio Marista.
Nunca mais o Grande Ponto foi o mesmo.