Cláudio Emerenciano
A alma da cidade. Entidade que agrega gerações de todas as épocas e instantes da História. Une-as, especialmente, pelo amor à terra comum. Esse sentimento, profundo e indestrutível, investe-se de um conteúdo que também incorpora o meio ambiente, sonhos, esperanças, amarguras, lutas, desafios e sofrimentos de cada um. Ideais perseguidos e utopias acalentadas. É uma simbiose, mistura que nunca se completa, nunca se exaure, porque revela a existência da cidade no curso do tempo.
André Gide dizia que as vilas, os povoados e as cidades têm a idade dos sentimentos e dos sonhos que os inspiram. Outra não foi a percepção de Saint-Exupéry, contemplando das alturas, em seu minúsculo e frágil avião monomotor, em plena noite, os pontos de luz que demarcavam aglomerados humanos nos pampas argentinos: "A terra enchia-se de apelos luminosos, cada lar ateando a sua estrela perante a noite imensa, tal como a luz de um farol voltado para o mar".
Século passado. Natal nas décadas de 20 e 30. Paraíso sonhado e ansiosamente desvendado pelos primeiros heróis da travessia aérea do Atlântico. Cidade bucólica e provinciana. O mar e o rio eram contornados por uma cidade exuberantemente verdejante. Era um pomar. Não fora em vão que o grande Juvenal Lamartine dera os nomes de Petrópolis e Tirol aos novos bairros, cercados por morros e envolvidos por um microclima ameno. Da terra exalava um hálito frio, que se estendia do entardecer até o começo da tarde do dia seguinte. Como tantas vezes disse o mestre Cascudo, o natalense cultivava seus valores e sua percepção do mundo e da vida no peso de suas relações humanas. O estranho era um irmão novo. Mais um a compartilhar da vida da cidade. Alguém mais ousado, temerário, diria que, na simplicidade das pessoas, na riqueza de sua cultura popular, na dignidade da alma coletiva, havia uma espécie de "civilização local". Era um caldo cultural, que inspirou Cascudo ao conceber sua Universidade do Povo.
Há duas vertentes de interpretação quanto à influência da Guerra em Natal. Uns dizem que a cidade mudou. Metamorfoseou-se. A Guerra, com a presença dos aliados, especialmente americanos, como um Midas, que ao tocar tudo transformava em ouro, alterara-lhe sua alma, suas tendências, seu pensar, convertendo-a numa cidade de espírito cosmopolita, aberta e receptiva ao mundo. Outros dirão que o cosmopolitismo natalense já existia. Mermoz o testemunhara.. Ele e tantos outros pilotos da epopéia atlântica.
Natal das décadas de 50, 60 e 70. A cidade daquelas gerações que possuíam a mente, os olhos e os sonhos direcionados para o mundo da "aldeia global". Natal do "grande ponto". Centro sentimental, telúrico e convergente de todas as tendências, todas as opiniões, todos os interesses, todas as lutas, todas as ousadias e todas as conspirações.
Os pastores da noite. Eram aqueles tantos, cujos nomes, entre ilustres e anônimos, corajosos e tímidos, eruditos e populares, partilhavam horas da noite e da madrugada. Eram vigias sentimentais da cidade. Citar um nome seria injusto. Porque cada um, qualquer que fosse sua participação nesse fórum, no melhor conceito da democracia grega, ateniense, expressava idéias, sentimentos e aspirações da cidade. Ou, pelo menos, de parte dela.
Será que a cidade mudou? O "grande ponto" decaiu como todos os centros de grandes cidades. E o espírito da cidade? Sua alma cosmopolita. Seus valores atávicos. Sua cultura popular. Sua religiosidade. Suas emoções. Também seu provincianismo, revelador de uma cândida e singular ingenuidade. Será que tudo isso tende a desaparecer? Vítima, entre tantas causas, da violência urbana e de uma "globalização" que a televisão dissemina, difunde e contamina. Não creio nessa "morte" programada. Porque em cada coração, em cada consciência de natalense, sobrevivem sentimentos, compromissos e sonhos eternos. A cidade sempre estará viva, no esplendor e amplitude de sua vocação, pelo pensar e sonhar das gerações passadas, presentes e futuras.