Um dia, folheando uma dessas antologias de poetas franceses traduzidos no Brasil, caíram nos olhos e na alma esses versos assim:
"Eu sou o tenebroso, — o viúvo, — o inconsolado,
o Senhor de Aquitânia à Torre da Abudia:
Meu único Astro é morto, e o meu alaúde iriado
Irradia o sol negro da melancolia".
Voltei ao nome do seu autor, li o resumo de sua vida, e saí procurando suas marcas em toda parte. Só então descobri que Gérard de Nerval era uma grande ausência entre nós, e que, mesmo na França, levara cem anos para ser redescoberto.
Não exagero. Nerval nasceu em 1808 e em 1855 foi encontrado morto na rua da Velha Lanterna, aquele lado de uma Paris pobre e suja aonde viveu seus últimos anos.
Em 1952, três anos antes do centenário do seu suicídio, sua obra entrou na Plêiade, a coleção que a Gallimard - a mais importante editora da França e a mais consagradora do mundo - reservou só aos grandes autores franceses, aqueles que o seu austero e culto comitê de editores considera realmente célebres. Daí porque há autores famosos, e já mortos, que não estão na Plêiade.
Ainda é pouco o que há de Gérard de Nerval traduzido no Brasil. Mas, se ter três traduções de uma mesma obra pode ser um indicativo de qualidade, ele tem. Porque três vezes o seu Aurélia saiu dos prelos brasileiros: em 1986, edição da Ícone, com tradução de Élide Valarini; cinco anos depois, em 1991, na edição Iluminuras, com tradução de Luís Augusto Contador Borges, e com a melhor e mais erudita introdução das três edições; e a mais recente, de 1997, com a tradução de Paulo Hecker Filho para a coleção Pocket, da L&PM.
O que há além das três edições de Aurélia, seu texto mais conhecido na área de ficção? Outra novela, Sílvia, com tradução de Luís de Lima, edição Rocco, 1986. Com uma singularidade: mereceu a apresentação de Fernando Sabino que escreve um pequeno resumo da vida e da obra de Nerval sem perder de vista seu esoterismo, ele que acreditava nos sonhos humanos como uma segunda vida. Seu alcance, no entanto, fica bem longe do olhar de Contador Borges, embora não se possa negar a natureza mais culta das edições Iluminuras.
Mas, se 1986 é o ano da estréia de Gérard de Nerval com a pobre edição de Aurélia no universo editorial brasileiro, pelo menos para a contemporaneidade, só em 1996, exatos dez anos depois, os jornais anunciam que o poeta Alexei Bueno lançaria, pela Topbooks, a grande tradução de As Quimeras. Nada poderia ser mais consagradora. Porque Alexei, no caso de Gérard de Nerval, não é apenas um grande tradutor. É um nervalino, como dizem os franceses. E do tipo que leva flores ao seu túmulo, no cemitério do Pére-Lachaise, em Paris.
Foi Oswaldo Lamartine, num dos últimos anos de sua permanência no Rio, que me apresentou a Alexei Bueno. Lembro, e lembrei com ele, agora, quando esteve aqui: foi na Livraria Brasileira, o bom sebo de Osmar. Mais alguns anos, e já então depois da tradução d'As Quimeras, nos encontramos em Recife, no Congresso de Literatura. Ele, o expositor. E este pobre leitor com a missão humilde de preencher quinze minutos sobre jornalismo e literatura. Foi lá que conheci o poeta Gerardo Mourão, senhor do sertão e das gitiranas em flor.
Depois, nos encontramos na posse de Antônio Carlos Secchin, um amigo comum, na Academia Brasileira de Letras. Mas foi em Recife, pela coincidência da paixão literária, que nasceu nossa amizade. Somos nervalinos. Por várias coincidências. Também visitei seu túmulo duas vezes, a primeira antes da tradução de Alexei. Como ele, e mesmo sem existir mais, fui conhecer o lugar da Rua da Lanterna, em Paris, hoje um centro comercial; e comprei alguns estudos dos "Archives Nervallienes", que publica grandes ensaios sobre a sua obra.
Ora, Alexei Bueno é um irmão em Gérard de Nerval há alguns anos. Tem o maior acervo no Brasil em torno da vida e é, sem dúvida, o maior conhecedor da obra do grande poeta do sol negro da melancolia. Por isso fui buscá-lo para autografar seus poemas à sombra desta biblioteca. E se conto essa história só agora, depois que Alexei passou por Natal, é para que alguns não pensem que anunciam novidades. Pedro Vicente e Nelson Patriota que atestem o dia todo vivido perto do mar. De conversas literárias, cachaça boa e charutos macios.
Vicente Serejo
O Jornal de Hoje, 18.04.05