Argemiro Lima
Do alto do morro
por entre as dunas
e o arvoredo
as luzes da cidade.
Você já viu Natal,
lá de cima do morro?
Pois devia ver
cada luz
é um olhar
cada olhar
é um lar
cada lar
em seu lugar
definindo,
a visão do alto
sobre a cidade.
Chagas Lourenço
De arte e vida
João Arthur
Era um artista. Nascera assim. Desde criança sabia misturar as cores com maestria. Entre cola, papel picado e lápis-cera brotavam verdadeiras obras-primas. Os pais achavam engraçado aquela mania de desenhar. A professora, na escola, maravilhava-se.
Freqüentou escolinhas de pintura na infância. E aulas de jiu-jitsu, para agradar o pai. Muito depois, homem feito, abandonou o curso de Direito para dedicar-se à pintura. O pai rompeu consigo para sempre. Ele ingressou na Escola de Belas-Artes. Daí a Paris e, finalmente, a uma bolsa de cinco anos em Firenze, foi questão de três ou quatro anos.
Agora era reconhecido internacionalmente. Expusera nas melhores galerias, de Nova York a Tóquio. Um sucesso.
De repente, as coisas começaram a tomar um novo rumo. Estava próximo aos sessenta e tudo aquilo começava a entediá-lo. Buscava um pouco de recolhimento, de intimidade, de paz. E havia a solidão. Cansara-se de festas, entrevistas, jantares, vernissages. Dera de sentir-se sufocado, solitário, meio à bajulação, aos flashes.
Resolveu mudar-se para uma casa na praia. O silêncio das tardes e madrugadas lhe fazia bem. Pintava em paz. Lia. Caminhava horas sem fim, à beira-mar. Sentia-se quase feliz.
Então um dia, veio-lhe um mal-estar, a vista turva, a mão esquerda trêmula. Justamente a mão mais preciosa, canhoto que era.
O médico, de aparência perfeitamente asséptica e fria, explicou-lhe sem reservas, a situação. Tinha um tumor que lhe tomava boa parte do cérebro. E que, pelo tamanho, trazia embutido um risco cirúrgico considerável. Por outro lado, caso não fosse possível retirá-lo, a cegueira seria iminente , bem como a perda de força e movimentos do lado esquerdo. Ou seja, pensou, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. E quase esboçou um sorriso. Iria pensar, disse ao médico. De quanto tempo dispunha? perguntou antes de sair. Duas ou três semanas antes de cegar, respondeu o médico no mesmo tom mecânico, como se fosse um robô.
Fazia já duas semanas e a vista tornava-se mais e mais turva. Não mais conseguia pintar. Mas era, e seria sempre, um artista.
Sobre a mesa de vidro arrumou-os por cores. Contou: cento e vinte. Amarelos, vermelhos, alguns poucos brancos, dois tons de marrom e um tom de verde quase musgo. Começou a construir um mosaico, um rosto de mulher. Gostou do resultado. De peças toscas construíra um belo quadro. Magnífica imagem! Lembrava as madonas dos mosaicos bizantinos. Ah, saudade!
Tomou um banho demorado, de imersão. Em seguida, vestiu o roupão de seda azul marinho e pôs o Réquiem, de Mozart, na vitrola. Abriu o vinho. Um bordeaux de safra especial. No copo de cristal antigo, bacarat legítimo, cintilava, ainda mais belo, o tinto, aumentando-lhe o prazer de bebê-lo.
Sentou-se à mesa e lentamente, acompanhando o desenrolar do Réquiem, engoliu uma a uma, as peças do mosaico: cento e vinte comprimidos de soníferos variados. Depois, despiu o roupão e deitou-se, nu, sobre a cama antiga, forrada de cetim champanhe.
Concluíra pôr fim a sua obra. Sentia-se bem. Finalmente encontrara a paz que tanto procurara. Ouviu ainda o último acorde da Lacrimosa, antes de adormecer. Com um sorriso. Para não mais acordar.
Márcia Maia
TELEFONEMA
Tentei ligar, mas a telefonista de harpa avisou que naquela noite jamais. Você havia saído para um sarau com Luis Carlos Guimarães e Berilo Wanderley. Sim, Zila Mamede também.Voltaria tarde demais. Deixou escapar que entre os versos, haveria um de Florbela Espanca, poetisa portuguesa que do nome se fez contradição. Só falava de amor.
Ela recitaria para os quatro Loucura, que de tão curto e sublime, compartilho com todos:
”Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada pavorosa! Não sei onde era dantes. Meu solar, meus palácios, meus mirantes! Não sei de nada, Deus, Não sei de nada!... Pesadelos de insônia, ébrios de anseio! Loucura de esboçar-se, a enegrecer. Cada vez mais as trevas do meu seio! Ó Pavoroso mal de ser sozinha! Ó pavoroso e atroz mal de trazer tantas almas a rir dentro de mim!”.
Liguei, Rubens Lemos, para te dar notícias casuais. E para dizer que senti falta de sua voz rouca e cortante a bradar contra a intolerância, a arrogância e a covardia. Faltou você naquela noite de sábado. Faltou-me o seu abraço e a sua gargalhada aberta, fraternal, olhos de uma ternura imensa. Minha recompensa.
A notícia era banal. Queria apenas te dizer que o ABC ganhou mais uma. O seu ABC que você dizia ser, sem vaidade, o rosto alegre de uma cidade. Florbela Espanca me tomou a chance de te contar como foi lindo, tão formoso quanto uma criação dela. Foi só 4 x 0, pai. E o ABC agora se chama ABC/ART & C, imaculado, habilidoso, sensual, desconcertante. É campeão pela segunda vez em 60 dias.
Aí tem TV no céu? Você sabe que nós somos os melhores do Nordeste e estamos entre os seis do Brasil? Sabe! que de besta você nunca teve nada.
Casualmente, lembrei que tudo tem seu brilho. E saiba que adotaremos o papagaio como símbolo. Papagaio quer dizer nome comum a aves psitacídeas que são capazes de imitar a voz humana. E indica forte espanto.
Rubens Lemos, subscrevem este bilhete os senhores Neílson, Charles (como joga pai, como joga!), Anderson Maradona, Marconi Raça Gadelha, Piliu Operário, Fabiano, Betinho, Neto Boy da sua Zona Norte, Suza, Neto Bola, Ricardo, Jorge, Rafael, Birico, André, Exmar Tavares (a presença dele é um pouco a sua presença), Ewerton Cortez, Arturo Arruda, Cláudio Porpino, Renato Alves, Ricardo Rocha, Canindé, Inaldo, Doutor Luiz Alberto, Isabel, Caio e somente a imensidão da frasqueira.
Vá, volte ao seu sarau.
Rubens Lemos Filho
Diário de Natal - 19/04/2005
UM POETA TRADUTOR DE POEMAS
Marco Lucchesi
Quando o tradutor e poeta ítalo-fluminense Marco Lucchesi esteve em Natal há duas semanas, olhei as folhas dos jornais locais e li que ele era o tradutor de Umberto Eco no Brasil. Fiquei pensando, "puxa, esse cara é bom mesmo..." Ora, não é todo mundo que pode representar no Brasil a voz do festejado autor de O Nome da Rosa e menos conhecido ensaísta. Aí, fui para casa e fiquei folheando o livro Poemas Reunidos, de Marco Lucchesi, Record, 431 páginas.
Bem, o que posso deduzir dessa leitura rápida que fiz é que Lucchesi não é só isso. Ele é muito mais. Antes de tudo, é um poeta refinadíssimo. Escreve em português e italiano e é tradutor também de Djalal ad-Din Rûmi, Juan de la Cruz, Francisco Quevedo, Vassili Jukovski, Fiodor Tiuchev, Afanásy Fet, Vielimir Khliébnikov, Georg Trakl, Rainer Maria Rilke, Dino Campana, Boris Pasternak, Ievguêni Ievtuchenko, Sergio Solmi e Hans Magnus Enzensberger.
Se você não conhece a metade dos poetas acima citados, não se preocupe: leia o livro de Lucchesi. Pois bem. Li em algum lugar que o rapaz ia dar uma palestra na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Abalei-me para o local e cheguei a tempo de ver a saudação de Dorian Gray ao ilustre visitante. Marco Lucchesi é um jovem de 38 anos, afável, sorridente e tímido. Quando começa a falar, você vai percebendo a enorme erudição por trás daquela simplicidade.
Fala sobre os grandes poetas com clareza e grande conhecimento de causa. Você fica ali, ouvindo aquele cara de voz suave, explicando as nuances da tradução, a beleza de certos versos, a sonoridade de algumas sílabas, as peculiaridades da vida dos grandes autores e vai bebendo aquelas palavras como água fria e cristalina da mais pura fonte. Confesso que saí dali embriagado de saber. No dia seguinte, ele deu uma nova palestra na Livraria Nobel, no Natal Shopping. Mas não vi necessidade de ir de novo. Estava satisfeito.
Fiquei lembrando de suas palavras sobre a questão palestina. A lucidez de sua análise que evitava o rebuscamento diante da complexidade do problema. Tudo se resume a ódio e intolerância. Não adianta ir buscar razões para a brutalidade dos massacres em massa de Israel ou para a estupidez dos homens-mulheres-bomba palestinos.
Era um poeta falando de questões prosaicas, do banal do cotidiano, de uma guerra ali distante, que pouco nos afeta além de um desconforto na hora de botar gasolina no carro. E falava das crianças destroçadas pelas bombas, queimadas pelas armas químicas fabricadas por Sadam Hussein. Falava com a indignação que só os artistas têm diante da bestialidade humana.
Concordo com ele. E admiro o modo como trafega nesses meios literários onde as honrarias contam mais que as obras. Fiquei feliz de vê-lo falar em uma diversidade de escritores espalhados pelo território nacional, todos de diferentes tons de qualidade e sem qualquer reconhecimento que invariavelmente é referendado pela mídia carioca-paulista. É bom ter gente assim no Brasil.
Carlos de Souza
Tribuna do Norte - 14/04/2002