Toda cidade oferece um enigma. Ou você decifra o enigma da cidade ou ela te devora sem muita cerimônia. Para os que nascem e vivem a vida toda em uma cidade isso pode parecer estranho. Mas para o viajante não. Todo viajante, como Édipo às portas de Tebas, é empurrado e na direção do enigma. Não há acordo para quem sai da própria terra e vai morar em outro lugar. Ou você decifra o enigma ou é destroçado por ele.
O cenário político desenhado pela câmera literária de Nei é apenas parte da solução do problema que a vida em Natal propõe. Junto aos discursos sobre a doutrina marxista, ao sexo sempre presente no texto, às paixões cotidianas e aos pequenos acontecimentos privados que dão sentido à vida em uma província, Nei explora o dilema dessa cidade como poucos fizeram. Um dilema retratado na ansiedade pelo universal em meio ao particular. Imagine a cena: numa tapera de pescadores na Redinha, nos anos trinta do século passado, um agente do partido comunista disserta sobre uma ideologia política gestada numa Europa industrializada e urbana. Como adequar essas duas realidades? Como fincar, num solo primitivo e de natureza totalmente hegemônica, uma antena para captar as ondas de um mundo grande demais para ser condensado entre a Praia do Forte e o bairro do Alecrim? Natal é uma cidade assim. Uma eterna quase metrópole. Uma cidade que cresce e encolhe no ritmo das grandes guerras, dos pousos e decolagens das aeronaves que ligam a América do Sul à Europa. Observando a história da cidade, nota-se de imediato esses ciclos, que hora projetam Natal para o Brasil e o mundo apenas para, logo depois, lançá-la num silêncio desconcertante, proporcional a seu tamanho.
Vivemos um desses ciclos de projeção, semelhantes ao período da guerra dos bárbaros, dos vôos intercontinentais e da grande guerra. No entanto, mesmo com o mundo batendo a nossa porta, não abandonamos a cegueira típica das províncias mais isoladas. Vivemos nesse vai e vem, nesse corredor de passagem. O mundo passa por Natal, chacoalha a cidade de tempos em tempos e depois a abandona, sem muita cerimônia. Então fica essa ansiedade pela modernidade, essas ruas futuristas projetadas por Palumbo, esse jeans americano deixado pelos soldados na guerra, a vanguarda estética da Londres Nordestina. Vivemos sempre a nostalgia do vazio. Uma nostalgia do futuro. Concentrada de modo muito peculiar no nosso imaginário. Conversando com o professor Sérgio Trindade, um dos grandes nomes da nova geração de historiógrafos dessa cidade, fui alertado para a natureza inquietante desses ciclos de expansão e recolhimento a que a cidade se submete.
Nei Leandro, do alto de seu exílio carioca, conseguiu, de um modo bastante instigante, apontar para esse dilema, indicar o local aonde mora essa ansiedade que o natalense nutre pelo universal, pelo cosmopolita, sem conseguir se libertar do próprio provincianismo. Muita gente boa foi devorada por essa cidade, aparentemente inocente e hospitaleira, por não ter seguido o exemplo de Édipo diante da esfinge. Agora, Nei Leandro, longe de Natal, olha para cidade e redireciona o desafio: “devora-me logo, ou então eu te decifro”.