quarta-feira, junho 08, 2005

ENTREVISTA: JOSÉ ALEXANDRE GARCIA

MEMORIALISTA DA BOEMIA RELEMBRA ATÉ
QUEM TOMAVA BANHO NU NA PRAIA DO MEIO


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José Alexandre Garcia é uma das figuras humanas mais interessantes de Natal. Brincalhão, irrequieto, curioso e irreverente, ele experimentou, ao longo dos seus 60 anos - completados hoje* -, todas as fases de desenvolvimento de Natal, desde os anos 30.
Foi estudante do velho Atheneu da Junqueira Ayres e do Colégio Marista. Foi esportista e dirigente de clubes e federações. Conheceu e conviveu com figuras notáveis da boemia. Fez jornalismo durante décadas e, hoje, se dedica ao magistério superior.
Há mais de um ano, ele vem publicando em Dois Pontos histórias pitorescas, ricas de humor e de alegria de viver, acontecidas principalmente no bar da Confeitaria Delícia, lá na Ribeira. Essa história e muitas outras ele reuniu no livro Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia, editado pela Clima, cujo lançamento ocorre nesta sexta-feira. Este depoimento que ora publicamos, vale como uma amostragem da sua personalidade e do seu estilo de vida.

Entrevistadores: MARCOS AURÉLIO DE SÁ E TICIANO DUARTE

TICIANO - Você é um homem que conviveu com figuras famosas da boemia natalense; que movimentou a vida esportiva e social da cidade durante décadas, através do jornalismo e da sua atuação nos clubes de serviço e na Maçonaria. Agora você resolve colocar num livro um pouco das histórias que você sabe. Mas vamos falar sobre você mesmo. Comece falando sobre o seu tempo de estudante do Atheneu.

JOSÉ ALEXANDRE - Comecei a estudar no Atheneu aí por volta de 1936. Sempre fui um aluno muito relapso, meio desligado... Uma vez, deixei de ir fazer uma prova para terminar de jogar uma partida de botão, com Zé Lins. E, por causa disso, e por ter dado uma resposta meio irreverente ao professor Hostílio Dantas, meu pai me transferiu para o Marista. Eu estava numa aula de desenho quando Hostílio - que era um grande pintor e uma grande figura humana, mas que não tinha muito pulso em sala-de-aula - se vira para mim e diz: “Como é que o senhor vem para uma aula de desenho e não traz um lápis?” Era um dia de inverno e eu respondi: “Esqueci o lápis, mas trago aqui outro objeto pontudo... que é o meu guarda-chuva”. (Risos) Ele se dizia ou era primo de papai e, por um azar meu, no mesmo dia ele se encontrou com o velho e fez uma queixa tremenda, porque um parente dele o estava desmoralizando em classe. À noite, papai me interpelou: “O senhor está estudando para ser alguma coisa, ou para ser palhaço?” E, de imediato, cortou a minha mesada, me proibiu de ir a cinema por um mês, e, no fim do ano, me transferiu para o Marista, onde eu sofri tremendamente.

TICIANO - Quanto tempo você ficou lá?

JOSÉ ALEXANDRE - Estudei dois anos no Marista. Não me adaptei de forma nenhuma àquele clima nazi-fascista que existia na época e, assim, voltei para concluir o quarto ano lá no Atheneu. Dessa turma me lembro de Romeu Aranha, Otávio Rabelo, José Waldenício de Sá Leitão... Aquele era o tempo em que ainda se passava sabão nos trilhos do bonde da Junqueira Ayres para ele deslizar e não subir a ladeira. O primeiranista do Atheneu era considerado o fera. Fui muitas vezes obrigado pelos mais velhos a subir na balaustrada do velho Atheneu e dar um viva a El caballero de la esperanza que eu nem sabia quem era. Só anos depois, é que vim a saber que se tratava de Luís Carlos Prestes.

TICIANO - O que era Natal naquela época?

JOSÉ ALEXANDRE - Natal se resumia à Ribeira, onde se situava o comércio tradicional, os grandes empórios, os grandes atacadistas, as firmas exportadoras; a Cidade-alta, ainda noventa por cento era área residencial... Chegava até a avenida Deodoro. Daí para frente havia os sítios do Tirol e as matas de Petrópolis. O Alecrim ainda era um bairro incipiente, conhecido mais por conta do seu cemitério.

TICIANO - Depois do Atheneu, você fez o quê?

JOSÉ ALEXANDRE - Fui fazer o curso clássico no Colégio Carneiro Leão, em Recife, o famoso Carneirinho da rua do Hospício. Em Recife, eu morava com a minha irmã Odila. Eu estava muito satisfeito ali porque, além de morar com minha irmã, meu pai me mandava uma mesada. E eu, por intermédio de Mauro Mota - que era muito amigo do meu cunhado Albert, um alemão - acabei conseguindo um emprego de revisor no Diário de Pernambuco. Minha irmã mostrou a Mauro Mota o que eu chamava as minhas produções. Ele leu, achou graça, e me levou para o jornal, onde entrei como revisor e fiquei sendo uma espécie de regra-três na redação.

TICIANO - Em que ano foi isso?

JOSÉ ALEXANDRE - Já em 1946, quando Mauro Mota era secretário do Diário de Pernambuco e o diretor era Aníbal Fernandes. Por uma marcação do chefe da revisão - que me chamava de doutor porque me achava rico e dizia que eu estava ocupando o lugar de outrem mais pobre que talvez necessitasse mais do emprego - passei a ficar com a responsabilidade de fazer a revisão dos artigos de Aníbal Fernandes. Ele escrevia manualmente e sua letra eram verdadeiros hieróglifos. Mas eu banquei o Champolion: descobri a técnica de Aníbal e acabei sendo até elogiado por ele que dizia que eu tinha sido o único revisor que entendia sua letra. Estávamos naquele tempo na fase da redemocratização. O Diário de Pernambuco era freqüentado por grandes figuras da política. Foi quando conheci Gilberto Freyre e todos aqueles estudantes que fizeram o movimento de 45... Eu inclusive estava na calçada do jornal quando a polícia de Etelvino Lins, criminosamente, arcabuzou Demócrito de Souza Filho, que acabou transformado no mártir da mocidade e do povo pernambucano na luta contra a ditadura. Por trabalhar no Diário de Pernambuco, cheguei uma vez a ser preso. Etelvino Lins tinha uma técnica muito interessante... Depois daquela bombástica entrevista de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, o país passou a viver um regime aparentemente liberal. E assim o Diário de Pernambuco começou a fustigar o Estado Novo, a criticar Agamenon Magalhães que era o interventor, e Etelvino Lins que era o chefe-de-polícia. Assim, Etelvino Lins mandava, de vez em quando, chamar à chefatura de polícia um dos jornalistas para interrogatório. Uma vez, eu estava à tarde na redação, sozinho, quando vi entrarem dois homens de chapéu. Só por conta do detalhe do chapéu, concluí que eram investigadores. Eles perguntaram a mim por diversas pessoas que escreviam no jornal. Como não estava ninguém, eles resolveram me levar. Fui à delegacia, onde me deixaram durante seis horas sentado numa cadeira, sem que tomassem conhecimento de mim para coisa nenhuma, nem para oferecer um copo d’água. Era como se eu não existisse! Naquelas seis horas que passei ali, tive uma saudade imensa de casa, e cheguei à conclusão que a vida que levava em Natal era muito boa. Eu só imaginava ser levado para Fernando de Noronha, preso! Depois de seis horas de cadeira, Etelvino Lins me chamou e, abrindo o Diário de Pernambuco, apontou para o editorial e perguntou: “O senhor sabe quem escreveu este artigo?” Respondi que não sabia. E não sabia mesmo! Eu era um foca. Como é que poderia saber quem tinha escrito um editorial?... Ele virou-se secamente para mim e afirmou, com aquela sua cara muito dura e muito feia: “Olhe, eu não gosto de mentiras. Se o senhor sabe quem escreveu, é melhor dizer.” Eu tornei a responder: “Doutor Etelvino, se estou dizendo que não sei, é porque não sei mesmo”. Ele olhou para mim com profundo desdém e, como quem se despede de um cachorro, falou: “Pode ir !” Quando pisei na rua da Aurora, senti uma das maiores alegrias da minha vida. Tive vontade de abraçar o povo, de fazer discurso, de cantar, de chorar... E como não fiz nada disso, fui para a Phoenix e tomei dez chopes com sanduíches de presunto, que era o prato famoso da casa.

MARCOS - Nesse tempo você já era boêmio, lá por Recife?

JOSÉ ALEXANDRE - Eu tinha minha turma e tomava minhas cervejas. Recife era profundamente diferente de Natal. Lá a gente podia tomar cerveja nas calçadas, olhando as meninas fazendo o footing, na Rua Nova. Ficávamos ali, na Phoenix, nos fins de tarde, disputando cerveja na porrinha. Bebíamos pouco, até porque o nosso capital era muito limitado. Somente na primeira semana, quando chegava a minha mesada, eu me dava ao luxo de ir jantar no Leite ou na Helvética, preferencialmente na Helvética, onde eu era tão conhecido da casa que os portugueses me faziam um fiado. Outra coisa que me prendia ao Recife era meu cunhado Albert Van Drunen, que era co-gerente da firma Alberto Lundgren & Cia, hoje Casas Pernambucanas. Ele era muito festejado. Um advogado da firma, para lhe puxar o saco, me chamou para trabalhar no escritório dele, como estagiário. Nessa época, eu já fazia planos de estudar Direito, e estava inflando de empáfia, pois militava na imprensa, trabalhava num escritório de advocacia e estava comprometido e pensava em casar. Foi quando minha família impôs minha volta para Natal, para ajudar a papai na sua agência de despachos.

TICIANO - Seu pai era despachante aduaneiro, não é isso?

JOSÉ ALEXANDRE - Exato. Eu fiz então concurso para ajudante de despachante, passei, e fiquei com ele nessa condição, até que, no governo de Juscelino Kubitschek, fui nomeado despachante também. Naquele tempo, o despachante era nomeado diretamente pelo presidente da República, cumpria um juramento e tinha os mesmos deveres de um funcionário público. O inspetor da Alfândega era praticamente o nosso chefe, mas nós não éramos funcionários; éramos remunerados pelas partes, os chamados comitentes, ou seja, o comércio em geral que recorria aos serviços de transporte marítimo. Todo o comércio de Natal era abastecido por navios, de modo que o escritório do meu pai - o velho Zé Alexandre - era um dos mais conceituados da praça e também famoso pela roda de elementos que o freqüentava para o bate-papo.

TICIANO - Quer dizer que você interrompeu seus estudos ao voltar para Natal?

JOSÉ ALEXANDRE - Sim, mas o velho meu pai praticamente me obrigou a fazer Direito. E lá fui eu estudar Direito em Alagoas. Naquele tempo, não havia faculdade em Natal. Em Recife se exigia uma freqüência rígida às aulas. Mas, em Maceió, através de bolas aos bedéis, ou através de colegas que respondiam às chamadas por nós, e de algumas aulas que a gente assistia, tínhamos direito a fazer as provas finais. Foi assim que terminei meu curso em 1951. Na minha turma éramos cinco norte-riograndenses: Amauri Lopes da Silva, José Xavier da Cunha - que era deputado estadual -, José Batista Emerenciano, João Damasceno de Menezes e eu. A princípio, era muito difícil o nosso deslocamento de Natal para Maceió, pois tínhamos que ir de trem. Saíamos daqui às cinco horas da manhã e chegávamos em Recife às onze da noite, quando no horário. No dia seguinte, reembarcávamos em Recife com destino a Maceió às oito da manhã e só chegávamos às oito da noite. No fim da viagem, passávamos ainda uns dois dias com a cabeça balançando no mesmo ritmo do trem, trepidante. Devo o fato de ter me formado a papai, pois eu não queria mais estudar. Eu dizia sempre que se já era despachante, não precisava mais ser bacharel em Direito, pois nunca iria seguir a carreira, como, de fato, não segui. Somente muitos anos depois, o título me valeu, quando fui ser assessor jurídico do I.P.E., já nos anos 70.

MARCOS - Que lembranças, que fatos pitorescos você guarda daquela fase em que estudou em Maceió?

JOSÉ ALEXANDRE - Logo que o transporte aéreo foi se desenvolvendo, surgiu, aqui em Natal, o Lóide Aéreo. Nessa altura, a turma de natalenses que freqüentava a Faculdade de Direito em Maceió já era tão grande que nós fretávamos um avião cada vez que tínhamos que viajar para fazer provas. Os aviões do Lóide eram péssimos e faziam uma escala em Campina Grande, cujo aeroporto era perigosíssimo. Mal o avião pegava embalagem para decolar, já estava praticamente em cima das serras. Nós todos ficávamos morrendo de medo. É tanto que botamos no Lóide Aéreo o apelido de Jesus está chamando. Por coincidência, no ano anterior, tinha havido um grande desastre aéreo na Itália, com o time do Torino. Assim, quando no aeroporto de Parnamirim eram chamados para embarque os passageiros com destino a Campina Grande, Recife, Maceió, os mais engraçados pilheriavam: “Está embarcando nesse momento a equipe do Torino”. Já a bordo, os engraçadinhos também cuidavam de amedrontar os mais medrosos, apontando para supostas manchas de óleo nas asas do avião ou afirmando que o mesmo estava perdendo altura, e coisas desse tipo. Lembro bem que, nessas horas, Boanerges Soares de Araújo puxava do bolso um terço que não tinha mais tamanho e só abria os olhos e só deixava de dedilhar o terço, quando o avião aterrissava no aeroporto de Palmares. Se não me engano, foi num desses aviões que morreu o nosso governador Dix-Sept Rosado...

MARCOS - O que mais você se lembra daquele tempo?

JOSÉ ALEXANDRE - No ano em que me formei, em 1951, exatamente quando estávamos assistindo à missa de ação de graças, no dia 8 de dezembro, correu a notícia de que estava havendo a primeira greve classista do país. Era a greve dos aeroviários. Por causa disso, nós, que tínhamos viajado para Maceió apenas para as festas de formatura, fomos obrigados a passar uma semana inteira e, praticamente com a roupa do corpo, sem termos o que fazer. Nosso interesse era voltar imediatamente para Natal, onde nossos familiares tinham preparado as melhores festas em nossa homenagem. Recordo que meu colega José Batista Emerenciano se queixava o tempo todo de que a sua mulher tinha preparado uma galinha gorda para recepcionar a família. E ele não sabia se tinham comido a galinha... Se ainda estavam esperando por ele. Amauri Lopes da Silva, que sempre foi muito fleumático, e caladão, só fazia rir. Enquanto isso, eu e José Xavier - que era deputado estadual e tinha, dias antes, arrendado uma mina e estava cheio de dinheiro - íamos festejar a nossa formatura nos bares. Emerenciano ficava furioso e dizia: “E se, de repente, chegar um aviso da companhia para nós embarcarmos? Onde é que vamos encontrar vocês ?” José Xavier respondia: “Procure-nos pelos bares, pois Maceió é menor do que Natal”. José Emerenciano ficava possesso com aquela brincadeira. Muito preocupado, toda hora ele se dirigia ao escritório da companhia aérea e dava uma espinafração no gerente e nos funcionários. Por azar dele, quando, dias depois, fomos avisados de que a greve estava terminando e que logo pousaria em Maceió o primeiro avião com destino a Natal, a companhia comunicou isso a todos, menos a José Emerenciano. Chegamos no aeroporto e fizemos então um protesto: “ou viajamos todos juntos, ou não viajava ninguém!” E, aí, tiveram de esperar que Emerenciano aparecesse.

MARCOS - Fale sobre seu ingresso na vida boêmia de Natal.

JOSÉ ALEXANDRE - Trabalhando no escritório do meu pai, na Praça Augusto Severo, eu ficava a poucos passos de distância da Confeitaria Delícia, onde o português Olívio mantinha um bar reservado. A confeitaria tinha sido fundada por Jacob Lamas e Amadeu Grande, em 1942, em plena guerra, quando a Ribeira ainda era o bairro chique de Natal. Na confeitaria se vendiam bombons e comestíveis finos, produtos importados, como sardinhas portuguesas, vinhos... O segundo dono dela foi Sinval Duarte Pereira, que, contra todos e contra tudo, teve a idéia de chamar Olívio Domingues da Silva para ser o gerente. Olívio era tido na cidade como um sujeito muito grosso. Ele era o caixa da Casa Machado e tratava todo mundo muito mal. A viúva Machado abastecia três quartas partes de Natal e Olívio não tinha nem tempo de conversar com ninguém, tanto era o movimento da firma. Ele fazia as contas manualmente e, em geral, errava nas contas, criando uma série de polêmicas com os fregueses. Mas, quando chegou na Confeitaria Delícia, ele se transformou. Se tornou amável, talvez por acreditar que aquela era a sua oportunidade. Sem que ninguém soubesse, ele tinha profundas mágoas da Casa Machado, porque ganhava muito pouco e saiu de lá sem nenhuma indenização. Sinval Duarte Pereira era um grande rapaz, uma grande inteligência, um homem de muitas idéias. Ele trabalhava com o pai, o livreiro Ismael Pereira, mas não tinha jeito para aquele negócio. É tanto que partiu para comprar a confeitaria, depois ingressou no campo hoteleiro com o Hotel Bela Vista, e, por fim, foi trabalhar com minérios, vendendo muita diatomita para o sul do país. Mas Sinval não tinha nenhuma vocação para o comércio de livros. Dos filhos do velho Ismael Pereira, ele era o que apresentava menor vocação para vendedor. Trancado, sisudo, ele não tinha a malemolência dos seus irmãos Wálter e Moacir, que eram muito alegres, expansivos. Sinval não nasceu para ser dono de livraria. Depois de seis anos como gerente da confeitaria, Olívio acabou comprando o negócio a Sinval. Olívio, como o fazem todos os portugueses donos de negócios de estivas, inventou de também fazer, nos fundos da Confeitaria, um barzinho . Eram três mesas com quatro cadeiras, escondidas por um reposteiro, pois naquele tempo só se bebia escondido. Em Natal era feio beber, mesmo que fosse uma simples cerveja; ao contrário de Recife, onde os bares serviam os fregueses nas calçadas... O bar de Olívio passou a ser freqüentado pelos grandes comerciantes de Natal: Amaro Mesquita, Osvaldo Medeiros... e figuras da boemia que iam lá, como Francisco Pignataro, o pessoal da Recebedoria de Rendas, da Delegacia Fiscal, dos Correios, da Alfândega... Havia até uma competição para ver quem era que bebia mais: se era o pessoal da Alfândega ou o da Recebedoria. Por intermédio de um amigo, que foi Eider Reis - filho do velho Enéias Reis -, nós descobrimos Olívio e passamos a freqüentá-lo.

TICIANO - Nós, quem? Quem era a sua turma?

JOSÉ ALEXANDRE - Eider Reis, José Guerra, Quinderé, Múcio Teixeira, Mozart Silva, Claudomiro Batista de Oliveira - Dozinho -, Heráclio Pires... Havia uma grande predominância de bancários. É tanto, que muita gente pensava até que eu também era do Banco do Brasil. Esse grupo fundou, na Confeitaria, o Gango Tetéu. Como nós freqüentávamos assiduamente a Confeitaria, e fazíamos muita despesa, Olívio engraçou-se da gente e começou a nos prestigiar. É tanto que, fundado o “ Gango”, botamos logo uma placa na geladeira do bar e no cofre, com os seguintes dizeres: “ Propriedade do Gango Tetéu S/A”. Olívio achava uma graça danada , porque passamos a ser os seus maiores clientes , embora muitas vezes à base do fiado. Com o atrelamento de Dozinho ao nosso grupo - passando a ser considerado o compositor do Gango Tetéu -, nós resolvemos fazer um bloco de carnaval. Compramos tamborins, reco-recos, pandeiros, e começamos a ensaiar músicas para o carnaval. Foi quando surgiu a idéia de, a exemplo do “Jardim da Infância” e dos “ Pingüins do Amor” - que eram outros blocos carnavalescos - , “assaltarmos” as casas dos nossos amigos e os fregueses de Olívio. O presidente do Gango Tetéu era uma figura muito engraçada - Heráclio Pires Júnior. Uma das regras que Heráclio ditava para o bloco era: “Sujar a casa do homem, beber comedidamente, e cantar o mais alto possível”. É tanto que, um dia, durante um assalto, ele pegou Einar Varela sem cantar e deu-lhe uma ordem em linguagem empolada: “Tenha a hombridade de cantar!” Pingüim respondeu que estava muito rouco. Heráclio então determinou: “Pelo menos fique abrindo a boca, para as pessoas da casa verem que você está satisfeito, pois só assim nos convidarão de novo, no próximo ano”. Outra regra baixada por Heráclio era: “ Pouco enxerimento com as moças! Converse mais com os mais velhos”. Nossa turma era formada por gente de elite, que sabia se comportar. E não faltavam convites.

TICIANO - Vocês depois fundaram uma sede para o Gango Tetéu...

JOSÉ ALEXANDRE - Fundamos o Clube Tetéu, na avenida Circular, que foi mantido por um ano e meio. Ficava ali vizinho a onde é hoje o Hotel dos Reis Magos.

TICIANO - Foi lá que aconteceu um famoso incidente com um político ilustre da cidade...

JOSÉ ALEXANDRE - O homem que tomou banho nu!... Ele deve a mim não terem virado o carro dele!

TICIANO - Conte essa história. Ele tomou mesmo banho nu na praia?

JOSÉ ALEXANDRE - Isso aconteceu mais ou menos às quatro e meia da manhã, quase no fim de uma festa que nós promovíamos no Clube Tetéu. Creio que ele fez aquilo sem espírito de maldade e sem nenhum propósito de escandalizar ninguém. Estávamos fazendo, naquele dia, a festa de inauguração do Clube, com a presença das melhores famílias da sociedade. Então, Jessé Freire, já quase de manhã, convidou Ailton Gazzaneo para tomar um banho. Um oficial do Exército, que era muito ligado ao Clube do Tetéu, mas que era neurótico de guerra, avistou os dois nus, já se encaminhando para o carro . Ele incitou a turma. Todo mundo puxando fogo achou que aquilo era um acinte às famílias presentes e partiu para a agressão. Quiseram virar o carro de Jessé e, tinha gente, falando até em linchá-los. Graças a minha ponderação, contornei tudo, mostrando ao pessoal que não era possível cometermos um crime pior do que eles tinham cometido. Graças a este meu gesto - embora eu nunca tenha precisado de Jessé para coisa nenhuma! - ele se tornou um grande amigo meu. Aquele fato teve um reflexo negativo muito grande para o Clube, pois a sociedade passou a boicotá-lo. As famílias deixaram de freqüentar o Tetéu com medo de que outras pessoas também partissem para imitar Jessé.

TICIANO - Fale agora sobre sua participação no jornalismo e no esporte natalense.

JOSÉ ALEXANDRE - Entrei no jornalismo da seguinte maneira: em 1954, circulava diariamente O Poti, que era o matutino “ Associado”. Lá trabalhavam grandes figuras humanas: Antônio Pinto era o secretário; Edilson Varela era o diretor; José Cavalcanti de Melo era o gerente... E havia figuras na redação como Ticiano Duarte, um certo britânico, Veríssimo de Melo, Ivanaldo Lopes, Nazareno Aguiar, João Meira Lima... Américo de Oliveira Costa e Edgar Barbosa escreviam os editoriais; Xavier Pinheiro era era o secretário-adjunto; Domício Ramalho era o repórter policial... Numa determinada noite, Antônio Pinto ou não gostou de uma matéria esportiva ou achou que estava faltando alguma coisa. O redator esportivo era Aluízio Menezes, um grande amigo meu. Com aquele seu jeito estabanado, Antônio Pinto mandou um contínuo do jornal acordar Aluízio para que viesse refazer a matéria. Acontece que na casa de Aluízio havia uma pessoa muito doente e o contínuo fez um barulho tão grande que acordou a rua inteira. Aluízio achou-se ofendido e pediu demissão. Dias depois, Odilon - meu irmão - encontrou-se com Edilson Varela e quando ele falou da saída de Aluízio do jornal, Odilon lhe perguntou: “Por que você não convida Alexandre para ficar no lugar dele? Ele é jornalista e gosta muito de escrever sobre esportes”. Nessa época, eu já era presidente da Federação Norte-riograndense de Basquetebol. Edilson me fez o convite, o que achei ótimo, pois sentia que, como jornalista, poderia dar uma ênfase maior aos esportes amadores, principalmente ao basquete. Naquele tempo, toda a cobertura era dada apenas ao futebol. Chamei, então, vários jornalistas para trabalharem comigo, como Raimundo Ubirajara de Macedo, José Procópio, Maurício Carrilho Barreto, Luís Arnaldo Câmara, que escrevia Remadas e braçadas... Convidei para ser colaborador do jornal a figura de Humberto Nesi, que escrevia a coluna Ora bolas duas vezes por semana. Na verdade, renovei o jornalismo esportivo, ao ampliar a cobertura para todas as modalidades de esportes e ao convidar os próprios desportistas para colaborarem no jornal. Eu tinha uma coluna diária que se tornou muito apreciada, com o título Dizem por aí... onde eu fazia um pouco de gozação. Na época, as figuras do esporte achavam a maior glória sair na minha coluna.

TICIANO - Fale sobre o trabalho na redação do jornal naquele tempo.

JOSÉ ALEXANDRE - A redação era dirigida por Antônio Pinto, um dos intelectuais que, juntamente com Edgar Barbosa, imerecidamente, acabaram ficando em segundo plano na literatura norte-riograndense. Edgar, porque se limitou, durante mais de dez anos, a ser o fazedor de discursos e de relatórios de uma certa figura que eu não quero dizer o nome; e Antônio Pinto porque, depois de ser diretor de A República, foi para o Rio de Janeiro, onde não teve a projeção devida - acabou sendo secretário de O Jornal, no qual escrevia uma coluna esportiva que nunca alcançou destaque. Antônio Pinto era uma figura gozadíssima! A redação de O Poti era ali na descida da Ribeira, num prédio sem nenhuma ventilação. O calor era insuportável. Assim, logo que ele chegava na redação, tirava o paletó, a gravata, a camisa, e ficava nu da cintura para cima. Foi assim que, durante uma noite, entrou de redação a dentro, e foi recebido, o embaixador da França no Brasil, com o agente consular em Natal. O homem ficou horrorizado ao ser recebido pelo secretário do jornal seminu... Eu digo que renovei o jornalismo esportivo porque, com a equipe que formei, e com os conhecimentos que tinha junto aos dirigentes de clubes, eles me confidenciavam coisas que somente eu noticiava, como furo de reportagem. Às vezes, eu chegava à noite no Grande Ponto, já depois do fechamento do jornal, quando, de repente, tomava conhecimento de um fato importante. Então, eu corria para o telefone e ligava para o jornal. Muitas vezes quem atendia era Ticiano. Aí, eu perguntava: “Ticiano, será que ainda dá para colocar uma manchetinha?” Por conta disso, me botaram o apelido de Manchetinha, que valeu durante muitos anos.

TICIANO - E que outras figuras da redação você recorda?

JOSÉ ALEXANDRE - Havia outra grande figura que era Domício Dantas Ramalho. Todos nós ganhávamos muito pouco e vivíamos pleiteando aumento de salário, sem êxito. Tenho impressão que, por falta de cadeiras - pois as instalações do jornal eram precaríssimas - no gabinete de Edilson Varela uma funcionária sempre se sentava no colo dele (Risos). Vários funcionários flagraram essa situação e, por coincidência, a cada um deles Edilson logo cuidava de dar um aumento. Por conta disso, quando a gente falava em salário, Domício ficava repetindo o tempo todo: “Eu só queria pegar! Eu só queria pegar!” Aí Edilson passava, escutava as palavras de Domício e o repreendia: “Seu Domício, o senhor se comporte e escreva suas matérias com o devido cuidado. E vamos acabar com essas pilhérias! (Risos).

TICIANO - Além de presidente da Federação de Basquete, o que você foi mais no meio esportivo?

JOSÉ ALEXANDRE - Fui presidente da Federação de Basquete e tive a felicidade de, na minha gestão, inaugurar o Ginásio Sylvio Pedroza. Fizemos então um torneio com as equipes locais - AABB, Bangu e Santa Cruz, e chamamos o Astréia, da Paraíba, e o Jet, de Pernambuco, que eram os times campeões daqueles Estados. E o fato é que vencemos esse torneio e aquilo nos causou grande entusiasmo, por acharmos que o nosso basquete estava muito evoluído. Foi aí que tivemos a idéia de participar do XXI Campeonato Brasileiro de Basquetebol que se realizaria em Belo horizonte. Fui agregado à delegação na qualidade de tesoureiro. No aeroporto, ao pagar uns excessos, o dinheiro acabou. Quando chegamos no Minas Tênis Clube, onde disputaríamos as nossas partidas , as grandes novidades eram as tabelas de vidro, que nós nunca tínhamos visto. Por causa disso, nossos atletas entraram na quadra muito nervosos. Nós não tínhamos nenhuma técnica, e acabamos perdendo as partidas e acabamos perdendo as partidas e fomos desclassificados. Mas a viagem foi extremamente proveitosa porque entre os nossos jogadores estava José Augusto, que assimilou tudo o que viu de novo, despertou para as técnicas modernas do jogo e ao voltar para Natal acabou se transformando num grande técnico, que revolucionou o nosso basquete. Eu voltei convencido de que nós só poderíamos aprender basquete se fizéssemos grandes temporadas com equipes de fora. E então, como presidente da Federação, me meti a convidar equipes do Ceará, de Pernambuco, da Bahia, do Rio de Janeiro... Foram promovidas vinte temporadas em dois anos. Eu tinha um acordo com Sylvio Pedroza: se as promoções dessem lucro, este seria da Federação; se dessem prejuízo, o Estado completava as despesas. Como desportista, ele nos dava uma ajuda valiosa. Certo dia, ele me mandou chamar com urgência ao Ginásio, que estava sendo visitado pelo então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek. Sylvio então virou-se para mim e perguntou: “José Alexandre, qual o clube mineiro que você gostaria de ver jogando aqui em Natal?” Eu respondi: “ O sexteto feminino de voleibol e o quinteto masculino de basquete do Minas Tênis Clube”. Juscelino na mesma hora prometeu que mandaria os dois times para uma temporada. Naquela época, além do basquete, o quente era o voleibol feminino. As preliminares das partidas de basquete eram sempre disputadas pelas moças do voleibol, que entravam sempre nervosas nas quadras porque estavam mostrando as coxas... Passados dois ou três meses daquela promessa, eu fiquei cobrando de Sylvio a vinda dos mineiros. Até que um belo dia chega um telegrama: “Delegação Minas Tênis Clube chegará a Natal próximo sábado”. Juscelino mandou a delegação num avião especial, com ordem para que não houvesse nenhuma despesa ao nosso encargo, nem mesmo a hospedagem. Assim, em retribuição, nós resolvemos oferecer ao pessoal um almoço típico na praia da Redinha, organizado pelo finado Zerôncio. Os mineiros quando viram a praia ficaram loucos: pareciam meninos, correndo para cima e para baixo! Resolvemos entäo fazer duas perfídias: a primeira, oferecer uma batida como se fosse refresco; e a segunda, organizar um passeio até Genipabu, para que eles ficassem muito queimados e sofressem as conseqüências na hora do jogo. Quando foi a noite, os mineiros estavam todos da cor de camarão. Não sei se por causa disso, ou se porque o time da AABB já estava num estágio de grande evidência técnica, nós vencemos a partida por um ponto. Na Redinha, tínhamos feito demonstrações sobre o nosso carnaval para que os mineiros vissem como se dançava o frevo, e na ocasião, levamos para lá confete e serpentina em quantidade. Era tanto confete que sobrou. À noite, quando Euclides Lira sentiu que o nosso time podia vencer o jogo, cuidou então de distribuir aquele confete com a assistência. E assim que a AABB venceu, a assistência inteira começou a jogar confete na quadra. O presidente da delegação mineira, que era um gentleman, dizia a mim: “ Dr. Alexandre, estou muito satisfeito com a recepção que os senhores nos estão oferecendo. Estamos radiantes com Natal. Só não perdôo são esses confetes. Os senhores tinham tanta certeza de que iam vencer o jogo que compraram um estoque! E aquele sol que o senhor dizia que não queimava, heim, Dr. Alexandre?! E aquele refresco que o senhor disse que até as moças bebiam?

MARCOS - Você também se envolveu com futebol de salão, não é isso ?

JOSÉ ALEXANDRE - Depois do basquete , enveredei pelo futebol de salão e fui fundador da Federação deste esporte aqui no Estado. Antes disso, Luiz G. M. Bezerra concebeu a idéia de fundarmos uma Associação de Cronistas Esportivos, reunindo todos os cronistas da cidade que até então viviam como gato e cachorro, quase que diariamente se descompondo uns aos outros pelos jornais e pelos microfones das rádios. Luiz G. M. Bezerra achava que aquilo era um absurdo, uma coisa que não existia em parte nenhuma e que era necessário mudar aquele comportamento. Foi assim que criamos a nossa Associação, a ACERN (Associação dos Cronistas Esportivos do RN). Mas continuaram a existir duas alas, a de Aluízio Menezes e a de Roberval Pinheiro, a quem João Machado chamava de “Robinho Fufu” ou seja, “ Robinho Fuxico”. Fundada a ACERN, um ano Aluísio era presidente e outro ano era eu, e nunca demos chance a Roberval, o que, no fim, verifiquei que foi uma grande injustiça. Depois que saí de “O POTI” para a “Tribuna do Norte” e lá passei a conviver com Roberval, foi quando descobri que ele era uma figura, um bom amigo e um excelente jornalista. Mas, antes, estávamos tão impregnados pela rivalidade que existia que nós tínhamos com ele uma certa prevenção. Como presidente da ACERN, resolvemos a cada ano promover um grande torneio em todas as modalidades esportivas. Basquete, voleibol, pesca, remo, caça-submarina e mesmo futebol. E foi aí que me voltei para o futebol-mirim, esporte que era praticado no América Futebol Clube pela alta sociedade natalense. Verifiquei então que aquilo era loucura. O pessoal jogava segundo uma regra inventada aqui mesmo. A trave era tão pequena que se um sujeito mais gordo fosse ser o goleiro, não tinha perigo da bola entrar. Foi aí que eu importei regras do futebol-de-salão e convenci os clubes a tomarem parte num campeonato promovido pela ACERN. Inscreveram-se 15 equipes. Foi um sucesso tão grande que antes do fim do torneio, nós fundamos a Federação Norte-Riograndense de Futebol de Salão, da qual fui o primeiro presidente. A exemplo do basquete, fizemos grandes temporadas trazendo a Natal os campeões dos Estados vizinhos.

TICIANO - Por que você se afastou das atividades esportivas?

JOSÉ ALEXANDRE - Eu começava a verificar que aquilo estava prejudicando as minhas atividades comerciais. Estava deixando o meu escritório em terceiro plano. Papai não dizia nada, mas eu notava que para fazer esporte como eu fazia, e para escrever sobre esportes, eu praticamente já não podia comparecer ao meu escritório. Muitas vezes, tive que não aceitar mandatos, tive que renunciar às reeleições, e terminei até deixando a imprensa diária, embora continuasse colaborando na “ Tribuna”, n”A República”, no “Correio do Povo” e até no “Jornal de Natal”, de Djalma Maranhão.

TICIANO - Você conviveu com Djalma Maranhão?

JOSÉ ALEXANDRE - Eu o conheci através do esporte. Ele me incentivava muito naquelas temporadas que eu promovia e em tom de brincadeira dizia que eu era doido em topar aquelas paradas. Uma vez, quando Djalma era diretor da Rádio Nordeste, os “Associados” tinham apresentado uma candidatura a rainha do carnaval, que, se não me engano, era filha de Rui Paiva. E o candidato a Rei Momo era Luizinho Doublechen, que era um boêmio e personagem muito engraçada, mas um sujeito inteiramente inadequado para ser Rei Momo. Quando ficava puxando fogo, ele dizia inconveniências, dormia, mijava nas calças... Mas Djalma Maranhão, com aquele seu espírito irreverente, dizia que era preciso combater os candidatos da plutocracia. Assim, no fim de semana, ele convidou a nós jornalistas para explicar porque mantinha a candidatura de Luizinho, que era combatida pelo pessoal do “Diário”. Depois de muita batida e de muita cerveja, Djalma ligou o telefone da Confeitaria Cisne para a Rádio Nordeste e colocou no ar uma série de entrevistas com os jornalistas ali presentes. E nós, jornalistas “Associados”, tecíamos os maiores elogios ao candidato apoiado por Djalma. O primeiro da turma que chegou à redação foi você, Ticiano, e Edilson foi logo dizendo: “Amanhã não vai sair jornal porque a redação está embriagada no Bar Cisne, fazendo campanha contra os “associados”.
Se eles não chegarem, segunda-feira eu dou as contas de todo o mundo.” Mas nós fomos chegando, um a um, e o jornal saiu. Edilson estava com uma cara muito feia, mas nós não ligávamos para isso pois éramos todos muito jovens e, na verdade, fazíamos jornalismo quase que por diletantismo.

MARCOS - Você também foi um dos responsáveis por uma fase áurea do Lions Clube em Natal, quando eram promovidas as famosas quermesses da Lagoa Manoel Felipe. Fale sobre essa fase de sua vida.

JOSÉ ALEXANDRE - Mas antes de entrar nesse assunto, eu gostaria de dizer que encerrei minha presença como dirigente esportivo prestando um serviço a Natal. No final do seu governo, Dinarte Mariz - como todo político que está em campanha - chamava as diversas entidades classistas para perguntar quais eram as necessidades de cada uma. E procurava atendê-las, contanto que seus dirigentes se comprometessem a apoiá-lo. Quando ele reuniu os desportistas para saber quais eram as nossas reivindicações, nós respondemos: “ Governador, nós queremos um estádio”. Ele então se comprometeu: “ Eu prometo a vocês fazer um estádio”. Como já estava em fim de mandato, nós sabíamos que ele não tinha condições de realizar aquela obra. Decidimos então pegar o homem na palavra e conseguir dele pelo menos um bom terreno para o estádio. Foi quando escolhemos este terreno onde hoje é o Castelão. Nossa comissão era composta por Salatiel Silva, então presidente da Federação, Aluísio Menezes, eu, Antônio Soares Filho, João Machado, e Moacir Gomes da Costa. Quando nós escolhemos aquele terreno, no dia seguinte um jornal de oposição nos brindou com um editorial nos chamando de lunáticos, malucos, imbecis, e outros adjetivos desse quilate, porque, em vez de fazermos um estádio para Natal, nós íamos fazer um estádio para Parnamirim. O pessoal não tinha a menor visão de futuro... Conseguimos aquele terreno mandando Moacir Gomes ao Rio de Janeiro conversar com o velho Saturnino de Brito, que era então o dono da Companhia de Saneamento de Natal, a quem pertencia o terreno. O Estado se propunha a permuta de terrenos com a Companhia, com aquele, mas a direção local era contra. Saturnino encantou-se com Moacir e reviu nele, o Saturnino de Brito da juventude. Graças a isso, conseguimos sua concordância e o terreno foi doado a Federação.

TICIANO - A bem da verdade, você que acompanhou a história desde o começo, diga-nos quais foram as figuras da cidade que realmente contribuíram para que Natal tivesse aquele estádio?

JOSÉ ALEXANDRE - Primeiro, a gente tem que citar Dinarte Mariz, que fez a doação do terreno à então Federação Norte-riograndense de Desportos. Coincidentemente, no último dia de governo de Dinarte, encerra-se também o mandato de Salatiel à frente da Federação. Salatiel então, sem consultar ninguém, baixou um ato onde dizia: “Denominar-se-á Dinarte de Medeiros Mariz o estádio a ser construído em Lagoa Nova”. Vocês hão de convir que Aluísio Alves, naquele clima de radicalismo que existia, jamais poderia contribuir para que o estádio fosse construído e servisse para homenagear seu adversário. Depois de Dinarte, nós tivemos a figura de Djalma Maranhão, que tinha em seus planos à frente da Prefeitura de Natal, construir o estádio. Mas só na gestão de Agnelo Alves foi que se partiu objetivamente para realizar a obra. Foi então criada a FENAT ( Fundação de Esportes de Natal ), que encontrou o terreno parcialmente cercado por Djalma Maranhão, que também tinha mandado construir umas salas que serviram como canteiro de obra. Assim, devemos a construção principalmente a Agnelo Alves, que era o prefeito; a Ernani Silveira, que foi o primeiro presidente da FENAT; e, posteriormente, ao prefeito Ubiratan Galvão. Na fase de Agnelo, nós construímos as gerais e as intermediárias, em regime de administração direta. Eu, como diretor-adiministrativo, Ernani como presidente da FENAT, Rossini Azevedo como diretor-financeiro, fizemos um pacto pelo qual nenhum documento referente a despesas deixaria de passar sem a assinatura dos três. Levamos muitas cantadas, mas nenhum de nós cedeu. É tanto que, quando Agnelo foi cassado e foi criada a comissão de inquérito sobre o Castelão, a própria comissão reconheceu a lisura com que a FENAT trabalhou. O estádio acabou sendo inaugurado pelo governador Cortez Pereira que também era um entusiasta da obra, e pelo prefeito Jorge Ivan, mas, sem dúvida, o grande trabalho foi de Agnelo Alves e de Ubiratan Galvão. Ainda coube a mim organizar toda a parte administrativa do estádio. Organizei as portarias, as bilheterias... Mas depois verifiquei que aquele trabalho estava ficando pesado demais, pois ao meio-dia já estava tomando conta do estádio. Isso foi na época do primeiro Campeonato Brasileiro, quando passaram por Natal as maiores equipes de futebol do Brasil. Quase sempre o estádio lotava. Era um trabalho incrível ! Lembro ainda que na condição de diretor da FENAT evitei que fosse consumada uma grande injustiça. Na época da construção do estádio, nós vendemos cadeiras cativas a Cr$ 1.500 cada, para serem pagas em 30 prestações de Cr$ 50. Foi quando Agnelo Alves comprou cinco cadeiras: uma para ele, outra para a mulher e as demais para os filhos. Cassado e na “lona”, ele atrasou o pagamento das prestações. No dia da inauguração do estádio, a administração de então não convidou Ernani Silveira nem Agnelo. Eu então fui autor de uma proposta: Agnelo tinha pago diversas prestações das suas cinco cadeiras, que, se somados os valores dessas prestações, daria para quitar duas. Por que então não considerar pagas duas das cinco cadeiras que ele havia comprado? Depois de uma luta, a proposta foi aceita e Agnelo não perdeu de todo o que tinha pago. É provável até que ele não saiba disso, mas fui eu o responsável por ele ter ficado com duas cadeiras cativas no estádio, hoje impropriamente chamado “Castelo Branco”.

MARCOS - Nesta sexta-feira, data inclusive em que você completa os seus 60 anos, você está lançando um livro onde conta histórias do bairro da Ribeira e fala de personagens boêmios que freqüentaram a Confeitaria Delícia. Faça agora um resumo do que é seu livro.

JOSÉ ALEXANDRE - Durante muitos anos, freqüentei a Delícia e ouvi as histórias daqueles boêmios. Em geral, se dá um mau conceito ao boêmio, mas, no meu entender, o boêmio é uma pessoa bem conceituada, trabalhadora e que freqüenta os grandes ambientes. Fazer a noite em Natal ou qualquer outra grande cidade não é fácil. É preciso ser inteligente, saber conversar, dialogar. O elemento pernicioso não é boêmio e sim o cachaceiro, candidato potencial a uma cirrose hepática. O boêmio se cuida, alimenta-se bem, freqüenta ambientes selecionados. A Confeitaria Delícia era um dos lugares de bom nível, freqüentado por figuras como Cascudo, Zé Areia, maestro Cicco, general Leitão, Paulo Pires, o inglês Belinho e figuras jovens que eu também retrato em meu livro, como Heider Reis - que era líder da nossa turma -, como Mozart Silva, Ivan Arruda Câmara, Moisés Villar de Melo - que é um jovem de 80 anos -, como Raimundo Gomes da Costa, além de homens como Roberto Freire, Luiz de Barros, Wilson Maranhão, Limarujo e vários outros, que eu não retratei neste, mas vou retratar num outro livro para o qual já estou juntando material. Depois que comecei a publicar em DOIS PONTOS uma série de histórias e depois da homenagem que fizemos aos 77 anos de Olívio e seus 48 como barman, isso teve uma repercussão tão grande que as pessoas passaram a me parar no meio da rua para que eu contasse mais alguma coisa sobre como era a boemia naqueles velhos tempos. O livro se divide em duas partes: na primeira, eu falo da Confeitaria mostrando a precariedade que ela apresentava no começo, quando nem mictório possuía. Urinava-se numa lata que, quando estava cheia, Olívio ou um guarachué ia derramar no meio-fio da calçada. Na segunda fase, eu retrato 21 tipos, entre os boêmios tradicionais dos anos 40 a 60 .

MARCOS - Mas eu lhe perguntei sobre sua passagem pelo Lions e você não respondeu...

JOSÉ ALEXANDRE - Bom... Fui convidado por um homem de escol que a cidade esqueceu, chamado Evaldo de Lira Maia - a quem Natal está a dever um pleito de gratidão, pois foi ele quem primeiro falou em turismo por aqui. Foi pelas mãos dele, que ingressei no Lions Centro, clube do qual cheguei a ser presidente. Isso foi na fase das famosas quermesses, que eram festas fabulosas. Com parques de diversões, barracas, danças... Como presidente do Lions Centro, eu fundei mais dois clubes: o Natal-Norte - ao qual hoje pertenço, e o Lions Clube de Açu.

TICIANO - Você também teve uma ação destacada na Maçonaria, onde chegou a grão-mestre adjunto...

JOSÉ ALEXANDRE - Passei por uma fase muito difícil em minha vida. Foi quando Castelo Branco, o ditador, numa briga entre os despachantes de Santos e as casas comissárias de Santos, acabou com a privatização dos despachantes em todo país. Nos grandes centros, isso não teve nenhum efeito, mas aqui em Natal foi terrível. Daí em diante, os próprios comitentes resolveram despachar por conta própria suas mercadorias. Minha profissão praticamente perdeu a finalidade e eu entrei numa fase de dificuldades financeiras. Foi assim que resolvi me afastar de todas as atividades que eu considerava supérfluas. Deixei de pagar as mensalidades dos clubes sociais; deixei de ir a festas; afastei-me do Lions... Então, convidado por Armando de Lima Fagundes, ingressei na Loja Maçônica Bartolomeu Fagundes. Entrei sem muito entusiasmo, confesso. Mas eu sabia que meu pai tinha sido maçon, que meu avô e todos os meus tios tinham sido maçons... Convocado por Armando, ajudei-o quando ele foi eleito grão-mestre, primeiro como grande-secretário de Administração e depois como grão-mestre adjunto. Fiquei durante sete anos na administração geral do hoje Grande Oriente Independente do Estado do Rio Grande do Norte e voltei para a planície e hoje sou guarda-de-leis da Bartolomeu Fagundes.

MARCOS - Nessa fase difícil de sua vida, alguém lhe ajudou?

JOSÉ ALEXANDRE - Um homem chamado Firmino de Moura. Sabedor de minha precária situação, ele, num gesto de espadachim, levou-me a presença de José Daniel Diniz , então Secretário da Fazenda do Monsenhor Walfredo Gurgel, e lá chegando, falou: “Zé, quero que você me demita do cargo de Fiscal de Rendas e nomeie no meu lugar, o gordo Alex”. Zé Daniel , que tinha sido atleta no meu tempo de presidente da FNFS, admirou-se de como eu me encontrava, pois julgava-me rico. E prometeu dar um jeito. Dias depois, estava nomeado para o I.P.E. (Instituto de Previdência do Estado) como diretor de processamento e onde terminei como procurador, graças a este grande governador que o povo vem reabilitando, após tremenda campanha difamatória contra ele: Cortez Pereira.

MARCOS - Hoje, depois de ter-se aposentado da Procuradoria do I.P.E., você se dedica ao magistério superior. Conforme você nos disse, depois de lançar este primeiro livro, você já começa a pensar em outros. Fale sobre seus planos futuros.

JOSÉ ALEXANDRE - Este não é o primeiro livro que eu escrevo. Anos atrás, escrevi um livro maçônico denominado “O Maçom Esclarecido”, que teve ótima repercussão em todo país. Basta dizer que já vendi dele mais de três mil exemplares. Mas trata-se de um livro restrito às Lojas maçônicas, senão poderia ter tido uma tiragem muito maior. Ainda hoje, quase que diariamente recebo cartas de irmãos maçônicos me pedindo a remessa de exemplares e perguntando como fazer para me remeter o cheque correspondente. Foi um livro que eu mesmo financiei e que tive alegria em escrever. Pretendo continuar escrevendo. Desde 1980 estou na Universidade como professor do Departamento de Educação Física, na disciplina “Administração e Legislação dos Desportos”. Hoje sou assessor cultural do Núcleo de Arte e Cultura, na função de coordenador do Laboratório de Criatividade, ao qual desejo dar um grande impulso ao lado de Tarcísio Gurgel, de Luís Carlos Guimarães e de Franco Jasiello. Dependendo da repercussão deste livro que estou lançando hoje, quero continuar escrevendo!
*5 de maio de 1985

DEPOIMENTO AO JORNAL DOIS PONTOS
DE 3 A 9 DE MAIO DE 1985

por Alma do Beco | 7:50 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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Praieira
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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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