Na manhã seguinte, as três naus portuguesas levantaram âncoras e partiram rumo sul, deixando em desassossego aquela gente primitiva.
Na memória dos embarcados, a cena degradante da comilança à beira-mar, voraz, terrivelmente bárbara. Os índios, com aquilo, mostraram aos navegantes lusitanos que defenderiam seu chão, não se entregariam sem luta. Mas no coração de cada um deles, saltava a certeza de que uma era de paz estava finda. Nunca mais ficariam livres daqueles homens pálidos, saídos do mar em canoas gigantescas.
O cacique Potiassu ordenou a três grupos guerreiros que seguissem as canoas grandes até onde as perdessem de vista. Seus ocupantes poderiam aportar em outra praia e voltar por terra para surpreendê-los. Queria que erguessem acampamento em pontos estratégicos do litoral, até bem perto de terras tapuias, onde deveriam permanecer até que a segunda lua grande iluminasse os céus escuros da noite de sua aldeia. Qualquer sinal de que estivessem de volta, imediatamente um índio corredor deveria trazer a notícia. Ao fim do prazo, outro grupo iria substitui-los na vigília. Cuidou de ordenar também a outros dois grupos que rumassem para o norte, imbuídos de mesma preocupação, já que o inimigo podia sumir no horizonte e surpreendê-los fazendo a volta.
Quanto ao homem da canoa grande que ficara em terra, não deveriam molestá-lo. Queria que descobrissem o seu paradeiro e passassem a observá-lo em suas atitudes. Aprender com ele talvez fosse valioso para a segurança de todos. Por isso, destacou dois grupos para procurá-lo, um rumo sul, outro rumo norte. Homem da Canoa Grande não seria louco de adentrar a mata, sabia. Se ousasse, com certeza seria devorado por alguma onça faminta, das muitas que rondavam aquelas cercanias.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes tinha 22 anos e fora bom aluno de escola naval. Quando as notícias da descoberta das Índias, trazidas por Cristóvão Colombo, anos antes, correram mundo e depois foram confirmadas como um continente desconhecido, os olhos dos adolescentes voltaram-se para os encantamentos desse Novo Mundo, e João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes não fez diferente. Seria marinheiro. Iria ver de perto essas terras tão famosas, faladas de boca em boca, talvez a Atlântida, assunto diário de todas as conversas das cidades européias. Quando do embarque, dois meses antes, já sabia tratar-se das Índias Ocidentais, um continente desconhecido, misterioso, onde não havia cidades, só aldeias de silvícolas, seres primitivos, de cultura rudimentar.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, ainda fascinado pela beleza das praias, tomado de uma curiosidade que parecia fazê-lo em perplexidade, olhava fixo aquele marco de mármore branco, brasões lusitanos a conferir ao Reino de Portugal a posse daquelas terras, a areia fininha, empurrada pelo vento, batendo-lhe nas pernas, nenhuma saudade dos tempos de civilização. Aquele, sim, era um mundo novo, e era ali que ficaria para explorá-lo, conhecê-lo, vasculhar os seus mistérios, viver verdadeira aventura.
Ainda escondido em sua trincheira, ele acompanhou a retirada da esquadra. Logo que anoiteceu, pegou seus apetrechos, roupas, armas e desapareceu na praia, protegido pela escuridão. Aprendera as regras de sobrevivência dos náufragos e saberia onde e como encontrar comida, enfrentar os perigos da noite à beira-mar e também na floresta. Em sua caminhada, sorria satisfeito, certo de que um dia voltaria às terras de Portugal, rico e famoso, pois que seria o primeiro habitante europeu daquele mundo novo.
Voltaria e teria uma vida para contar, uma história que deixaria fascinada toda a gente da Europa.