Os índios Potiguares espreitavam as caravelas portuguesas desde que elas se apresentaram na enseada. Nenhum movimento daqueles seres estranhos, parecidos vir de outro mundo, passou despercebido aos olhos dos comedores de camarão, exceto aos do Homem da Canoa Grande, desaparecido na noite.
Quanto a ele, melhor observá-lo, evitando envolvimento. Aquilo poderia ser perigoso, ensinava a sabedoria e a prudência do velho chefe, que há muitas luas, já não se recordava quantas, havia visto algumas embarcações como aquelas cruzarem horizontes de suas praias.
Aquelas canoas estranhas pareciam trazer maus presságios. Potiassu parecia até antever o conflito, e, por isso, bem antes daqueles acontecimentos, convocou seu povo, todos ao centro da aldeia, a lua cheia a iluminá-los, a anunciar o perigo: as naves passaram ao largo, bonitas, misteriosas, iluminadas pelo luar, mas poderiam trazer perigo. Seus ocupantes, com certeza, não eram como eles. Os problemas viriam. Mais dia, menos dia. E naquela semana seus presságios se confirmaram: em tudo, aqueles seres eram diferentes dos seus, nas embarcações, nas vestes, nos armamentos que cuspiam fogo e grandes bolas de ferro.
- O homem que não voltou à canoa grande, deixem-no em paz, sob vigia permanente. Devemos saber a que veio, disse-o no seu idioma, o Tupi, e seguiu para a praia onde ficou a examinar a pedra deixada pelos homens das grandes canoas, intrigado com aqueles símbolos gravados em relevo.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes agora já não tinha o enorme nome: era Homem da Canoa Grande. Ele caminhou despreocupado pelas praias, certo de que a escuridão o protegeria. Havia visto as caravelas sumirem no horizonte, pequeninas, e continuou sua caminhada também com destino sul. De longe, escondidos pela vegetação, os nativos já o acompanhavam silenciosamente, curiosos, sem mais temer aquele homem sozinho.
Homem da Canoa Grande dormiu, naquela noite, em grutas formadas por arrecifes à beira-mar, e só acordou pelas 8:30h da manhã bem quente do dia seguinte, quando vislumbrou com mais sossego a imensidão daquelas águas verdes, serenas, bem límpidas e mornas. Ele tirou os apetrechos do corpo, largou as botas sobre os arrecifes e correu para o mar. Queria experimentá-lo, senti-lo, saber o gosto do mergulho naquelas águas. Deixou-se ficar despreocupado por bom tempo. Pensava sobre a vida passada, devaneava, como se esquecido de sua nova realidade: só, naquele mundo imenso, desconhecido.
Já não olhava a paisagem, olhava para dentro de si e lembrava o passado, a pobreza que o obrigara à infância de tantas privações na cidade do Porto. O trinado de três parelhas de periquitos verdadeiros quebrou o silêncio da manhã. Homem da Canoa Grande recordou que estava na Terra dos Papagaios, acompanhou o vôo alto das aves rumo ao interior da terra e voltou-se para aquela que seria a sua paisagem pelo resto da vida. Iria construir cabana e começaria, aos poucos, a investigar o lugar. Voltou aos arrecifes, pegou suas coisas, dependurou as botas no pescoço e continuou caminhada. Precisava encontrar lugar onde tivesse água doce para ali estabelecer-se, depois caçar, pescar, conhecer frutos comestíveis, as raízes, viver sua solidão, sua aventura, caçar tesouros.
Caminhou por duas horas, havendo visto córregos a desaguar no Atlântico, lagoas próximas às praias, mas fixou-se num ponto central de uma grande enseada onde um rio de águas cristalinas chegava ao mar em boa corrente de desembocadura, de cinco, seis metros de largura. Muita água. Ali ficaria, à margem direita, quinze metros além da praia, cinco metros da margem do rio, em terreno um pouco elevado.
A vegetação se fazia menos rala, mais graúda mesmo próxima ao litoral arenoso, aqui e ali aparecendo em maior concentração, quase como na mata além do litoral, porém não ousou experimentar frutos desconhecidos, só aquele amarelinho, doce, que depois viria a saber chamar-se cambuí. Melhor seria aprender com as aves e animais. Deitou à sombra de um cajueiro e adormeceu, despreocupado, feliz com sua atitude, maravilhado em estar naquelas terras.
Os guerreiros do cacique Potiassu continuavam a observar o visitante. Nenhum passo do Homem da Canoa Grande passava agora despercebido dos Potiguares, índios comedores de camarão, a habitar grande parte daquela costa nordeste. Noticiado, o próprio Potiassu ia sempre a frente da indiada, trabalho melindroso, correrias e rastejamento por dunas, vencendo espaços em mata virgem, cheia de galhos, cipós, muitos de consistência difícil de ser vencida.
- Será aqui a minha primeira morada, disse Homem da Canoa Grande para si mesmo, enquanto estudava o terreno em volta, certificando-se da existência de árvores com troncos apropriados a construção do seu primeiro lar. Cuidou de limpar o chão que dali por diante seria seu, pelo menos enquanto quisesse, pensava, sem aperceber-se de que os índios o espiavam, cabendo a eles o destino do pequeno homem da canoa grande, ali, tão só!
Eduardo Alexandre