Chacal
...TENDO CHACAL COMO EPÍGRAFE
Nessa vida dedicada à poesia, tive alguns xamãs e muitos amigos. Como guias, cito dois: Oswald de Andrade, meu querido antropófago, que me ensinou “a ser simples como um largo de igreja” ou “descobrir que a Poesia é a descoberta das coisas que nunca vi” ou “a contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. Comecei a escrever tal e qual o mestre. Poemas piada, instantâneos kodak. Oswald caiu nas minhas, pelas mãos de Charles Peixoto. Éramos poetas aprendizes, amigos da Escola de Comunicação (ECO). Era 1970 / 71.
Depois em 73 em Londres, tive a segunda epifania. Vi Allen Ginsberg, num Festival Internacional de Poesia, no Queen Elizabeth Hall. Ginsberg, diferente de todos os demais convidados, falava, uivava seus textos. Tirava uma sanfona do bolso e se acompanhava num blues, num salmo. Espetacular. Um Dylan devasso. Era aquela dicção que eu queria para meus poemas.
Em 30 de outubro de 75, num evento multimídia na Livraria Muro, começamos a falar poesia publicamente. Foi como se outra camada do poema se revelasse. A palavra falada em meio à galera, com o corpo em movimento, o coração pulsando em tempo real. Era no boca a boca, no corpo a corpo que a nova poesia era escrita. Era muito bom demais. Nossos ídolos eram cantores de rock, de samba. Gente de palco. E nós poetas ali, naquele dia 30 de outubro numa galeria em Ipanema, com todo o suporte visual e espiritual da Nuvem Cigana, entrávamos para o time. Só que em vez de cantar, vociferávamos suavemente nossos textos, nossa alma. Vida longa à poesia que represente onda, choque, libertação.
Flui.
Chacal
In http://chacalog.zip.net/
O poeta desfia e desfaz a linguagem do poder. Ele nos entrega, cru e nu, o veio nervoso e exposto da linguagem que toca no invisível ponto onde emoção e razão se abraçam, permitindo que o código íntimo da nossa humanicidade se revele – e ensine, desvele, ilumine.
A poesia contemporânea serve mais do que nunca à linguagem do fascismo corporativista, cheio de meias e duplas palavras, cômodo restolho e repouso de mentes conformistas e conformadas. Linguagem feita de escombros e esqueletos apodrecidos, código morto como a linguagem de um Ocidente prostituído até a alma em nome da ganância, do petróleo, da guerra e do medo.
Quando Gurgel lançou, há mais de trinta anos, o seu primeiro trabalho (Pulsações), foi como se o Mar Vermelho se abrisse deixando passar um forte feixe de assombrosas iluminações. Tal qual Rimbaud, que, duzentos anos antes, desmantelara as platonices dos simbolistas, românticos e tantos outros bajuladores dos governos e das sociedades que subservientemente lambuzavam com sentenças cheirando a morte, mofo e indolência.
Hoje, em plena era da nova Pré-Historia fascista, antevista por Pasolini, Battaille e Barthes, leio com emoção o novo trabalho daquele a quem sempre considerei e considero a voz mais importante da poesia do meu século. “Apaixonada Poesia Louca” (Edições Fundação José Augusto, 2002) nos dá a voz veemente, vibrante e tranqüila de um poeta para quem ‘poetizar’ é ser são um só e o mesmo.
Thomas Merton nos alertou há quase meio século para a importância do poeta, do verdadeiro poeta, como o único capaz de sentir e reagir contra o que ele chamou de “doença fascista da linguagem do Ocidente”, a qual, desde a formação do Sacro Império Romano Germânico, infectou com duplicidade e mentiras o universo do dizer desse Ocidente. O poeta, o verdadeiro poeta, seria aquele que, mais do que antena de sua raça (a raça poética), seria o verdadeiro guerreiro do conhecimento estético, o homem estético de Schelling, o qual, em seu trabalho quase monástico de contemplação ativa do mundo, dar-nos-ia as boas palavras, as palavras reais vinculadas a uma profunda interação/integração entre homem e mundo.
Gurgel sempre foi esse tipo de guerreiro. Sempre foi o nosso poeta “maior”. Este livro mais recente que agora leio prova e comprova a assertiva de Merton.
Como o não-dizer do Vaygharava tântrico, ou o Swastiasta védico, o texto de Carlos continua simples em sua enigmaticidade. Palavra tão simples, tão cristalina, que o mistério daquela dimensão vertical (Maritain) da existência nos toma de assalto por uma pura obra de circunstância do belo. Mas não o belo dos poetas de fim de semana, os quais usam artifícios lingüísticos para incensar os próprios egos e se atrevem a chamá-los de poesia. Não: a simplicidade (e complexidade) do signo gurgeliano carrega uma vertente ontológica irredutível a formulações. Cristal de lua.
“Incólume
Como picolé ao sol
Os pecados têm vida longa
Eles se sustentam
Ao redor de nossos sonhos juvenis” (pg. 25)
Quando Bataille nos lembrou (há quase um século) que a transgressão é o caminho mais óbvio na luta contra a ignorância do nosso trágico Ocidente, ele poderia muito bem ter utilizado como exemplo esse texto de Carlos:
“Brincar com fogo
é como ajuizar pecados mortais” (pg. 35)
Mas o poeta, cuja poesis consolida nesse novo opus uma serenidade antevista em seus primeiros trabalhos, não se acomoda na firmeza e consistência de sua artesania incomparável: ele continua trabalhando e esfoliando verbo e dizer, escavando e espremendo signo e significado, torcendo-o e torturando-o, porque sabe que nossa linguagem ocidental está prenhe de toda uma contextura fascista, opressora, negativa e negadora de si e do homem que a utiliza. O verdadeiro poeta, como Carlos, jamais consentirá com esse processo.
“Burros gemem no meio da noite
No meio da cidade do meio da noite
Burros gemem no meio da cidade
No meio dos burros a cidade geme
No meio da cidade no meio da noite
A cidade geme no meio dos burros” (pág. 96)
Ao parodiar uma forma ‘escritural’ (iâmbico-pentamétrica que atrasou a poesia do ocidente em mais de 100 anos e foi salva no século passado por Eliot e Pound), Carlos se dá ao luxo de ‘desmantelar’ a estrutura sem propor nada mais que a própria transgressão de seu intento trans-(não ‘meta’)-lingüístico. Considero o poema acima como um dos mais importantes momentos da poesia de nosso tempo. Lembrando Bataille mais uma vez, Gurgel nos leva a contemplar ativamente o fato lingüístico através do puro olhar da frase provocante, insidiante, transgressora.
Não me admira o fato de Carlos jamais ter recebido o reconhecimento nacional e internacional que merece. Natal sempre foi avessa e cruel com seus artistas, justificando aquela frase crítica de que ninguém é profeta em sua própria terra. Mas me irrita o fato da cidade (que, ao que parece, dá mais valor a uma centena de estrangeiros e mafiosos pseudo-milionários do que aos seus poetas, pintores e músicos - qual o justo reconhecimento que Eduardo Alexandre de Amorim Garcia teve pela ousadia transgressora da Galeria do Povo?) ainda não ter atentado para o fato de ter em seu meio um “inventor” de formulações poéticas inigualáveis, que aos 13 anos de idade antecedia movimentos poéticos que o sul do pais (via Chacal, Ronaldo Bastos, Chico Alvim e tantos outros cariocas hoje em dia louvados em todo o pais como ‘inovadores’) só iria reconhecer no final dos anos 70. Isso me irrita, pois mais uma vez prova o que Mário de Andrade já dizia a Peregrino Junior em 1929, entre um uísque e outro, na Rua do Ouvidor: ‘Junior, o que estraga esse pais não é a cachaça, mas a burrice”.
Na era da globalização da estupidez e da internacionalização fascista do medo, na era da linguagem ideologizada e ideologizante do medíocre e do superficial, a poesia de Carlos espalha uma sanidade que o mundo só conheceu com Rimbaud, Lautreamont, Bataille , Pasolini e Barthes. Uma sanidade que nos dá o visível da existência através do não-visivel do sentido e do significado. Fio de Ariadne reconstruído com a vida vivida por e para a disponibilidade poética, labirinto de sensações e sentimentos que só um poeta maior pode ser capaz de construir e navegar serenamente.
“O sol quando se Poe
Amanhece cedo
Depois
Quando vem a gritaria do mundo
Ele se esconde” (pg. 97)
Marcílio Farias
FASCISTA POR OBRIGAR A DIZER
Beleza de artigo, de resgate, de desabafo.
É compreensível a irritação do articulista, porque ele demonstra conhecer não só a obra, mas a práxis de Carlos Gurgel e de Eduardo Alexandre, transgressores ainda vivinhos da silva entre nós. Inventores, na acepção poundiana do termo.
Mas, meu caro Dunga, digo de todo coração, meu velho: nada podemos fazer. E nem sei se devemos, de fato, fazer alguma coisa. Se se cabe fazer alguma coisa. Na minha opinião, o artista cumpriu o seu papel ao criar. A urbe não o quer, não o aceita, não está preparada? Então, Srª Urbe, f***-se!
O autor toca no tema "fascismo"; por coincidência, motivo de chiliques autoritários alhures, noutras plagas.
Fascismo, sim. O fascismo ocidental da língua que, no pensamento de Barthes, e citando de oitiva, "a língua não é nem progressita e nem reacionária; ela é isso: fascista . É fascista não por impedir de dizer, mas por obrigar a dizer."
E, como ninguém manda na boca de Gurgel, e, como ninguém manda na boca e nas mãos de Eduardo, abaixo os fascistas da linguagem!
Antoniel Campos