Dona Odete
O Beco da Lama, que é pai de todos os becos, tem uma mãe que há 28 anos o alimenta. De pirão, sarapatel, peixe no coco, cuscuz, macaxeira, feijão verde, e também de música e poesia, apesar de não cantar, não tocar violão nem saber o que é um verso.
É ela que todo dia, cedinho, abre seu pequeno estabelecimento de porta única, três metros, se muito, de frente, quatro metros, idem, de fundo.
Uma cozinha apertada, um banheiro que mal cabe uma alma.
Mas é ela quem está ali, a receber quem chega, com a fome que estiver.
A galinha caipira cheira, levando paladares de sonhos pelas ruas maiores da cidade, mas ela, pequenina, nem se dá conta do manjar que prepara. É como se nada fizesse. Como se aquilo apenas fosse mais um dos tantos pratos preparados vida a fora, a saciar bocas muitas vezes ingratas, estômagos vazios muitas vezes também de ternura e agradecimento.
Dona Odete é mãe do Beco por merecimento porque o tem como filho. Adotivo, é verdade. Mas um filho que viu crescer e, como toda boa mãe, esperou vê-lo melhorar de vida, sair da lama primeva, tornar-se saneado e querido para ser alma da cidade.
O Beco ainda é mal cuidado e muitas vezes imundo, mas seu carinho por ele não diminui por isso.
Reclama melhor iluminação. Clama por segurança. Pede paciência diante das autoridades que dela cobram, mas que pouco fazem pelo pedaço que ajudou a fazer boêmio e referência de uma cidade.
Foi no batente frontal de seu estabelecimento que o maestro Mainha resolveu morrer, aos 80 anos de muita canseira vida a fora. Ele que, pressentindo a morte chegar, para lá dirigiu-se, pediu a última, despediu-se, e foi-se como chegou à vida: sem nada ou quase nada, porque deixou amigos poucos que o amavam, é verdade, e composições que ninguém sabe um dia chegarão à memória: coisas preciosas.
Quando chegou ali, o Beco da Lama era bem mais lama que beco, nem nome de rua tinha. Era apenas fundos de casas famosas de ruas afamadas e bem tratadas por que abrigavam comércio e casas de gente bacana. O Beco servia-lhes apenas para despejo de águas servidas. Só. E para a ostentação do nojo que se mantém, sem que nada façam por ele.
Mas Odete acreditou e lá ficou, fazendo o seu cuscuz matinal, torrando sua galinha caipira, mexendo o pirão do peixe no coco, servindo a talagada de cana para os papudinhos de todos os dias.
O sorriso ingênuo que sempre trouxe nos lábios, sorriso convidativo, diga-se, poucas vezes deixou-se anuviar por acontecimentos tristes, ali também tidos. Manteve-se majestosa e altiva, e hoje ainda enfrenta diariamente a lida, velhice já chegada, esperança mantida, porém, na certeza de que deixa um fruto. Maduro. Tenro. Mas que, se cuidado, novos trará, e manterá viva a labuta que se merece labuta, porque do trabalho vive o homem que também vive do sarapatel que Odete preparou um dia e da cachaça que fê-lo esquecer a vida não querida, mas real, de lá adiante, bem longe do Beco. Onde a vida não lhe sorri.
Eduardo Alexandre