Entre as avenidas que cortam essa cidade encontramos alguns becos
convidativos ao deleite da observação. O Beco da Lama caracteriza o centro
da cidade como um reduto de encontro de intelectuais e até de desencontro de
"intelectualóides". Desde a Cidade Alta até a belíssima Zona Norte, passando
de quebra pelos bairros mais aprimorados sócio-economicamente, descobrimos
nichos populacionais e suas características de vida.
O primor da vaidade de alguns segmentos de nossa sociedade se confunde com a
espontaneidade dos bêbados e dos febris poetas "bequianos" e plagiam até o
ambiente vivido. Quando calço as minhas alpercatas e saio em busca de
novidades me deparo com fantásticas e inusitadas situações. Entrei, certa
noite, numa rua que estava travestida de beco e repleta de pessoas que,
aparentemente, não estavam bêbadas e nem tão pouco poesias declamavam; mas,
estavam muito bem vestidas e maquiadas e exibiam o seu glamour de quase
intelectuais.
Gostei de ver aquele grupo no meio da rua interagir-se com um evento
primoroso. Certo que não era bem o que eu queria. Para dizer a verdade era
aquilo que mais tenho repugnância; mas, como os experientes dizem, devemos
captar o que de bom as pessoas possuem. Os alvejantes e lineares sorrisos
desfilavam em minha frente. Homens, mulheres, jovens, crianças e idosos
misturavam-se como em uma grande sopa de letrinhas para analfabetos. Um
grupo de mulheres conversava ao meu lado. Eram cinco ou seis jovens senhoras
de meia idade, não tão belas e de cabelos amarelos que estavam a chacoalhar
suas bolsas e suas jóias em busca da atenção de alguns homens e, quem sabe,
também de outras mulheres.
Fiquei parado sob um jambeiro a observar quem ia e quem não ia. Na minha mão
repousava uma taça de suco de abacaxi com hortelã. Daria a outra metade de
minha rala cabeleira por uma Água Tônica gelada em um encardido copo de
plástico. As caixas acústicas metralhavam o refrão "Num tô nem aí" em meus
pobres, indefesos e famigerados ouvidos. Lembrei-me do meu Beco. Sua
nostalgia poética, seus loucos e desvairados artistas e a sua lama que
inebria os sentimentos alheios.
Continuei colhido sob aquele esplendido jambeiro que, assim como eu,
continuava inocentemente observando aquela chuva torrencial de brilho e de
perfume. Os refletores iluminavam um improvisado palco e uma tela branca ao
fundo estampava as marcas gloriosas dos patrocinadores do evento que se
representavam pelos cabelos bem cortados e submersos em "gel fixador" de
alguns convidados não tão convidativos a aproximação. Degustei o suco de
abacaxi, que por sinal era a única expressão naturalista, com exceção do
jambo-irmão que permeava o ambiente; ou melhor, aquela viela travestida de
beco.
Em meio a minha abstração fui interrompido pelos acordes de um violão de
aço. A afinação aguçou a minha curiosidade e lancei os meus olhos na
escuridão em busca de quem o dedilhava. Pedi ajuda, a quem eu estava
acompanhando, para que me certificasse se era realmente a moça de cabelos
vermelhos que encontramos semana passada em uma noite sombria em um bar da
Ribeira. Nem tudo estava perdido. Mesmo mergulhado em um ambiente tão
ficcionista, ainda existia um resquício de vida.
De certo que não foi o suficiente para substituir a bandinha de frevo que
sempre aparece lá no Beco da Lama e nem as idéias metafísicas das abstrações
poéticas de seus freqüentadores, mas o necessário para buscarmos o que os
nossos desejos imploram e abdicar de vez daquela ambiente nefasto e absurdo.
Por fim, a musica começou. Seus acordes me encantaram e a noite foi muito
proveitosa quando saímos daquele local. Buscamos, eu e a minha cúmplice
noturna, durante aquele resto de noite, algo que nos desse prazer.
Despedimo-nos dos conhecidos e, principalmente, dos desconhecidos (para que
não possamos conhecê-los algum dia) e saímos em surdina e pelas sombras.
Colocamos os nossos pés descalços no chão, trocamos a seda pelo algodão e
dispensamos os enfeites diários. Cruzamos as ruas da cidade, entramos e
saímos de tantos outros becos e decidimos, finalmente, o que fazer. Não foi
necessário esforçarmos para sermos diferentes. Bastou apenas sermos guiados
pelos desejos enrustidos que habitam em nossos corações.
Acabamos enroscados em um edredon após saborearmos dois sonhos de noiva
recheados de creme de ovos e alguns pãezinhos doces, comprados em uma bodega
de produtos regionais, e acompanhados de um inigualável suco de uva. Ao
fundo Mautner e Veloso sussurravam: "...eu não peço desculpa, eu não peço
perdão. Não, não é minha culpa essa minha obsessão..."