Há quem ache que o passado só conte coisas anacrônicas, de mau gosto ou simplesmente inúteis. Será que vale a pena conservá-las ou sequer relembrá-las? O novo (segundo o Eclesiastes não existe nada de novo sob o sol) passa a ser sinônimo de progresso, dinamismo, criatividade. Trata-se de uma visão ingênua ou mesmo primária, que despreza de um só golpe toda a tradição cultural da humanidade. Mas tem certa lógica: baseia-se no fato de que a ciência e a tecnologia vão, com o passar do tempo, estendendo o seu domínio sobre os mais diferentes aspectos da vida. Esses avanços garantem um padrão de organização social superior, principalmente do ponto de vista material. Então, qual a utilidade do passado? Essa visão é partilhada por uma significativa maioria de cidadãos bem-pensantes. Há entre eles até mesmo representantes dessa categoria indefinível e incaracterística, mas arrogante e poderosa chamada de formadores de opinião.
Diante disso, alguém poderia lembrar que a literatura, a música, as artes plásticas, a filosofia e as próprias ciências têm uma longa história. Sua grande evolução começou na Grécia, sobretudo a partir do século V. a.C., o pensamento humano alimenta-se até hoje da contribuição dos filósofos gregos. Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C) constituem ainda pontos de referência, de forma direta ou indireta, para as mais importantes correntes filosóficas contemporâneas. No Direito, por exemplo, as concepções teóricas mais recentes e inovadoras, objeto de estudos e debates em todo o mundo, são a lógica do razoável, a tópica e a nova retórica de Recaséns Siches, Viehweg e Perelman, inspiradas basicamente em Aristóteles.
Pondo de lado essa polêmica - que é fruto basicamente da desinformação e da excessiva confiança nos cânones científicos tradicionais - devo admitir que considero delicioso um livro (“Ontem vestido de menino) escrito em 1985 por Augusto Severo Neto, relembrando figuras e o próprio modo de vida de Natal dos anos 40 e 50. Algumas dessas figuras são de uma riqueza humana que as tornaram simbólicas de toda uma época de nossa cidade: Paulo Lyra, Luís Tavares, o Conde de Miramonte (João Alfredo Pegado Cortez), Luiz de Castro Cortês (dono do Zepelim, um quiosque “plantado bem no coração do Grande Ponto”), Luiz Romão (dono da Agência Pernambucana, que vendia as “revistas de maior procura da época). As melhores páginas são, a meu ver, sobre a antiga Doutor Barata e a Tavares de Lyra. Lá estavam lojas de artigos elétricos, de construção, de ferragens, armarinhos, confeitarias, joalheiras, livrarias, farmácias, alfaiatarias, consultórios médicos e dentários e escritórios de advocacia. Era o comércio dos Lamas, dos Faraj, dos Calife, dos Gondim, de Limarujo, de Henrique Santana, de Amadeu Grandi, de Abrahão Tahim, de Vicente Mesquita, de Fortunato Aranha, de Amaro Mesquita, de Múcio Miranda, dos Farache.
Havia em Natal cinemas, bares, hotéis, lugares de encontros que constituíam verdadeiras instituições. Sua história reflete os costumes, o estilo de vida, as características sócio-culturais da cidade. Eram o Cine Polytheama, o Magestic, o bilhar do Acácio, o Royal Cinema, a “Rôtisserie”, o “OK” Bar, o Carneirinho de Ouro, o Cão Jaraguá, o Natal Clube, o Hotel Internacional, o Terpschope Clube de Natal, o “Cova da Onça” (local de reunião de políticos). O “Wonder Bar” era outro tipo de instituição. Segundo Augusto Severo Neto, “foi um capítulo à parte na vida noturna, lírica e “pecaminosa” de nossa cidade”. Por sinal, eram numerosas as donas de boate (eufemismo de bordel) que se transformaram em “rainhas da noite”: Maria Boa, Francisquinha, Rita Loura, Belinha, Alaíde. Algumas desfrutavam de tanta popularidade que adquiriam o status de comerciantes bem-sucedidos, dignas de apreço ou pelo menos de complacência das famílias de “classe alta” menos preconceituosas.
Augusto Severo Neto foi empresário, poeta, apaixonado por literatura e por viagens. Tinha uma casa pitoresca na Praia de Pirangi do Norte, em que recebia, com sua esposa Lucinha, amigos de sua especial afeição. Nunca conheci ninguém que recebesse com tanta satisfação e soubesse criar um ambiente de tanta descontração, alegria, bom-humor. Havia música, poesia, bebida e liberdade para afirmar e divergir. Uma espécie de pequena Shangri-la, o mosteiro budista nas montanhas do Tibete imaginado por James Hilton em “Horizonte Perdido”.