Elder Heronildes – Advogado
Gazeta do Oeste 13.03.03
"No beco a lua
se despe, e nua
se deita na cama
da poça de lama"
(Luiz Carlos Guimarães)
Eis aí, na sua simplicidade lírica e na agudeza do seu canto, um instante evocativo do Beco da Lama na poesia contagiante de Luiz Carlos Guimarães, no que ele denominou, num diminutivo de grandeza interior, de "Poeminha lírico para o Beco da Lama".
Na realidade, o Beco da Lama é um permanente e marcante poema lírico, por sua paisagem simples e envolvente, pela nobreza dos seus habitantes em noites de vigílias etílicas e também cívicas, ou tardes alegres e cantantes, fazendo ressurgir, por entre afirmações e aclamações, o seu passado e a sua história.
Poderia ser um beco como outro qualquer, sem história, sem vida e sem alma, mas não é. Tem vida e tem alma, fez e faz história. Por ali, na sua simplicidade, com prédios ainda antigos e guardando cada um, no seu silêncio, as mais caras tradições, parece existir, no ar que se respira, um pacto tácito entre os seus habitantes, visíveis e invisíveis, os que se foram e os que ficaram, na dedicação e no amor insondável o compromisso quixotesco até, de preservação eterna do próprio espírito de irresignação e liberdade de um Beco que tem como grandeza indescritível a Lama iluminada dos seus caminhos, pelo sentido eloqüente de entusiasmo e de inquebrantável arrebatamento dos seus habitantes.
Eles, os habitantes do Beco da Lama, nas noites calientes e nos momentos de entusiásticas evocações e exortações, fazem dali um recanto sagrado e consagrado, inviolável e intocável graças à presença livre do espírito pairando acima da mediocridade vegetativa dos "duendes" sem alma e sem vida.
O Beco da Lama é um estado de espírito. Como tal, emblemático e autêntico, proporcionando a Natal, cidade presépio, cidade luz, cidade dos Reis Magos, cidade de Câmara Cascudo e de Luiz Maranhão Filho, o grande Lula, um sentimento evocativo e emocional pela presença do povo na própria elaboração do seu futuro, porque o Beco é povo e a sua Lama é catalisadora dos mais nobres sentimentos de pureza e de grandeza interior.
Em Natal, e isso é admirável, dão um significado bem elevado a algumas vielas, minúsculas artérias, e os becos, como a dizer que em cada qual há um pedaço de sua história. Lembro, até, que um deles encantou vivamente a grande escritora Eneida quando esteve em Natal e visitou o da "Quarentena". Ficou maravilhada.
Eu, cá de minha parte, sinto-me contagiado e envolvido pela aura reluzente e vibrante que sai da lama e do Beco, que, como Beco e como Lama, formam a mais perfeita simbiose, como a sincronia melodiosa de uma grande sinfonia, encantando e envolvendo qualquer mortal, mesmo a um passo da imortalidade... acadêmica, bem entendido.
Tais sentimentos são justificáveis, pois entendo, sem ter em mãos qualquer documento, que ingressei, com toda honra, na Ordem dos Oficiais do Beco da Lama através de processo de iniciação simples, singelo e fraterno. Justamente no dia de um tradicional e histórico evento. Trata-se da Lavagem do Beco da Lama, a exemplo do que acontece na Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia.
Naquele dia, um sábado, fui convidado pelo meu filho Disraeli, que considero o meu padrinho, para participar da Lavagem do Beco da Lama. Fui, me envolvi e vibrei. Encarei aquele ato de lavagem como um ritual com todos os elementos inerentes a um processo de batismo. Uma espécie de processo iniciatório. Considero-me, portanto, membro da Confraria do Beco da Lama, e, como tal, estou aqui a ressaltar o fato para que todos o conheçam em seus detalhes.
O Beco da Lama não é só Beco e nem só Lama, é um sublime e enlevante estado de espírito.
Uma serenata natalense