Um bêbado lírico, desses que discutem com os pássaros sobre a mutação das manhãs e a sensualidade das dálias, foi um dos primeiros moradores da rua. Quando chovia, a rua descalça se enchia de poças e numa delas uma estrela vinha se banhar. Era uma estrela tímida, que não queria testemunhas do seu banho despreocupado. Só o bêbado a via, deslumbrado, e depois corria para o bar mais próximo. E bebia em silêncio, porque achava que não devia espalhar aquele segredo.
Foi ele, o lírico, o derrubador de copos, o interlocutor de pássaros, que deu à ruazinha o nome de Rua da Estrela.
Morador da Rua Professor Zuza desde os cinco anos de idade, fui vizinho da Rua da Estrela por toda a minha infância. Nenhuma rua por perto tinha calçamento. A Apodi, a mais larga e mais comprida de todas, era um areal. Começava no Morro do Estrondo e terminava no cruzamento com a avenida por onde subiam os bondes. Na Rua da Estrela era demarcado o quartel dos jogos de capitão-amarra-negro, um brincadeira violenta, em que os mais valentes imobilizavam os adversários pelo pescoço, enquanto gritavam:
- Teje preso pela ordem do Capitão-de-Campo Amarra-Negro.
Na Rua da Estrela era armado o campo de futebol, perto da casarão que foi do meu avô Miguel Leandro e que depois passaria para a família Deodato Negreiros. O seu Deodato era um homem bom, cordial, mas não tinha a menor paciência com os futuros craques. Se a bola de borracha caía nos seus domínios, ele a trucidava na hora. Sem apelação. O filho de seu Deodato, um seminarista, teve aos 16 anos uma visão divina da poesia, tendo como porta-voz um gênio rebelde nascido em Charlesville. Largou a batina, perseguiu o ritmo da busca, escreveu um livro de uma maturidade e de uma força poética improváveis para sua idade. O seu destino seria a Abissínia, para contrabandear armas e fazer parceria com o homem misterioso de Charlesville. Mas o pai Deodato usou de toda sua força de patriarca para mantê-lo em casa, entre fábulas e fábulas.
Nessa rua estelar morava Carlos Castilho, um jovem goleiro do América. Teria sido o maior goleiro do Brasil, se não tivesse se apaixonado pela boemia, com quem vive de amores até hoje.
Na Rua da Estrela começou a maior briga de dois valentes da época. O rei da rua era Totinha, craque, bom de briga, chefe da tribo. Numa manhã, passou pelos seus domínios um rapaz caladão, de cabelo comprido, chamado Ivan Cocuruta. Totinha soltou uma piada com o cabelo do visitante, que revidou, os dois trocaram olhares ferozes e armaram os punhos para o duelo. A briga começou na Rua da Estrela, atravessou toda a Professor Zuza, dobrou a Rio Branco, passou pelo Grande Ponto e só foi parar perto da estátua do Padre João Maria, o milagroso. Não houve vencedor nem vencido. Anos depois, segundo pesquisas de Itamar, John Ford baseava-se na briga de Totinha e Ivan Cocuruta para fazer a mais emocionante briga do cinema, em The Quiet Man (“Depois do Vendaval”).
Descendo a Rua da Estrela, em direção do riacho do Baldo, os meninos podiam ver o espetáculo das lavadeiras, que lavavam roupas tranqüilas, despreocupadas, sem intenção de mostrar partes cobiçadas do corpo, mas mostrando. Eram muitos alumbramentos.
Depois a Rua da Estrela virou Rua José de Alencar. Meu Deus do céu, que palpite infeliz. José de Alencar já tem tantas honrarias, é nome de praça, de rua, de avenida em todas as cidades do país. É estátua numa praça do Flamengo. Por que subtrair a estrela de uma rua tão lírica? Não me conformo. E nisso admiro os mossoroenses, que retiraram Machado de Assis de uma rua para fazer entrar nela o nome de Jayme Hipólito. E olhe que Machado é muitas, muitas vezes, mais escritor do que o romanticão cearense.