14/09/2002
Sanderson Negreiros
A Ribeira distante Se as Quintas são profundas, o Alecrim festivo, o Tirol expansivo, as Rocas misteriosas, Petrópolis principesco, a velha Ribeira se torna cada vez mais solitária. Equilibrando-se no espaço - seu empobrecimento diário, definhando na velhice surda e muda, sua fome boêmia, sua sede de beleza perdida; e centenas de personagens que, impossibilitados de aceitarem a cidade diurna e moderna, se refugiam no silêncio pesado que o bairro sustém e sustenta.
A pergunta é indisfarçável: a Ribeira ainda seria um bairro? Ou somente uma gravura? Um estado de espírito? Ou apenas um sítio de abandono ? Comércio, quase não existe, afora três ou quatro portas abertas. Bares, todos desaparecidos e destruídos, mas a Confeitaria Delícia, do saudoso português Olívio, conventualizou-se; era onde se reunia a congregação mais enriquecida e surpreendente do mundo: a dos boêmios que se aceitam com a contemplação de homens misteriosos. Onde o mural de Navarro em toda parede da Confeitaria?
A distante Ribeira tem uma sintaxe pessoal: nela se conjugam verbos de surpresa humana jamais conjugados. O verbo "reencontrar", por exemplo. É de se ver algum personagem sobrevivente lançar a idéia: "Precisamos reencontrar nossas antigas energias e esperanças". A tristeza corrói o dom de milagre no burgo primitivo da cidade.
Os mais velhos, na esforçada memória, param diante da praça Augusto Severo, e constatam que, antigamente, aquilo tudo era como se fosse uma fonte encantatória, um bulevar parisiense, com árvores que davam tons de beleza às suas tardes e mística ternura às suas auroras milagrosas. E as árvores foram trazidas, todas, de Paris.
Hoje, não. Uma Estação Rodoviária consegue enfeiar definitivamente a praça, onde outrora retumbaram hinos, e havia, inclusive, pontes à feição de paisagem da "belle époque".
A rua Dr. Barata persiste e insiste, com o alfaiate Zé de Rubens olhando o tempo, da porta de sua loja. Por ali, vagueiam sombras impressionantes e impressionistas. É de se notar o canto escuro que fere o ar desamparado da rua Dr. Barata. Dói como som ouvido na primeira infância. Tantos e quantos, onde estão todos eles? Deitados, dormindo profundamente, como cantou o poeta Manuel Bandeira?
Quando retorno ao soturno bairro, faço-o senão pelo acaso de horas insuspeitadas. Minha adolescência ali se resolveu menos rebelde, sendo mais generosa e altiva. Ali, dancei meu primeiro bolero. A noite realmente era uma morada. Ou namorada?
Depois, vêm novas manhãs e os dias se sucedem sem que possamos concretizar o gesto bíblico de Josué - o de segurar a rotação do Sol. Vamos em frente. Na volta, no último minuto do retorno derradeiro, o reencontro audível somente entre pessoas que já sofreram com as madrugadas da adolescência, amanhecidas no olhar. A Ribeira quase não termina mais no cais da Tavares de Lira - o sujo, o mau-gosto, a indelicadeza do sujo, a decadência inevitável e a irresponsabilidade tornaram a Ribeira cada vez mais distante, longínqua, desértica. Como se não fora, nunca, se como jamais tivesse existido no mapa de uma cidade tão bela.
Hoje, é apenas um corpo sem alma. Dialogando, desmemoriada, à procura de si mesma. Um corpo que ama, que pede, que chora. E onde as almas possam retomar, repossuir, preencher esse diversificado corpo, e retome o lugar de um bairro que realizou a dedicatória derradeira de que Natal era realmente uma festa.
Ah, se me lembro: ali, no Grande Hotel, tomei, muitas vezes, coalhada com Teodorico Bezerra. Em frente, ficava a casa de Alcides Cicco, desabrido tenor - aliás, a casa lá continua, empolgada com o abandono. Naquelas ruas e becos, Newton Navarro traçava o Triângulo das Bermudas, com o acompanhamento de Albimar Marinho, que, usando permanentemente a linguagem jurídica, dizia para Navarro: "Poeta, o dia hoje amanheceu apodítico. Há várias matérias em pauta".
Zé Areia, vendendo loteria federal ou "bingos" à sua maneira, oferecia a "rifa" de uma cangalha, e respondia a quem lhe perguntava: "Você me acha com jeito de cavalo?" Ao que Zé Areia explicava: "Serve para burro também".
Onde a turma de Luís Tavares, que tomava, em mobilização estróina, todo o final da avenida Tavares de Lira? Dela só resta Paulo Guerreiro, bravo e generoso, imitando Chico Alves como ninguém, e que há pouco iniciou uma conversa comigo por telefone assim: "Poeta, vamos começar a lista pelos que já morreram, pois de vivo só existe eu".
E o Tabuleiro da Baiana, onde, certa madrugada, Luís Carlos Guimarães e eu encontramos a atriz Glauce Rocha, com um grupo de artistas que se apresentara no Teatro Alberto Maranhão - e fizemos-lhe, na hora, um poema-saudação. Mandamos a mensagem elegíaca e não recebemos sequer a retribuição de um olhar. O grande poeta, bondoso e profético, advertiu, e ainda hoje guardo suas palavras: "Quem é orgulhosa assim, morre cedo. A vida é feita de agradecimento". Tudo aconteceu como foi predito pelo poeta.
E, falando em Teatro, Meira Pires era seu grande ator e autor, personagem de romance, que Cascudo uma vez definiu: "Meira é o vento rodopiando ao sol do meio-dia". E o próprio Mestre, de chapéu francês, casimira inglesa, cabelo revoltado e revolto, passeando por aquelas ruas como um rei - todos íamos, como dizia Homero Homem, em procissão, acompanhando o andor do sábio tão simples, poeta que enfrentava as noites, noutros bairros distantes e casas ditas suspeitas, com amavio e destemor. E me tranqüilizava: "Não se aperreie. Você hoje aqui não paga nada".
Ah, Ribeira de Padre Zé Bízinger, santo sem precisar de canonização, que escreveu seu poema à Virgem, como Padre Anchieta, na beira da praia, da Redinha a Muriú, sendo que seus poemas eram todos escritos no transbordamento da caridade e bondade infinitas.
Ah, Ribeira, como estás distante. E sozinha.