terça-feira, fevereiro 08, 2005

A Ribeira distante

Tribuna do Norte
14/09/2002

Sanderson Negreiros


A Ribeira distante Se as Quintas são profundas, o Alecrim festivo, o Tirol expansivo, as Rocas misteriosas, Petrópolis principesco, a velha Ribeira se torna cada vez mais solitária. Equilibrando-se no espaço - seu empobrecimento diário, definhando na velhice surda e muda, sua fome boêmia, sua sede de beleza perdida; e centenas de personagens que, impossibilitados de aceitarem a cidade diurna e moderna, se refugiam no silêncio pesado que o bairro sustém e sustenta.

A pergunta é indisfarçável: a Ribeira ainda seria um bairro? Ou somente uma gravura? Um estado de espírito? Ou apenas um sítio de abandono ? Comércio, quase não existe, afora três ou quatro portas abertas. Bares, todos desaparecidos e destruídos, mas a Confeitaria Delícia, do saudoso português Olívio, conventualizou-se; era onde se reunia a congregação mais enriquecida e surpreendente do mundo: a dos boêmios que se aceitam com a contemplação de homens misteriosos. Onde o mural de Navarro em toda parede da Confeitaria?

A distante Ribeira tem uma sintaxe pessoal: nela se conjugam verbos de surpresa humana jamais conjugados. O verbo "reencontrar", por exemplo. É de se ver algum personagem sobrevivente lançar a idéia: "Precisamos reencontrar nossas antigas energias e esperanças". A tristeza corrói o dom de milagre no burgo primitivo da cidade.

Os mais velhos, na esforçada memória, param diante da praça Augusto Severo, e constatam que, antigamente, aquilo tudo era como se fosse uma fonte encantatória, um bulevar parisiense, com árvores que davam tons de beleza às suas tardes e mística ternura às suas auroras milagrosas. E as árvores foram trazidas, todas, de Paris.

Hoje, não. Uma Estação Rodoviária consegue enfeiar definitivamente a praça, onde outrora retumbaram hinos, e havia, inclusive, pontes à feição de paisagem da "belle époque".

A rua Dr. Barata persiste e insiste, com o alfaiate Zé de Rubens olhando o tempo, da porta de sua loja. Por ali, vagueiam sombras impressionantes e impressionistas. É de se notar o canto escuro que fere o ar desamparado da rua Dr. Barata. Dói como som ouvido na primeira infância. Tantos e quantos, onde estão todos eles? Deitados, dormindo profundamente, como cantou o poeta Manuel Bandeira?

Quando retorno ao soturno bairro, faço-o senão pelo acaso de horas insuspeitadas. Minha adolescência ali se resolveu menos rebelde, sendo mais generosa e altiva. Ali, dancei meu primeiro bolero. A noite realmente era uma morada. Ou namorada?

Depois, vêm novas manhãs e os dias se sucedem sem que possamos concretizar o gesto bíblico de Josué - o de segurar a rotação do Sol. Vamos em frente. Na volta, no último minuto do retorno derradeiro, o reencontro audível somente entre pessoas que já sofreram com as madrugadas da adolescência, amanhecidas no olhar. A Ribeira quase não termina mais no cais da Tavares de Lira - o sujo, o mau-gosto, a indelicadeza do sujo, a decadência inevitável e a irresponsabilidade tornaram a Ribeira cada vez mais distante, longínqua, desértica. Como se não fora, nunca, se como jamais tivesse existido no mapa de uma cidade tão bela.

Hoje, é apenas um corpo sem alma. Dialogando, desmemoriada, à procura de si mesma. Um corpo que ama, que pede, que chora. E onde as almas possam retomar, repossuir, preencher esse diversificado corpo, e retome o lugar de um bairro que realizou a dedicatória derradeira de que Natal era realmente uma festa.

Ah, se me lembro: ali, no Grande Hotel, tomei, muitas vezes, coalhada com Teodorico Bezerra. Em frente, ficava a casa de Alcides Cicco, desabrido tenor - aliás, a casa lá continua, empolgada com o abandono. Naquelas ruas e becos, Newton Navarro traçava o Triângulo das Bermudas, com o acompanhamento de Albimar Marinho, que, usando permanentemente a linguagem jurídica, dizia para Navarro: "Poeta, o dia hoje amanheceu apodítico. Há várias matérias em pauta".

Zé Areia, vendendo loteria federal ou "bingos" à sua maneira, oferecia a "rifa" de uma cangalha, e respondia a quem lhe perguntava: "Você me acha com jeito de cavalo?" Ao que Zé Areia explicava: "Serve para burro também".

Onde a turma de Luís Tavares, que tomava, em mobilização estróina, todo o final da avenida Tavares de Lira? Dela só resta Paulo Guerreiro, bravo e generoso, imitando Chico Alves como ninguém, e que há pouco iniciou uma conversa comigo por telefone assim: "Poeta, vamos começar a lista pelos que já morreram, pois de vivo só existe eu".

E o Tabuleiro da Baiana, onde, certa madrugada, Luís Carlos Guimarães e eu encontramos a atriz Glauce Rocha, com um grupo de artistas que se apresentara no Teatro Alberto Maranhão - e fizemos-lhe, na hora, um poema-saudação. Mandamos a mensagem elegíaca e não recebemos sequer a retribuição de um olhar. O grande poeta, bondoso e profético, advertiu, e ainda hoje guardo suas palavras: "Quem é orgulhosa assim, morre cedo. A vida é feita de agradecimento". Tudo aconteceu como foi predito pelo poeta.

E, falando em Teatro, Meira Pires era seu grande ator e autor, personagem de romance, que Cascudo uma vez definiu: "Meira é o vento rodopiando ao sol do meio-dia". E o próprio Mestre, de chapéu francês, casimira inglesa, cabelo revoltado e revolto, passeando por aquelas ruas como um rei - todos íamos, como dizia Homero Homem, em procissão, acompanhando o andor do sábio tão simples, poeta que enfrentava as noites, noutros bairros distantes e casas ditas suspeitas, com amavio e destemor. E me tranqüilizava: "Não se aperreie. Você hoje aqui não paga nada".

Ah, Ribeira de Padre Zé Bízinger, santo sem precisar de canonização, que escreveu seu poema à Virgem, como Padre Anchieta, na beira da praia, da Redinha a Muriú, sendo que seus poemas eram todos escritos no transbordamento da caridade e bondade infinitas.

Ah, Ribeira, como estás distante. E sozinha.

por Alma do Beco | 4:57 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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Praieira
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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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