terça-feira, fevereiro 08, 2005

João Gualberto

Além do nome

04/11/01
Por Marize Castro *

No alto do quarto andar do Edifício Jacumã, às margens da BR 101, mora o poeta. Fui encontrá-lo numa manhã de muito calor. Há muito que eu não o via. Ele ficou surpreso com o meu telefonema, "uma supresa boa", disse-me o poeta. Certa vez, na década de 1980, caminhando com o escritor Franklin Jorge à beira-mar, eu vi Gualberto entrando no mar da Redinha - aquele homem forte, grande, quase um deus, impressionou-me. Essa é uma das imagens que me acompanham. Naquela época, João Gualberto ainda não tinha os cabelos grisalhos, mas para mim ele já era um senhor - um senhor poeta. Os seus versos já eram publicados e ressoavam pelos quatro cantos da cidade. Quem estava iniciando na poesia, tinha o compromisso de conhecê-lo. Ler João Gualberto foi escola para muita gente. Conhecer João Gualberto, o poeta, trovador, escritor, jornalista, é um desafio e uma necessidade.

Sempre tomando a sua Heinenken, o poeta me recebeu no seu apartamento. No lado de dentro da porta de entrada, um desenho coloridíssimo de Gualberto; desenhado sobre a parede da sala, "um Francisco de Assis", de autoria do amigo Assis Marinho. Nos únicos móveis da sala - uma mesa, algumas cadeiras, a mesinha do computador - vários papéis, livros, cadernos. Aqui, o caos dá a ordem.

João Gualberto, aos 54 anos de idade, permanece fazendo o que sempre fez a vida toda: escrever. No início da nossa conversa, perguntei-lhe quando a literatura, o ato de escrever bateu à sua porta. A resposta foi imediata: "Desde sempre, desde que eu me entendo por gente que eu sempre estou escrevendo alguma coisa. Quando eu era menino eu ficava sozinho, no oitão lá em casa, sonhando".

Filho do escritor e professor José Nazareno Moreira de Aguiar e sobrinho de um outro poeta, Reinaldo Aguiar, João Gualberto cresceu ouvindo o pai e o tio discursando, cantando e recitando durante as reuniões de família. "Eu adorava, sempre tinha seresta, sempre tinha declamação", conta o poeta com o seu vozeirão. Gualberto diz ainda ouvir o barulho da máquina de datilografia do pai. Nessa mesma máquina, da marca 'Torpedo', hoje completamente pintada e "decorada" pelo poeta com a ajuda do amigo pintor Fernando Gurgel, Gualberto escreveu vários versos, vários livros.

O poeta nasceu enlaçado - e não é metáfora. O cordão umbilical ao redor do pescoço, quase o matou, "será que é por isso que eu sou louco?", brinca Gualberto. O segundo filho dos onze filhos de Maria do Carmo Cunha de Aguiar - carinhosamente chamada de Nom - e José Nazareno, nasceu em Natal, em casa, a 5 de março de 1947, em plena Cidade Alta, na rua Voluntários da Pátria. O parto foi feita pela avó, Alzira Cunha, "foi ela que me salvou, cortando o cordão", diz, lembrando com muito carinho da avó .

Gualberto é um daqueles seres mísseis. Pode alcançar alturas e depois se estilhaçar na mais nobre ou na mais banal das quedas. Desde rapazinho que ele optou pelos bares. Aqui, salvação e perdição se confundem: "Ainda lembro do Bar Alabama e do Bar da Tripa, na Ribeira, eu tinha uns 15 ou 16 anos". O primeiro porre foi tomado na Copa do Mundo de Futebol, em 1958. O poeta diz ainda lembrar do gol de Pelé contra o País de Gales. Ele era um menino na época, mas já estava marcado, como marcado está todo ser que muda o trilho, recusa estações, conformidades, escolhendo a ruptura no lugar da tradição.

Aos 17 anos, cursando o clássico no Atheneu, atleta do time de basquete do América Futebol Clube, por influência da família, Gualberto faz concurso para o Banco do Brasil, e passa. Ao completar 18 anos, é convocado para trabalhar na agência de Mossoró. Torna-se o caçula do banco, mas o poeta não aguenta e dois anos depois está de volta a Natal. Uma decisão desaprovada pela família, porém o poeta se manteve firme. Decisão certeira. Quem conhece Gualberto, tem dificuldade de imaginá-lo dentro de um banco, trabalhando, com os pés "amarrados na terra".

Antes do Banco do Brasil, o poeta trabalhou no jornal A Ordem: "Foi de 1959 a 1960. Eu era o auxiliar de revisor de Paulo Firmino, falecido há pouco tempo. Eu lia os originais e Paulo Firmino lia as provas tipográficas. Foi a grande escola da minha vida, porque eu passava a tarde lendo. Era o tempo de Arlindo Freire, Nei Lopes de Sousa, Renira Mota, Jardelino Lucena..." , relembra Gualberto.

A década de 1970 foi a década de João Gualberto. Nessa década ele casou, teve o seu único filho, trabalhou em alguns jornais de Natal, foi assessor de imprensa e chefe de gabinete do BDRN, mas, orientado por sua intuição e inquietação, arrumou as malas, deixando para trás uma vida pequeno-burguesa, razoavelmente organizada, e atendeu ao chamado de um outro poeta, jornalista e amigo, Dailor Varela, que já estava na capital paulista, trabalhando no jornal Folha de São Paulo, "Era a primeira vez que eu andava de avião, quem viajou ao meu lado foi Odaíres, cheguei de porre em São Paulo, no aeroporto estavam Dailor e Talvane Guedes, que era um chefão da Editora Abril, num Mercedes branco, e continuamos a farra", narra o poeta. No dia seguinte, Gualberto já era funcionário da Folha, com direito a uma pauta em plena São Paulo, cidade completamente desconhecida para ele. Resultado: o talento do jornalista aflorou ainda mais e o seu texto saiu publicado e assinado, o que acontecia raramente naquele jornal.

Da Folha de São Paulo, Gualberto se transfere, ganhando o triplo do salário que recebia no jornal, para a Revista Escola, da Editora Abril. O redator-chefe era ninguém menos do que Dorian Jorge Freire: "Dorian me mandou falar com o diretor e fui aceito em seguida para ser editor de textos. Foi outra experiência fantástica." .

Com a vida financeira estabilizada, Gualberto leva a mulher e o filho para São Paulo, ambos haviam ficado em Natal, esperando dias melhores. Porém, depois de dois anos a insatisfação bate novamente à porta do poeta. Agora o desejo era ir para o Rio de Janeiro, trabalhar em O Jornal, com os amigos cariocas Tasso de Castro e Luís Carlos Maciel. Demite-se da Editora Abril e ruma para o Rio com a mulher e o filho. O Jornal abre falência e ele fica desempregado. O também poeta Nei Leandro de Castro, que já morava no Rio de Janeiro há alguns anos, consegue alguns "bicos" para o poeta, em algumas agências cariocas de publicidade: "Dessa forma eu ganhava uns trocados. Foi nessa época que eu escrevi Máquina de lavar poemas e mandei para o concurso Othoniel Meneses". Como era final de ano, a família resolve fechar o apartamento e vir para Natal para retornar em março, quando Gualberto faria um estágio para ingressar numa grande agência carioca, a Mauro Salles. Mas o destino havia reservado outros caminhos para o poeta: " Eu fiquei na Redinha e foi lá, em janeiro de 1974, que eu soube eu havia recebido o prêmio Othoniel Meneses. Quem me deu a notícia foi Celso da Silveira. Daí Carlos Lima me chamou para eu trabalhar na revista Caderno do Rio Grande do Norte, e também fui convidado para trabalhar na Trinuna do Norte. Eu disse, então, para mim mesmo: 'sabe de uma coisa, eu vou ficar é por aqui mesmo', não vou voltar mais não". Sendo assim, a Mauro Salles nunca viu Gualberto.

Recebido o prêmio em dinheiro, sem direito a publicação, João Gualberto resolve se auto-publicar em mimeógrafo, sem ter a menor consciência do movimento da Poesia Mimeógrafo, por isso não se sente muito à vontade quando o incluem na Geração Mimeógrafo. Máquina de lavar poemas foi rodado em 1974, na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Natal, onde Gualberto também trabalhava, chefiado por Celso da Silveira : "Sem a ajuda de Djalma, que rodava o mimemógrado, e a permisão de Celso, eu jamais teria rodado o livro. Passamos umas duas noites gravando estêncil. Era papel, papel ... De manhã, o pessoal chegando para o expediente e aquela papelada nos birôs ... Corri para a casa de papai, peguei o carro, pedi a chave da casa da Redinha, entupi o carro de papel e fui para a praia encadernar e grampear os exemplares ", relembra João Gualberto.

Mas ainda na década de 1970, já descasado, o poeta volta para São Paulo, desta vez com direito a uma parada em São José dos Campos, onde Dailor Varela estava morando e trabalhando no jornal Agora. Gualberto não vai mais para a capital, permanecendo em São José, também trabalhando no Agora: " Era um pique, um pique.. eu tomava 3 comprimidos de Reativan para segurar a onda, a gente dava furo na Folha, no Globo, no Estadão", orgulha-se o poeta. Porém, insatisfeito com o salário, volta para Natal no ano de 1978 e vai trabalhar no jornal A República, "Antonio Melo era o diretor e Talvane Guedes era o chefe de reportagem".

No final de 1978, após algumas atribulações em A República, o poeta já está em Brasília, também ao lado de Talvane Guedes, trabalhando no Correio Brasiliense. Até que a saudade de Natal aperta e ele novamente retorna: "Sempre que eu saía de Natal me batia um banzo", confessa.

Gualberto volta definitivamente em 1980. No entanto, a década de 1980, ao contrário da de 70, não dá muitas oportunidades ao poeta que só voltou a trabalhar em 1985, quando Marcos Formiga, que na época era prefeito de Natal, e com quem Gualberto já havia trabalhado, oferece-lhe um emprego na antiga Fenat. Ainda hoje o poeta é funcionário da prefeitura de Natal.

Pergunto-lhe se ele sente saudade, "Sim, de muita gente", responde. Pergunto-lhe sobre um poeta. Ele relembra Jaime dos Guimarães Wanderley na varanda da sua casa na Campos Sales - rua na qual Gualberto morou grande parte da sua vida - sempre escrevendo, escrevendo ... Sobre Natal, ele diz que não vive mais a cidade e reclama do barulho intenso dos carros na BR 101. Pergunto-lhe ainda sobre João Ernesto, o seu único filho, falecido no Rio de Janeiro, onde morava, aos 24 anos de idade, vítima da violência urbana. Ele abre o computador e mostra os poemas escritos por João: "Eu pedi a ele para ficar em Natal. Ele me disse que adorava Natal, adorava Ipanema, mas disse que estava partindo para o exterior. Eu não pensei que o exterior fosse tão longe!", diz, lembrando os últimos dias do filho que era músico e pretendia fazer carreira fora do País.

São inúmeros os livros escritos pelo poeta, aguardando publicação. Estão todos na memória de um velho computador - um presente da família para o poeta que ainda escrevia na velha 'Torpedo'.

Saio no final da manhã do apartamento do poeta, deixando-o com uma Heinenken em uma das mãos. O poeta celebra e pede aos céus: "Fazei de mim uma paixão infinda". Gualberto já é patrimônio da literatura potiguar e merece um olhar mais atento dos que incentivam as artes e a cultura do Rio Grande do Norte. Nesses sertões de légua e língua, Gualberto está naquele time: Jorge, Itajubá, Zila, Luís Carlos Guimarães... E quem há de negar?

Livros publicados

Máquina de lavar poemas, 1976
Napalm, 1976
Teco-teleco-teco,: máquina de escrever, 1979
Exposição de motivos, 1981
Lendas e mitos, 1987
Nuvempoema, 1990
Na piscina azul do mar, 1992

por Alma do Beco | 5:17 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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