Natal após a Guerra. O esplendor do manto de folhas e flores que a encobriam. A sua rotina. Seus instantes de mansidão. Em cada casa, à noite, sentimentos pareciam luzes a apontar o firmamento. Era a vida contemplando o infinito. Saudando aqueles que chegavam à cidade em aviões, ou que a descortinavam dos navios que seguiam para outras terras, nas quais a vida revelava outras faces e outras ilusões.
A vida da cidade era marcada, como em todo o mundo, por suas festas tradicionais. Sempre coincidentes com fases diferenciadas do vestuário da natureza. De variações climáticas sempre regulares e não muito diferenciadas. As circunstâncias pareciam condicionar o imaginário popular. Inebriavam a todos. A partir de novembro, a cidade se mobilizava para um ciclo de festejos populares. Tudo começava com a festa da padroeira, Nossa Senhora da Apresentação. Nos primeiros dias do mês, entretanto, chegavam chuvas intensas e rápidas. As chuvas de verão. Daí porque o natalense enamorado poderia dizer como Shelley: "o ruído dos temporais primaveris sobre a grama cintilante, as flores que a chuva dispersou, a tudo teu canto excede". Essas chuvas, passageiras, mas esperadas, prenunciavam no litoral a safra do caju.
A Praça André de Albuquerque era o centro profano da festa. Parque de diversões. Barracas. Severino Francisco, proprietário do parque, também era banqueiro de jogo "do bicho". Parecia um "chefão de Chicago". Carro imponente, americano, dos maiores, chapéu de feltro, supervisionava os eventos todas as noites. Na calçada da Catedral, uma banda de música se apresentava: Marinha, Aeronáutica, Exército, Polícia Militar e Escoteiros. Mas tudo acontecia somente após a novena das 19.00 horas. Em cada noite, a Igreja era ornamentada por colégios femininos. Uma espécie de convocação. Em cada fim de tarde, jovens normalistas, de azul e branco, passavam pelo "grande ponto", antecipando sua presença, logo depois, dentro ou fora da igreja.
O dia da Padroeira era, talvez, o mais solene do ano na ritualística da cidade. Iniciava-se com a missa na Pedra do Rosário às 5.00 horas da manhã. Foguetório despertava a população. Os sinos de todas as igrejas badalavam. Às 9.00 horas era celebrada missa cantada, gregoriana. À tarde, a cadeira episcopal era instalada na lateral da Catedral, em frente onde hoje é o Memorial Câmara Cascudo. Todas as congregações se perfilavam. Os colégios se representavam com seus alunos e alunas fardados. As principais figuras, entre sacerdotes, freiras e leigos, faziam fila para beijar o anel do arcebispo. O governador e o prefeito o ladeavam. Em seguida, por volta das 16.00 horas, iniciava-se a procissão. E a cidade, contrita, cantava hinos e rezava.
Depois, iniciava-se o ciclo natalino. Que se emoldurava com a presença de grupos folclóricos. O parque de diversões se mantinha na Praça até o dia dos Santos Reis, em 6 de janeiro. A avenida Rio Branco, a rua João Pessoa e as cercanias da Catedral e do Convento de Santo Antonio, convertiam-se em passarela para os jovens namorados. E Natal, a exemplo de Madrid e Buenos Aires, rompia seu pronvincianismo para passear até as 11.00 horas da noite.
Tudo isso não é, apenas, passado. É um legado espiritual e sentimental, que dá sentido ao viver em Natal.