Zé Areia é uma figura lendária de Natal, Rio Grande do Norte. Poeta repentista, faleceu em 1972 e até hoje assegura inúmeros relatos, provenientes do seu espírito arguto. Amigo de Café Filho, também potiguar, chegou a viajar para Dakar na Segunda Guerra, onde ocupou-se de fazer a barba e cortar os cabelos dos soldados combatentes.
Humorista nato e dotado de uma capacidade de improviso que lhe permitia sempre uma resposta na "ponta da língua", o barbeiro Zé angariava amigos com facilidade. Boêmio, chegou a acumular as funções de vendedor de rifas, rei momo e outras mais, todas exercidas com o seu espírito peculiar e inesquecível.
Por ocasião da estadia de soldados americanos em Natal, conta-se que Areia chegou a vender espécie de urubu para um dos seus oficiais como se papagaio fosse. O caso teve intensa repercussão, exigindo mesmo uma intervenção diplomática que lhe aplacasse a ousadia. O escritor Paulo Augusto, vencedor do Prêmio Literário Câmara Cascudo com o ensaio "O Bufão de Natal", sobre a vida de Zé Areia, acrescenta: "Durante a época da 2ª Guerra ele simbolizava um misto de resistência e, ao mesmo tempo, um brincalhão. Ele era um clown".
Em "Sátiras e Epigramas de Zé Areia", de Veríssimo de Melo, encontramos várias passagens engraçadas que bem ilustram o temperamento do poeta. Em uma delas, Paulo Leandro encontra Zé Areia na Ribeira e, recém-chegado do Amazonas, relata ao amigo como passava os seus dias nas selvas:
- Vivo muito feliz na selva. Minha ocupação é matar onças. Mato uma na segunda, vendo na terça. Na quinta, mato outra e vendo na sexta. Por que você não faz como eu e vai trabalhar também no Amazonas?
Com a rapidez que lhe era peculiar, Zé Areia fulminou logo:
- Homem, matar onça já é difícil... E logo em dia marcado!...
Ainda no livro de Veríssimo, obra possibilitada pelo editor Antonio Mariano da Silva, encontramos outros episódios hilários, conforme podemos conferir abaixo:
"Certa vez, Zé Areia vendeu um papagaio completamente cego a um americano. No dia seguinte, foi procurado pelo Consul Americano, juntamente com o soldado, a vítima. O Consul declarou que o papagaio que ele vendera era cego! Um absurdo. Não prestava. Zé Areia teve esta saída genial:
- Espere: o senhor quer papagaio prá falar ou prá levar pro cinema?...".
"Conta-se também de Zé Areia, - embora se atribua igualmente a Renato Caldas, - o que ele disse num ônibus super-lotado. Bateu na campainha e exclamou:
- Parem para saltar um côrno!
Houve risada geral. Ele desceu, calmamente, e já do lado de fora, gritou:
- Agora podem levar o resto!"
" Entrando no restaurante de D. Zefinha, nas Rocas, Zé Areia pediu uma galinha assada. Veio o prato e ele ia começar a comer. Mas, num gesto fidalgo, ofereceu-o à dona da casa, nestes termos:
- Vamos comer uma galinha, dona Zefinha?
A mulher, mal-humorada, respondeu bruscamente:
- Não gosto de galinha.
Ao que ele completou:
- Isso é que é uma classe desunida!"
"Encontrando um amigo, que morava nas Rocas, Zé Areia disse:
- Eu hoje vou almoçar e jantar com você.
O homem respondeu zangado:
- Na minha casa não entra corno!
Zé Areia indagou:
- E você dorme na rua?"
"Luiz Tavares contou-nos que um dia Zé Areia chegou na casa dele, na praia, com um calção tão curto, que o velho, pai de Luiz, reclamou:
- Mas que calção danado de curto, Zé Areia!
Ele disse:
- E para o ano vai ser pior, eu venho é nu.
- Por que?- indagou o velho.
- Pra não sair de moda..."
" Estava com Zé Areia, na calçada da Tavares de Lira com a Dr. Barata, quando um anjinho surgiu, pela Frei Miguelinho, o enterro de um "anjinho". O caixãozinho azul vinha carregado por quatro crianças e mais uma meia dúzia de pessoas acompanhando. Quando o caixão ia passando bem próximo de nós, Zé Areia disse algo que nenhuma outra pessoa do mundo poderia pensar, naquele momento, apontando:
- Taí! Só bebia leite..."
"Entrando numa peixada, nas Rocas, Zé Areia observou outroa rapazes que discutiam sobre as melhores partes do peixe. Ninguém dava importância a Zé Areia, por ser um freguês sabidamente pobre. Lá pras tantas, um dos rapazes pediu a pinião dele sobre a parte do peixe que preferia. Improvisou esta quadrinha:
Embora tudo aconteça,
de valente não me gabo.
Do peixe quero a cabeça,
da mulher, prefiro o rabo.
A dona da Peixada botou-o pra fora, pelo desrespeito".
"Zé Areia, num momento de lirismo, - a informação é de Osvaldo Lamartine Faria, - disse este galanteio para uma loura que passava:
Vi pela primeira vez
jóia que andava ao léu;
encomenda que Deus fez
aos ourives lá do céu"
"Nos últimos tempos de sua vida, já doente, Zé Areia andou pleiteando uma pensão do Governo do Estado. Como sua petição, durante meses, não tivera qualquer despacho, ele mandou o seguinte recado ao Governador Mons. Walfredo Gurgel:
- Monsenhor, mande pagar a pensão em meu favor, que eu prometo só viver mais uns dois anos!".
Veríssimo de Mello. Natal, 1979 (2 Edição)