domingo, fevereiro 13, 2005

De como mudamos, Natal e eu

Raul Pereira TN

Dorian Jorge Freire

Mudou Natal ou mudei eu? Que eu mudei, confesso a Deus todo-poderoso, à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado São Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado São João Batista, aos santos apóstolos São Pedro e São Paulo, a todos os santos.
Não bastassem o peso da experiência sofrida, a testa que se alonga cabeça acima, os fios de bigodes que se avermelham, ganham tonalidade amarelo-sujo para desmaiarem no branco, há o coração feito ladrão da meia-noite, temerário, ele que foi fiel para as coisas da vida, convertido à filosofia da morte.
Há mais confiteor. A memória sutil para o pretérito, vasqueira para a hora presente. A vista cansada perde a perspectiva do imediato, embora divise ao longe, na curva do firmamento, a silhueta do Monte Nebo e o chamamento dos que já venceram o aclive e me esperam nas suas certezas.
Há, principalmente, Lia, Dorian Jorge e Cabral Neto, a me chamarem de vovô. A convocarem o pai e sua mãe para “conversar lorotas”. A me abençoarem com o futuro que eles trazem consigo.
Natal não mudou menos. Mudou diferentemente. Mudou e rejuvenesceu. Descubro nela insuspeitadas faceirices de menina-moça, esquivânças e ardis, a leve definição de angulosidade, a tênue curva do seio, rubores adolescentes, risadas estrídulas, nervosismo que não diz nada e sugere tudo.
É um bem renascer espontânea para as coisas simples. Desde que, na preocupação de mudar, a cidade dos Santos Reis sepulte sob imitativo e medíocre, mas preserve, em fino gosto de delicadeza, a ancianidade que a distingue.
Preserve os velhos casarões, os pesados portões de ferro, os azulejos portugueses, as grandes sombras das mangueiras, os becos e vielas esconsos, as conversas de calçadas, o marulhar e o remanso das zonas das mulheres perdidas, das mulheres achadas.
Uns, substituídos pela falsa noção democrática dos espigões sem alma. Outros, mal representados por assépticos motéis, incapazes da glória de uma doença do mundo, sem o relâmpago de navalhas nas noites de breu, sem o samba-canção na vitrola, a bebedeira do marinheiro quase romântico e a gargalhada liberta da puta quase menina.
Benza-a Deus, que o moderno dos novos-ricos não roubou a magia da cidade. Persista a sua ingenuidade pastoril. As suas cores ingênuas, a distribuição de pães e peixes no labirinto do seu cais.
Se tanta gente se encantou, outra gente toca de humanidade a cidade que quer ser grande, quando o seu it (quem sabe, agora, a significação de it? Somente os que vivemos o romantismo do flirt, as emoções das matinées no Rex, o desbunde das soirées do Aéro) se fixa no núcleo de sua simplicidade provinciana, Natal nascendo à beira-mar, chupando mangas-rosas no Tirol, se refrescando à sombra dos coqueiros nos pés de seus morros-limite.
Decerto, nunca mais os óculos de tartaruga de Luiz Maranhão Filho, o gordo feliz que era Djalma, a gargalhada solta de Rômulo Wanderley, o ascetismo de Hélio Galvão, a alegria pura de Varela Barca, a humildade de Aderbal de França, a compustura de Edgar Barbosa, o talento fulminante de Antônio Pinto de Medeiros, os trocadilhos de Dom Marcolino. Jamais Djalma Marinho, uma cultura tão bem organizada na aparente desorganização de um homem acima de seu tempo e de seu meio. Nunca mais, resguardado pelas garrafas de vinho, ouviremos Berilo Wanderley falar da miséria da condição humana. Como um Poe, nunca mais.
Mas aí estão, Deus os tenha, mestre Cascudinho na glória de seus 80 e picos, a resistência do anjo que é Myriam Coeli de Araújo. Aí estão os versos de Zila Mamede e Luiz Carlos Guimarães. As cores de Newton Navarro, os girassóis de Leopoldo Nelson. Os suspensórios de Luiz Maria Alves, o paletó de Manoel Rodrigues de Melo, o fio da navalha de Woden Madruga, a sabedoria de Mário Moacir Porto, a fidelidade de Otto Guerra, os discos de Grácio Barbalho, a arte de receber de Elenir-Roberto Varela, a casa aberta de Celina e Agnelo Alves, o cozido matutino na casa de Nei Marinho. Se vararmos a noite, talvez encontremos Ticiano Duarte, o gesto largo, a mão estendida cumprimentando invisíveis amigos, a voz empostada a declamar:

“Ruge, ruge tempestade,
As baterias já estão tomadas,
As mulheres de Mossoró,
Só tomam banho de madrugada”.

Além, Augusto Severo Neto, Gugu para os íntimos, sempre voltando de Paris mais Lucinha:

“Era uma casa sozinha
sem gritos
sem gargalhadas
sem vozes dentro das salas
sem louças batendo louças
sem passos pelas escadas.”

Devassaremos mistérios de Afonso Laurentino Ramos, gramcsianamente um “intelectual orgânico”, na perfeita definição de Volontê.
Assim, bem servida, descoberta/redescoberta, Natal é uma festa surpreendente nas novidades que concede aos seus devotos e na eternidade que preserva.
De formas que e de maneiras tais, que tudo se confunde na larga e compreensiva confraria. No Café São Luiz, surpreendo Milton Siqueira discorrendo sobre o papel da Igreja no mundo moderno. Na calçada, enxameiam milhões de mossoroenses, donos da cidade sitiada, agora capazes de confessarem seu fascínio por Natal. E até de se confessarem mossoroenses.
Natalenses e mossoroenses se cruzam, conversam as mesmas conversas, riem as mesmas risadas. Chego a encontrar em Natal, entre as suas mais belas senhoras, meninas lindas que foram suaves mitos de minha Mossoró recente.
Penso em Natal, neste recomeço de caminhada, os olhos voltados para o meu quintal que a porta do gabinete põe moldura. Mossoró e Natal seriam meus amores exclusivos, não tivesse havido São Paulo, a minha “Londres das neblinas frias”, a compor o triângulo amado e amante.

por Alma do Beco | 8:04 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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