segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Medo de poesia


Valderedo Nunes


Em 1986 as comemorações ao Dia da Poesia seriam feitas no bar Verso & Prosa, no pátio do Centro de Cultura. Apoiada pela Fundação José Augusto, a festa tinha tudo para se transformar em grande confraternização. Como combinado, a Fundação instalou o palco e reservou recursos para que os próprios poetas contratassem o som necessário ao evento. Como a cantora Lucinha Moreno era possuidora do sistema de som que usava em suas apresentações e os contratos estavam rareando, o dinheiro ficando cada vez mais curto, ela ofereceu o seu serviço. Os poetas podiam até contratar som melhor, mas como o corporativismo falou mais alto, para ajudá-la, decidiu-se pelo som da moça, apesar da conhecida má qualidade do equipamento.

Instalar o som de Lucinha no local foi um "Deus nos acuda". Sozinha, ela recorria aos freqüentadores do bar para ajudá-la a transportar caixas de som, pedestais, microfones, fios, toda a parafernália necessária ao espetáculo, tirando da cerveja, os irreverentes e incomodados circunstantes. Coisa típica de amador, superada, porém, pela boa vontade de todos, a tudo fazer para o sucesso da festa.

Dona da bola, Lucinha testou o equipamento e, dos testes, passou a uma apresentação que não tinha mais fim. Os poetas, inconformados, começaram a impacientar-se. Afinal, todos haviam ensaiado as suas performances e queriam apresentá-las. Só que Lucinha, esquecida que o contrato fora do som e não do seu espetáculo, a todos ignorava, mandando ver a cantoria que ninguém mais agüentava.

Inconformado, o presidente da Cooperativa dos Artistas, Venâncio Pinheiro, aproveitando-se de um momento no qual Lucinha acabara de executar uma de suas canções, toma-lhe o microfone e começa a apresentar a sua Poesia Br, "feita na munheca, tal qual punheta, feita no Brasil", gerando um clima de profundo constrangimento. Ato contínuo, Lucinha toma o microfone de volta e reinicia sua insuportável cantoria.

Os protestos avolumavam-se, mas nada da mística cantora, dona do equipamento, abandonar sua posição no palco. Aí, um quiproquó dos diabos, um bate-boca interminável, terminou acontecendo. Empurrão pra cá, tapa pra lá, poeta desfilando nu entre mesas a chamar a atenção para sua revolta, até que Lucinha, sem nenhuma cerimônia, desligou o equipamento e deu por encerrada a comemoração, ainda nem bem começada.

A filha pequena do poeta Zanoni Tadeu, em meio a toda aquela troca de acusações e xingamentos, vira-se para o pai e pergunta:

- Pai, isso é que é poesia? Eu tenho medo de poesia, pai.


Eduardo Alexandre, poeta, escritor, artísta plástico e presidente da SAMBA - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências.

por Alma do Beco | 10:29 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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