Valderedo Nunes
Em 1986 as comemorações ao Dia da Poesia seriam feitas no bar Verso & Prosa, no pátio do Centro de Cultura. Apoiada pela Fundação José Augusto, a festa tinha tudo para se transformar em grande confraternização. Como combinado, a Fundação instalou o palco e reservou recursos para que os próprios poetas contratassem o som necessário ao evento. Como a cantora Lucinha Moreno era possuidora do sistema de som que usava em suas apresentações e os contratos estavam rareando, o dinheiro ficando cada vez mais curto, ela ofereceu o seu serviço. Os poetas podiam até contratar som melhor, mas como o corporativismo falou mais alto, para ajudá-la, decidiu-se pelo som da moça, apesar da conhecida má qualidade do equipamento.
Instalar o som de Lucinha no local foi um "Deus nos acuda". Sozinha, ela recorria aos freqüentadores do bar para ajudá-la a transportar caixas de som, pedestais, microfones, fios, toda a parafernália necessária ao espetáculo, tirando da cerveja, os irreverentes e incomodados circunstantes. Coisa típica de amador, superada, porém, pela boa vontade de todos, a tudo fazer para o sucesso da festa.
Dona da bola, Lucinha testou o equipamento e, dos testes, passou a uma apresentação que não tinha mais fim. Os poetas, inconformados, começaram a impacientar-se. Afinal, todos haviam ensaiado as suas performances e queriam apresentá-las. Só que Lucinha, esquecida que o contrato fora do som e não do seu espetáculo, a todos ignorava, mandando ver a cantoria que ninguém mais agüentava.
Inconformado, o presidente da Cooperativa dos Artistas, Venâncio Pinheiro, aproveitando-se de um momento no qual Lucinha acabara de executar uma de suas canções, toma-lhe o microfone e começa a apresentar a sua Poesia Br, "feita na munheca, tal qual punheta, feita no Brasil", gerando um clima de profundo constrangimento. Ato contínuo, Lucinha toma o microfone de volta e reinicia sua insuportável cantoria.
Os protestos avolumavam-se, mas nada da mística cantora, dona do equipamento, abandonar sua posição no palco. Aí, um quiproquó dos diabos, um bate-boca interminável, terminou acontecendo. Empurrão pra cá, tapa pra lá, poeta desfilando nu entre mesas a chamar a atenção para sua revolta, até que Lucinha, sem nenhuma cerimônia, desligou o equipamento e deu por encerrada a comemoração, ainda nem bem começada.
A filha pequena do poeta Zanoni Tadeu, em meio a toda aquela troca de acusações e xingamentos, vira-se para o pai e pergunta:
- Pai, isso é que é poesia? Eu tenho medo de poesia, pai.
Eduardo Alexandre, poeta, escritor, artísta plástico e presidente da SAMBA - Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências.