10/06/2001
Sanderson Negreiros
Santayana, certa vez, ao assumir sua cátedra de filosofia, exclamou para os alunos: "Hoje, não tem aula. A Primavera chegou".
Ora, direis, ver e ouvir primaveras em plenos trópicos tristes. De certo perdestes o senso, na avaliação bilaquiana. Mas a verdade é que aportou, nesta noite, nesta Casa, um grande poeta e um personagem denso e rico de aventura humana, a que nos compete obviamente, mas a mais difícil de enriquecer. E ele o sabe.
O poeta Luís Carlos Guimarães ocupa a cadeira de Newton Navarro e Jorge Fernandes, segundo os trâmites chamados legais. Mas, sobretudo, obriga-nos a lembrar da definição de Augusto de Campos sobre outro poeta americano, Wallace Stevens: "Ele é um inclassificável construtor de sonhos reais".
Desvestido das vestes talares que a regra acadêmica preceitua, recordo o jovem estudante de Direito na cidade de João Pessoa, apresentado a mim por Dorian Gray Caldas, o primeiro amigo que eu fiz, ao sair, aos 13 anos, do seminário. E com ele, Luís Carlos, já o acompanhava a maneira de ser quase única: uma certa bondade instintiva para ser aberto à empatia diante da vida. Éramos os três, os amigos moicanos: Dorian, ele e eu. Ainda há pouco, Dorian encontrou uma fotografia do começo dos anos 50 - em disponibilidade total, passeando pela praça Pedro Velho, estávamos a descobrir na literatura um caminho de alumbramento e realização interior. Éramos livre e não sabíamos.
De repente, Dorian encontra o que talvez tenha sido o primeiro poema de Luís Carlos, que ele escondeu durante anos inteiros. E dizia.
"Aqui, jaz um menino azul
tragicamente desaparecido
num desastre de velocípede".
Para mim, foi uma revelação. Era possível tratar a poesia com os fatos, acontecimentos e palavras do cotidiano.
Antes, ainda sem saber como se vive fora das centenas de paredes de um seminário, eu encontrara Dorian Gray numa livraria, no centro de Natal, que se chamava "Boi Tatá". Olhei para Dorian e, à queima-roupa, sem saber quem era ele, perguntei: "Você acredita em Deus?".
E, pela vez inicial, eu via diante de mim um livro de poesia moderna: "O Narciso Cego", de Thiago de Mello. No seminário não havia bibliotecas. A conversa deve ter trazido susto positivo a Dorian, que logo me levou para conhecer Newton Navarro, hospedado na casa de Moacir de Góes, na avenida Rio Branco. Eram cinco horas da tarde - e Newton estava se levantando de uma noite mal dormida.
E meus treze anos se modificaram. De poesia, só conhecia o "Navio Negreiro", de Castro Alves. Dorian, Newton, Zila e Luís começaram a me ensinar Poesia.
Hoje, lendo e relendo os poemas de Luís Carlos, sinto o quanto de vida passada, como arcabouço perfeito, tem não só de sua infância vivida nos altiplanos de Currais Novos, provendo com olhar profundo as serras azuis da Borborema, como, igualmente, sua poesia é doação de amizade, de ternura fraterna, em torno de amigos, parentes e instantes que o empolgaram. Na sua humanidade mais radical. Seu lirismo, que se contém nos limites perseverantes de amplo conhecimento do fazer poético: ele não só traduz, mas é capaz de retirar poesia de qualquer prosa ou pedra. Foi ele quem salvou do esquecimento os poemas de José Bezerra Gomes: organizou a antologia dessa figura estranha, de dons às vezes geniais, que só o Rio Grande do Norte tem, exemplar na sua figuração única com outro poeta revelador: João Lins Caldas, também salvo do naufrágio do tempo por Celso da Silveira.
Hoje, experiente domador da surpresa da vida, com o coração que já recebeu safenas - que, nele, se tornaram em verbenas- na sua humilde caminhada despretensiosa pelas ruas e solidões da sobrevivência, é o emissário de um rei desconhecido, como lembrava Fernando Pessoa; e tem saudades de uma paisagem que não há, seguindo ainda a versão do poeta português. Mas essa paisagem está dentro dele, e começou com a visão mais bela de sua infância currais-novense, ao lado de Neto Guimarães, o pai guerreiro e libertário; e de dona Titila, que era só suavidade, silêncio e doçura. E cresceu com Leda nos passeios de mão dada na Lagoa de João Pessoa. Bezerra Gomes me dizia que o maior símbolo do Seridó era um pé de algodão e um galo-de-campina pousado em cima do capucho branco. Quem já viu isto, terá de ser poeta, para revelar o inexprimível, contemplar o que está por trás da beleza exposta e memorizar os dons e sons que o vento canta, assobiando em atropelo, quando sobe a Serra do Doutor, para chegar ao Seridó.
Poeta Luís Carlos Guimarães: você sucede a Newton Navarro, a quem tanto devemos, nós todos que formávamos uma geração: Zila Mamede, Celso da Silveira, Miriam Coely, Wondem Madruga, Diógenes da Cunha Lima, Berilo Wanderley, Ney Leandro de Castro o que lhe devíamos? Simplesmente, pelos momentos, às vezes raros, em que falava de suas experiências de leitura, de pintura, de artistas que conhecera e dialogra, transitando em julgado nossa falta de vivência literária numa Natal sonolenta, que nos sonegava, muitas vezes, os grandes autores. Nisso, lembro uma vez, Navarro falando para Paulo de Tarso Correia de Melo, este ainda um menino e seu vizinho, sobre William Faulkner. Pouco tempo depois, Paulo lia Faulkner no original.
Nossa amizade, tão antiga, e tão acrescentada, de Diógenes da Cunha Lima, que nasceu com a ciência infusa, e para quem, muitas vezes, e tantas, empurrávamos de graça um carro seu, Ford e antiquíssimo e preto, nas ladeiras da rua José de Alencar. Parece que estou a ouvir Navarro, afirmando para mim, acerca de Ney Leandro: "Este será um grande poeta". Ney era um adolescente de 15 anos; e estávamos em um jantar no restaurante que fica nos altos do Natal Clube. E de onde se via a cidade, das Quintas profundas às Rocas melancólicas.
Tanta vida, meu Poeta, e ainda tanta esperança! Voltaica visão do passado, hoje você ministro da simplicidade sensível de viver e contemplar - contemplari aliis tradere - como está no dístico dos monges trapitas, que você, de vez em quando, telefona-me com vontade de conhecê-los em um monastério. Por eles, o maior deles, pelo menos em nosso século, que foi Thomas Merton, escreveu em seu diário: "Vivo sob o signo de Jonas. Viajo para meu destino no ventre de um paradoxo". Não é paradoxo. É Deus, ó Thomas Merton!
Nesta noite, um hiperespaço, um comprovado pela física quântica, aqui se ocupa com personagens, para todos nós, inesquecíveis: Jorge Fernandes, Antônio Pinto de Medeiros, Zila Mamede, Berilo Wanderley, Veríssimo de Melo (ali, de pé no estrado e na estrada, Luís Rabelo, Walfran de Queiroz, Miriam Coely, Américo de Oliveira Costa, o mestre querido, e tantos e quantos já se goram para a Outra Margem. Quando de repente, entre Cascudo, cabeleira leonina, olhos trespassados de azul, caminhando como verdadeiro protonatário apostólico, de casemira inglesa e colete branco. Como o vi numa tarde sedenta da Ribeira, e passando diante desta mesa, exclama: "Digo que todos os poetas estão abençoados".
Que quer você mais do isso, querido irmão? Só se for Berilo Wanderley solfejando para nós, como fez tantas vezes, o "Carinhoso", de Pixinguinha.
(Discurso de saudação na posse de Luís Carlos Guimarães, na Academia Norte-Riograndense de Letras, em agosto de 1999)