Artista Plástico Valderedo Nunes, em expo na Rua Cel. Cascudo/Bar de Nazaré
Um dos últimos redutos dos artistas e boêmios no centro de
Natal, o Beco da Lama vem se tornando palco de manifestações
culturais prestigiadas não somente pela fauna humana que o
freqüenta com pontualidade. Alguns dos eventos realizados na
rua Dr. José Ivo, nome oficial do logradouro que se estende entre
a Ulisses Caldas e Heitor Carrilho, cortando a João Pessoa, na
Cidade Alta, têm atraído até mesmo parcela da sociedade chique
tradicionalmente avessa aos botecos modestos e restaurantes
populares que ali proliferam. A idéia é que isto aconteça com
mais regularidade, segundo os membros da Sociedade dos
Amigos e Moradores do Beco da Lama e Adjacências (Samba),
entidade que há quatro anos levanta a bandeira da preservação
do patrimônio histórico que o local abriga.
Se depender da nova diretoria da Samba, que tomou posse em
meio a ambiente festivo no mês de maio, com apresentações
de bandas e performances dos remanescentes das tribos
undergrounds, o Beco da Lama e adjacências irão ganhar um
calendário de eventos que ajudará a resgatar sua história e ampliar
seu acesso a todas as classes sociais. “Queremos promover pelo
menos um evento por mês”, afirma o poeta Plínio Sanderson,
40 anos, laureado com o prêmio Otoniel Menezes 2002, diretor
cultural da entidade.
O carro-chefe desta programação, segundo ele, será um
evento que prestará homenagem póstuma a todos os grandes
“habitues” da área, famosos e anônimos, talentosos ou não, que
contribuíram para que o lugar ganhasse uma áurea pitoresca e
se consolidasse, ao longo de tantas décadas,
como ponto de encontro de artistas plásticos,
músicos, poetas, escritores, cultuadores e
apreciadores das artes em geral. Enquanto a
grande maioria dos mortais estiver chorando
seus mortos nos cemitérios, no feriado do Dia
de Finados, em novembro, a Samba garante que
estará promovendo uma animada festa, que se
repetirá nos anos seguintes, com exposição
de fotos, recital de poesia e apresentação de
músicas que lembrem os baluartes do Beco
da Lama e adjacências, como o foram, por
exemplo, o artista plástico e escritor Newton
Navarro, o poeta Bosco Lopes e o cantor
pau-de-arara Odair Soares, todos de saudosa
memória.
Se os mortos merecem loas, os vivos mais ainda,
com o projeto “Calçada da fama”, idealizado no
molde hollywoodiano para render homenagens
aos que ainda estão entre nós. Outra meta da
nova diretoria da Samba é popularizar a lavagem
do beco, ao estilo baiano, com a participação
das entidades de Umbanda e dos comerciantes
que, alojados naquela área, vendem artigos para
adeptos das religiões afro-brasileiras. Além do
marketing que a realização invoca, conforme
ficou comprovado nas duas edições anteriores,
o objetivo é “limpar as energias” que confluem
para aquele refúgio natural de boêmios,
jogadores inveterados e “malucos” em geral.
“Enfim, queremos transformar o beco num
corredor cultural”, revela Plínio Sanderson.
O médico e sindicalista João Batista de Lima, o
Zizinho, que passou o cargo de diretor executivo
da Sociedade dos Amigos e Moradores do Beco
da Lama e Adjacências para o produtor cultural
e poeta Eduardo Alexandre, o Dunga, conta
que a idéia de fundar a entidade nasceu entre
aqueles que alimentam “um certo amor pelo
centro da cidade e sua parte mais antiga”. A
fonte de inspiração, segundo ele, brotou das
inúmeras iniciativas semelhantes ocorridas
em cidades onde a população despertou para
a necessidade de prezar seus sítios históricos,
como a do Rio de Janeiro. “Nosso objetivo foi
o de alertar a comunidade e o poder público
para a importância de tombar e preservar um
patrimônio histórico como esse”, disse Zizinho,
53 anos recém-comemorados, claro, num dos botecos do bunker
da boemia natalense que ajuda a manter ativo.
Foi na sua gestão que o Beco da Lama, com suas casas e casarões
antigos, abriu suas fronteiras para a penetração de notívagos e
foliões acostumados aos cenários modernos da capital. Além da
lavagem do beco, a Samba promoveu, nos anos anteriores, festas
como as dos tributos a Chico Science e Noel Rosa, carnaval
com banda de frevo e marchinha e um grande mutirão entre
artistas plásticos para a pintura do seu calçamento, entre outras
realizações.
Novas gerações mantêm a
tradição e o folclore do lugar
Várias gerações de biriteiros já se aposentaram ou se
“encantaram”, mas o Bar do Nasi, na esquina da rua Dr. José Ivo
com a Coronel Cascudo, no coração do Beco da Lama, continua
com suas portas abertas aos profissionais do copo e amadores
da conversa solta, possivelmente sem o mesmo glamour de
décadas atrás, quando o velho Nasi Miguel Canan (Nasi, como
era conhecido) descendente de libaneses, adotou uma clientela
fiel ao aperitivo que ainda hoje dá fama ao estabelecimento: a
meladinha, feita com cachaça, mel e limão.
O patrono da casa faleceu em dezembro de 2001, aos 76 anos,
mas deixou descendentes para cultuar sua memória e a do bar ao
qual dedicou 40 anos de sua existência, de 1955 a 1995, quando
adoeceu de diabetes e transferiu a administração do negócio para
o filho Nasi Adoniram Fernandes Canan, hoje com 34 anos.
“Mesmo doente ele vinha aqui todos os dias”, conta Adoniram.