Revista Preá Nº 1 / FJA
As casas que antigamente se situavam na avenida
Rio Branco e nas ruas Vigário Bartolomeu e
Gonçalves Ledo tomavam todo o quarteirão. A
água da roupa lavada, conduzindo os dejetos e
outras impurezas dos bichos soltos nos quintais,
escorria para o beco dos fundos, dando origem
ao nome do gueto que, tempos depois, passou a
ser sinônimo de boemia e vagabundagem. Isto
aconteceu depois da segunda metade da década
de 40, segundo o procurador aposentado da
Assembléia Legislativa, Manoel Procópio de
Moura Júnior, 63 anos.
Segundo ele, no final do século XIX e primeira
metade do século XX, a rua Voluntários da
Pátria, no trecho entre a Ulisses Caldas e
Coronel Cascudo, também na Cidade Alta, era
conhecida como Beco da Lama por causa do
que nela havia de sobra. Este trecho foi fechado,
entre 1937 e 1945, passando o acesso a fazer
parte dos quintais das casas localizadas nas ruas
da Conceição e Vigário Bartolomeu. Com isso,
afirma Moura Júnior, a denominação de Beco
da Lama foi transferida para a rua Dr. José Ivo,
que durante muito tempo foi conhecida como
rua do Meio, por se localizar entre a avenida
Rio Branco e Vigário Bartolomeu.
Moura Júnior viveu 30 anos de sua vida nas
proximidades do atual Beco da Lama. A casa
onde nasceu pelas mãos da parteira Salomé
Carvalho de Albuquerque Maranhão, mãe
do ex-prefeito de Natal Djalma Maranhão,
ficava entre a casa do poeta vanguardista Jorge
Fernandes, na Vigário Bartolomeu com fundos para a Dr. José
Ivo, e a de Bartolomeu Fagundes, dono do cartório herdado pelo
filho Armando, na rua da Conceição. Foi ali que começou sua
carreira de boêmio, encerrada há alguns anos. Foi dali, também,
que guardou sua recordação mais preciosa: a amizade com o
poeta precursor do modernismo. Quando Jorge Fernandes
morreu em julho de 1953, aos 66 anos, ele tinha apenas 13. A
diferença de idade, porém, não foi empecilho para que os dois
se tornassem íntimos.
Moura Júnior tinha um apelido, Bibita. Na noite em que o poeta
fechou os olhos para este mundo, a filha Alice invadiu correndo
a casa de seu Nezinho (pai de Moura), para levar Bibita até à
cama do moribundo, que queria vê-lo. “Ele morreu segurando
minha mão”, lembra. Muito tempo - antes desta hora final - os
dois passaram juntos. Jorge costumava chamar Bibita para tomar
suco de limão, fruto que o garoto colhia da árvore do vizinho. Só
depois Moura Júnior descobriu que a limonada trazida para ele
por dona Alice (esposa do poeta e que tinha o mesmo nome da
filha) não era a mesma oferecida ao poeta, que naquelas ocasiões
tomava batida de limão.
Rezando em cartilha diferente
Os botecos do Beco do Lama sempre foram ocupados pelos
boêmios que não rezavam - e o verbo também pode ser conjugado
no presente - pela cartilha da sociedade bem comportada. Na
época em que os holofotes pipocavam na direção da Confeitaria
Cisne, Acácia Bar e Sorveteria Aracati, nas imediações do Grande
Ponto, locais freqüentados por figuras ilustres como o mestre
Câmara Cascudo e o dr. João Medeiros Filho, alguns preferiam o
beco e adjacências, onde pontificavam, por exemplo, o Granada
Bar e Oásis. Depois se instalaram por ali comerciantes como
Nasi, Odete e Chico, cujas casas continuam abertas ao público,
sempre renovado ao sabor das estações dos anos.
Entre os anos 90 e 91, há quem lembre, fez sucesso o Balalaika,
um espaço cultural alternativo e independente, sem vínculo
com instituições oficiais, onde se realizavam lançamentos de
livros e exposição de artes plásticas. Também havia sala para a
comercialização de livros usados e de artigos do sertão, mas o
movimento maior, sem dúvida, era no bar onde loucos e sãos se
confundiam como gatos pardos na noite. Um dos proprietários
do lugar, o livreiro e editor Abimael Silva, 40 anos, conta que a
derrocada do Balalaika foi durante o Plano Collor, que confiscou
a poupança dos brasileiros. A deles também.