Falves Silva
Amanhã virão os Pássaros negros.
Les chemim du la Liberté
Jean-Paul Sartre
A Década de 60 deixou toda uma geração em estado de alerta. Aqueles acontecimentos marcaram, como ferro em brasa, o comportamento de todos os jovens, que, como eu, estavam ávidos por informações a respeito da vida e do mundo que nos cercava. O chamado conflito de gerações estava nos corações e mentes da juventude em todo o mundo.
Com o fim da era denominada juventude transviada, tão bem exemplificada no filme Nicholas Ray, com esse título, e ouvindo os últimos acordes da Jovem Guarda. Com uma nova indumentária proposta por Mary Quant, a mulher se libertaria de um tabu secular, podendo mostrar suas pernas para o mundo, com o uso da minissaia. A teoria da globalização já estava em moda. Seu idealizador, Marshall McLuham, era o guru da intelectualidade mais rebelde, bem como a filosofia de Hebert Marcuse.
A revolução chinesa, liderada por Mao Tse Tung, era assunto em revistas e jornais de todos os recantos do planeta. O grito de rebeldia dos Beatles e Rolling Stones ecoava em nossos tímpanos como o som de uma metralhadora - RÁ-TÁ-TÁ-TÁ; o Cinema Novo brasileiro incorporaria uma nova estética vinda da França, através do Nouvelle-vague. Mudanças comportamentais sugeriam um novo estilo de vida. As contradições do sistema, por um lado, a repressão policial imposta por ditaduras militares na América Latina, por outro lado, as propostas de liberdade do movimento hippie, e, paralelo a tudo isso, o recente genocídio da guerra do Vietnã, milhões de mortos, em nome do nada.
A teoria da poesia concreta que vinha do Sul via Moacyr Cirne, e posteriormente a radicalidade do Poema Processo. O tropicalismo propondo uma saída longe do conformismo, “sem lenço e sem documento”.
Os assassinatos de Martin Luther King, Che Guevara, John Kennedy e a morte de Marylin Monroe fecharam o círculo de fogo daqueles dias; no Brasil, a guerrilha urbana demonstrava as potencialidades de uma geração inconformada com as pressões do regime militar; enquanto isso, diante de tantos conflitos, estávamos aqui, nas cocadas do Grande Ponto, “dando milhos aos pombos”.
Arte: Falves Silva
As Cocadas ficavam no local onde hoje é a praça Kennedy. Eram blocos de cimento armado, formando bancos, cuja semelhança com cocadas era evidente, daí esse nome. Era naquele local, onde os expoentes daquela geração resolviam os problemas do mundo. Manoel Onofre Júnior, Jarbas Martins, Inácio Magalhães, Ivanêz e “Alma de Vaqueiro” formavam o grupo dos conservadores. Gilberto Stabille, Alderico Leandro, Roberto II, Paulo Rocha (Palocha), Bené Chaves, Valdeci Lacerda, Francisco Sobreira, que chegara recentemente de Fortaleza, Franklin Capistrano, Moacy Cirne
Moacy Cirne
e eu, éramos a turma do Cine Clube Tirol. O pessoal da esquerda revolucionária era composta por Hermano Paiva, Antônio Capistrano, Juliano Siqueira, Alderico Leandro e outros (este último entraria para a guerrilha em seguida). Os novatos, Alderico Leandro e Natanael Virgínio (meu irmão), Marcos Silva, Léscio e Bosco Lopes. Tinha ainda o grupo dos “pra frente”. Pra frente significava cabelos compridos, calça boca de sino e estar atualizado com o que existia de mais moderno naquele momento; Alexis Gurgel, José Ribamar, Fernando Pimenta, João Charlier, Gersino Saraiva e eu, que, eventualmente, transitava simultaneamente em um ou dois grupos. Por último o pessoal da casa do estudante, cujo presidente, Emanuel Bezerra (outro que ingressaria nas fileiras da guerrilha e que posteriormente seria assassinado nos porões da ditadura), Manuel Duarte (Manu), Dagmar Fernandes, Raimundo Hélio, François Silvestre. Além desses, outros também freqüentavam as Cocadas: Carlos Furtado, Toinho Gurgel, Dailor Varela,
Dailor Varela
Gileno Guanabara, Francisquinho Gurgel (o gordo) e Anchieta Fernandes. As questões pertinentes naqueles dias eram a política, música, literaturas e mulheres. Éramos todos solteiros, porém as grandes discussões dos meados dos anos 60 giravam em torno da Sétima Arte.
Há apenas quatro décadas, Natal não possuía os atrativos dos dias de hoje. Não existiam as Universidades, não havia Shopping Centers e os sinais da televisão só apareceriam na década seguinte. Com a criação do Cine Clube Tirol, em 1961, o entretenimento por excelência era aquele que McLuham denominara de “a universidade sem paredes”: o cinema. De qualquer forma, toda aquela rapaziada citada acima estava ligada direta ou indiretamente ao Cine Clube Tirol. Saía aquela romaria em direção às Cocadas do Grande Ponto, para teorizar sobre Cinema, Literatura [Chegara na Livraria Universitária, as últimas traduções de Kafka, Henry Miller, James Joyce, J.D. Sallinger]. Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, e Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto, estavam em pauta nas discussões. Desse caldeirão de adversidades, surgiria uma nova mentalidade de artistas, intelectuais e políticos que, em breve, mudaria o rumo das artes e da política no Rio Grande do Norte.
Moacy Cirne migrou para o Rio de Janeiro, “porém sem nunca deixar de referir-se em seus textos às raízes potiguares”. No Rio, milita como professor na UFRJ, crítico, poeta e teórico de vanguarda. Cirne tem em seu currículo cerca de duas dezenas de títulos publicados, entre os quais, A Poesia e o Poema do Rio Grande do Norte. Francisco Sobreira é senhor de uma prosa comparável a qualquer escritor de boa qualidade do Nordeste. Aliás, Sobreira retrata muito bem o clima de divergências entre os membros do Cine Clube Tirol daquele tempo, no seu romance Palavras Manchadas de Sangue, onde os personagens foram todos sócios daquela agremiação. Eles são assassinados, e, aqui, Sobreira deixa transparecer ainda um certo rancor acerca daquelas discussões.
Anchieta Fernandes
Anchieta Fernandes, um dos grandes nomes das letras potiguares, pesquisador, teórico e poeta, autor de vários textos, alguns ainda inéditos, incompreendido e discriminado, é autor do ensaio o Ecran Natalense, onde traça o perfil da história do cinema da cidade, além do excelente Por uma vanguarda nordestina, primeiro texto sobre vanguarda do Rio Grande do Norte. Um grande crítico. Bené Chaves, outro escritor mal compreendido, com uma linguagem definida. Chaves cria seus personagens como marionetes que lembram de perto o clima dos filmes de Antonioni. Com um texto autobiográfico, ele cria uma cidade imaginária, “Gupiara”, onde seus tipos procuram o significado de suas existências. Seu último romance, A mágica ilusão, reflete a grande influência da linguagem cinematográfica em sua obra. Manoel Onofre Jr., contista, historiador, pesquisador, autor de vários livros, ensaios sobre música. Onofre revela-se um dos grandes nomes da literatura potiguar. Ciente do seu ofício de escritor, Onofre versa sua prosa para uma linha regional. Jarbas Martins, poeta bissexto, articulista de mão cheia, colabora com jornais da cidade. Autor de Contra Canto, uma poesia cheia de surpresa. Inácio Magalhães, misto de nômade e sedentário do pessoal das Cocadas, é o mais viajado. Conhece o Brasil de Norte a Sul e, de quebra, ainda alguns países da América Latina e Europa. Homem simples, de formação católica, autor de Memórias de um Vendedor de Cavaco Chinês. O livro fala sobre sua infância em Ceará-Mirim. Um grande intelectual. Alderico Leandro e Natanael Virgínio, o primeiro transitou no jornalismo radiofônico e televisivo durante trinta anos; o segundo, trabalhou na redação da Tribuna do Norte como repórter policial durante mais de vinte anos. Virgínio escreveu bons artigos e contos no início de sua carreira. No entanto, desencantou-se com as letras e não teve como desenvolver seu talento como escritor. Marcos Silva, outro que escolheu o Sul como opção. Catedrático na USP, escritor, pintor, poeta e articulista, colabora em jornais e revistas de todo Brasil, entre eles, O GALO. Autor de vários livros, é professor da cadeira de História Contemporânea. Valdeci Lacerda e Ribamar Gurgel não tiveram tempo de expressar o talento promissor que ambos demonstravam ter: subiram para o primeiro andar antes do tempo, vítimas de desastres automobilísticos. Franklin Capistrano e Juliano Siqueira enveredaram para política partidária. Capistrano, psiquiatra, poeta, articulista e vereador pelo PSB, autor de Catagramas, Poemas da Flor da Pele e Poemagens, sua poesia é seca e cortante como uma lâmina, onde transita no campo da metalinguagem. Siqueira, poeta, articulista e brilhante orador, possui o talento nato dos grandes políticos, o último grande marxista. Gersino Saraiva também entrou para a guerrilha. Com sua prisão, tempos depois, Saraiva se retrataria, causando um certo desconforto ao pessoal da esquerda. Bosco Lopes e Alexis Gurgel levaram até às últimas conseqüências o uso das drogas, vítimas de uma sociedade mal estruturada. Gurgel, jornalista talentoso e polêmico, ardoroso defensor de uma vanguarda potiguar, seu livro, Cultura de Massa em Processo, comprova sua inquietação. Bosco Lopes, poeta e boêmio, autor de dois livros, Corpo de Pedra e Projeto Zero, este último dentro das propostas do Poema Processo. João Charlier e Fernando Pimenta, irmãos de Anchieta Fernandes, também poetas. Charlier colabora em jornais onde publica seus poemas. Pimenta, poeta, como Jarbas Martins, é também bissexto. Ganhou alguns prêmios de poesia nos anos 70, e tem um livro no prelo. Hermano Paiva, Antônio Capistrano, Raimundo Hélio e Manu, os três primeiros foram deputados estaduais. Capistrano continua na política. É vice prefeito em Mossoró. Quanto a Manu, sempre militou na política nos bastidores da esquerda. François Silvestre, romancista e articulista com vários livros publicados, colabora em jornais da cidade. É o autor de A pátria não é de ninguém. Dagmar Fernandes trilhou o caminho da burocracia. Dailor Varela, outro que partiu para São Paulo, jornalista e poeta, autor de vários livros de poesia, é um dos expoentes do Poema Processo. Carlos Furtado, teatrólogo, dirigiu uma dezena de peças, algumas premiadas em vários estados do Brasil. Um diretor de talento insofismável. Gileno Guanabara, outro que também entrou nos bastidores da política do Rio Grande do Norte.
Todos esses nomes aqui relacionados, fizeram, nas Cocadas, seu aprendizado. Hoje, passados todos esses anos, somente Palocha e eu continuamos freqüentando o Grande Ponto como guardiões do centro da cidade. Continuamos sempre em estado de alerta, numa esquina ou noutra.