terça-feira, fevereiro 15, 2005

Vozes incompletas



Pablo Capistrano - Escritor, professor de filosofia

Estou convencido de que Bach não fez apenas música. Pegue a abertura da Suíte Orquestral número 03 em Dó maior. Ouça os seus 17 minutos e 34 segundos de flautas transversais, violinos, viola, violoncelo, contrabaixo e cravo. Depois diga, sinceramente, se não se está diante de uma experiência mística. Mas, além de elevar as potencialidades do som até a borda do inefável, Bach também quebrou tabus centenários e acabou por liberar a voz de sua prisão. Um dia Bach subiu a tribuna da Igreja de Arnstadt acompanhado de uma jovem desconhecida. Era Maria Bárbara, sua primeira esposa. A jovem soprano acompanhou Bach que tocava órgão e deixou em fúria os fiéis que ouviram a peça. A mulher deveria permanecer calada dentro da Igreja. Ela representava as coisas do mundo, a sedução do pecado, a impureza do desejo. Sua voz não teria a sobriedade necessária para cumprir a função fundamental da música. Para abrir as portas do mundo ao mais alto. Ao divino. Para completar a experiência auditiva de arrebatamento.

Graças a Bach as mulheres começaram a cantar. Desde então a voz humana nunca mais foi vista da mesma forma. Caruso e Bono Vox que me desculpem, mas a voz humana elevada a categoria de arte é mesmo uma prerrogativa feminina. Adoro as cantoras. Billie Holiday, Maria Callas, Bjork e Nico. Mas Nico tem algo de mais desconcertante. A incompletude. Para quem não conhece a moça vou dando umas pistas. Ela nasceu em Budapeste, filha de pai húngaro e mãe espanhola e recebeu o nome de Christa Päffgen. Seu pai morreu num campo de concentração nazista e ela passou a infância na Alemanha debaixo de uma chuva de bombas e pedaços de corpos humanos. Com quinze anos virou modelo e figurou no clássico La Doce Vita de Fellini. Teve um filho com Alain Delon e depois foi para Nova York onde caiu nas graças de Andy Warhol que tentou alavancar sua carreira de cantora. Participou da realização de uma das obras primas do rock, o disco Velvet Underground and Nico. Cantou em poucas faixas porque Lou Reed temia ser sufocado pelo poder de sua voz. Depois tentou carreira solo deixando, ao menos uma outra obra prima, o disco Chelsea Girl. Morreu em 1988, após um passeio de bicicleta em Ibiza. Ataque cardíaco fulminante. Dizem as más línguas que motivado por um consumo exagerado de cocaína.

Ouvindo as suas gravações precárias realizadas em shows gravados em bares vagabundos com um equipamento de som horroroso, sente-se um profundo vazio. O poder da sua voz parece nunca ter sido explorado de modo efetivo. Em muito por causa dos recursos técnicos precários em muito por algumas opções estéticas equivocadas. Nico é uma cantora incompleta por causa disso. No meio da precariedade sonora de seus shows ao vivo, de vez em quando, entre uma microfonia e outra, podemos ser surpreendidos por uma elevação de timbres graves, que ecoam pelo ambiente, calando os instrumentos e produzindo um misto de medo e fascinação. Sinistra e suave, tosca e delicada, Nico parece sintetizar de um modo a um só tempo fantasmagórico e intenso todos os demônios de sua época. Tivesse ela nascido na época de Bach, talvez pudesse ter chafurdado no colo de Deus. Mas aí teríamos a encruzilhada do silêncio porque, antes do vinil e do CD, como tão bem identificou Walter Benjamin, a arte se esgotava no momento. Essa é a fascinação da música. Nunca mais vamos poder ouvir Bach e Maria Bárbara na Igreja de Arnstadt como podemos ouvir, ainda hoje, trinta e três anos depois, a voz de Nico registrada no Bataclan Club em Paris num dia 29 de Janeiro de 1972. Talvez seja essa ansiedade que faz a música algo fascinante. Você ouve o CD mau gravado e imagina: como seria se eu estivesse lá? Você olha a partitura da música e imagina: como se tocava isso? Não existe resposta para essas perguntas. A massificação da música, a reprodutibilidade técnica do som, pode ter criado uma bela ilusão. No entanto só a experiência da música completa seu sentido.

por Alma do Beco | 8:08 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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