terça-feira, fevereiro 15, 2005

Cinco evocações de um ponto que era grande

Rua João Pessoa vista da Praça Pio X

Claudio Galvão

1. “O Botijinha”, cruzamento da rua João Pessoa com Princesa Isabel.

São sete horas da uma noite distante. Passam homens de paletó e gravata, chapéus na cabeça.
No alto de um poste, um alto-falante toca uma marcha militar e o locutor anuncia uma crônica de um político da cidade. A melodia ainda pode ser ouvida claramente no meu registro mental.
Meu pai me conduz pela mão ao prédio da esquina, o Café Botijinha. Por trás do balcão, “Seu” Jardelino, de branco, gravata escura, baixinho, bigode fino, sorriso.
Sentamo-nos. Um garçom de camisa branca, de mangas compridas, vem servir dois cafés pequenos no local. Uma pequena mesa de metal com tampo de mármore branco (ainda bem que Jardelino Filho conservou uma delas). Era muito alta ou eu muito pequeno?
Hoje, posso alcançá-la, pois cresci em altura e em saudade.


2. Casa Revil e Confeitaria Cisne, no meio das quadras, entre Rio Branco e Princesa Isabel.

O tempo meio chuvoso e até friorento lembra que o São João está perto.
A Casa Revil e a Confeitaria Cisne abrem suas vitrines repletas dos mais variados fogos para as festas juninas. Parece que disputavam qual seria primeiro visitada pela meninada da região.
Ali estavam, um sem número de foguetes de estouro e de apito, vulcões, chuvas de ouro, chuvas de prata e as que lançavam bolas de cores, as caixinhas de “cara-duras”, e os mais caros e inacessíveis morteiros.
Tem cheiro de fogueira no ar. E um gostoso perfume da pólvora queimada. No céu, um desenho luminoso, colorido e inesquecível. Rápido se desfaz, fugaz como o tempo, que não pôde manter acesas as vitrines da Casa Revil e da Confeitaria Cisne.

3. “O Zepelin”, esquina da rua João Pessoa com a avenida Rio Branco.

Uma simpática estrutura de madeira e metal, pintada de azul. Pequenas vitrines de vidro com cigarros e muitas coisas à venda.
Jornais pendurados. Revistas, as desejadas “Gibi”, “O Guri”, “O Globo Juvenil”. Em cada quadrinho, a possibilidade de entrar e compartilhar a ação de figuras que ainda não eram chamados de super-heróis. Ali estavam o Super-Homem, o Titã, o Capitão América, Tocha-Humana e Centelha, o Homem e a Mulher Bala, os membros da Família Marvel. Todos lutavam contra bandidos e eu não compreendia porquê.
Naquela esquina, estavam também as balas de figurinhas e os álbuns para colar as nunca completadas coleções. Mesmo assim, a meninada circulava por ali, em ansioso troca-troca, na busca das mais difíceis. Quem encheu um álbum?
No Zepelin estão pessoas que eu não conhecia, mas que se tornaram familiares. “Seu” Luís Cortez, olhos azuis, pouco cabelo; “Dona” Guiomar, sua esposa e os filhos, que ajudavam nas vendas.
O Zepelin era a fronteira para o irreal, o limite para o sonho. Assim como o grande dirigível, podia me levar para um mundo distante, fazer viver situações irreais povoadas de seres poderosos, invejados e imitados nas brincadeiras que o tempo distanciou, mas a saudade pode trazer de volta.

4. Cinema Rex

No Domingo, às nove horas, começava a sessão infantil. Um perfume gostoso de confeito (não se dizia bala). Iniciava com o “jornal”, notícias nacionais e internacionais, onde se podia ver Hitler discursando e o Papa Pio XII conduzido em uma cadeira mais parecida com um altar. Eram pessoas de minha convivência dominical.
Em seguida, vinham os “traillers”, propaganda dos filmes da semana. Depois, desenhos animados, comédias, e as “séries”, que sempre terminavam em um “episódio” e garantiam uma ansiosa volta no próximo domingo.
Às tardes, ia-se ao “matinê”, mais para a juventude. Rapazes de camisas de manga curta, as “sileques” que os americanos implantaram e cabelos penteados com brilhantina cheirosa desfilavam pela calçada da avenida Rio Branco. Esperavam a chegada das moças, vestidos apertados na cintura, sapatos de salto alto.
A sessão noturna – o “soarê” – , casais vinham de braços dados, elegantes, pois não se admitia um homem entrar no cinema sem estar de paletó e gravata.
Para se chegar ali, tinha-se que passar pelo Grande Ponto, pois aquele era o momento de desfilar, de mostrar a elegância, e tem muita gente na calçada esperando para ver.

5. O Carnaval e um pierrot

O carnaval passara da avenida Rio Branco para a Deodoro. O Grande Ponto estava apequenando, mas, para se chegar ao desfile, passava-se por ele. Por ali, circulava-se, indo ou voltando.
Esquina da Princesa Isabel com João Pessoa. Pausa para tomar um sorvete na Sorveteria Cruzeiro. Pessoas vão e voltam, fantasias e mascarados. Há restos de sambas e marchinhas pelo ar e um delicioso perfume das “lanças”, inocentes e permitidas.
No meio da rua, um pierrot de branco parou em frente à porta. Tira do bolso um lança-perfume e ensopa um lenço que leva ao nariz. Logo seus braços pendem e o lenço se desprende. O pierrot hesita, vacila e começa a cair devagar. Flutua, como que paira, leve, descendo aos poucos até o chão.
Acodem pessoas a socorrê-lo, levam-no não sei para onde.
“Era Newton Navarro”, alguém disse.

Final (in?)feliz
Passam muitos carros. Há um cheiro forte de fumaça de escapes no ar e um semáforo repetindo, monótono, as mesmas cores. Pessoas se cruzam, mas não se falam. O prédio do café ainda insiste. E o consultório do Dr. Onofre Lopes também, num outro primeiro andar. Mas, se eu quiser, ainda passam homens de paletó, gravata e chapéu, e moças bonitas que vão cinema. Tomo café com meu pai na mesa do Botijinha e vou ver os fogos que estão na vitrine.
Revejo o pierrot de branco, que aspira perfumes e depois flutua.
“Seu” Luís, chegou o Gibi?
Sei como posso sair daqui e voltar para lá. Faço, pois aprendi nas revistinhas do Zepelin como alcançar esta dimensão. E aquelas pessoas estão todas por ali, revivendo a vida serena da pequena cidade e seu ponto que era Grande.
Afinal, saudade serve para quê?

por Alma do Beco | 10:20 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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