Edgar Allan Pôla
As meninas estavam eufóricas. Amanheceram cantando Gilberto Gil, "quanto mais purpurina, melhor". À noite, nos salões do América Futebol Clube, da melhor sociedade potiguar, o clube das elites oponentes à frasqueira do ABC, estava programado, realizar-se-ía o "Baile das Kengas", tradicional na cidade do Natal, sempre a anteceder grandes carnavais.
A cantora Amelinha era a grande convidada da noite, a suceder Elke Maravilha, Monique Evans e tantas outras na condição de madrinha da festa. No carnaval, haveria o concurso "Rainha das Kengas", título azunhadamente disputado pelas ferinas concorrentes, sempre a diminuir umas às outras. O ambiente, típico às ocasiões, era dos mais competitivos. Futrica em cima de futrica: o maior barraco. "É porque fulaninha não arranja mais nem embriagado de rodoviária", "e aquela outra, querendo namorar o deputado no Chaplin, é muita audácia do bofe!".
Os bastidores que antecediam a escolha eram dos mais quentes. Elas se divertiam, debochando umas das outras em meio a mordazes gargalhadas.
Na hora do desfile, porém, o profissionalismo far-se-ia honrar. Estariam perfeitas. De fazer inveja a costureiro francês em noite de lançamento de estação. Uma seria destaque, com certeza, estaria ma-ra-vi-lho-sa e seria a escolhida rainha.
Não deu outra. Uma surgiu que era realmente a melhor, a mais bonita, como enaltecera reconhecida até concorrente ao título.
Na hora do anúncio do nome da que seria a "Rainha das Kengas - 1996", um silêncio de noite cemiterial alecrinense ganhou as ruas do centro da cidade, bonecas por todos os lados, loucas para fazer a festa da felizarda.
- Ela merece. É simplesmente di-vi-na!
Apesar de aparecer uma ou outra invejosa a tirar os méritos da escolhida, o parecer da honorabilíssima comissão julgadora encontrava amparo na quase unanimidade dos presentes.
Maria da Guia fora a proclamada. Uma linda rainha, com certeza. As bichas já a cercavam, todas enaltecendo falsamente a sua beleza, a inveja a dourar-lhes testas cansadas de chifres tão ardorosamente curtidos e jamais esquecidos, doce ou criminalmente, porém sempre aterradores.
- Lindo o seu nome de guerra! Maria da Guia.
Desde que ela pisara a passarela, um zunzunzum já se ouvia, vindo de um grupo sibilino. Alguém lembrava ter visto em algum lugar aquele rosto, aqueles seios, aquelas pernas, aquela bunda bem contornada. Parecia muito com uma pessoa muito conhecida. Mas, quem?
A produção, a maquiagem, mascaram bem quenga que se preza. "Naquelas vestes, todas são radiantes. São ótimas, belíssimas!", comentou João da Rua numa roda em que estavam Falves Silva, Catarina, Help, Jota Medeiros, Jotó, Astral, Marcelo Fernandes e Marcelus Bob, todos de lata de cerveja na mão, rindo à toa com as presepadas das bonecas.
O zunzunzum foi se transformando em nhenhenhém, até que a notícia chegou aos ouvidos de uma das disputantes. Maria da Guia não era nome de guerra coisa nenhuma. "Um ultraje, uma provocação, um achincalhe imperdoável dessa comissão julgadora de merda que dá a uma rachada um título desse, tão sonhado por todas nós", disparou Gardênia Lúcia, a preferida do Beco.
A festa carnavalesca das quengas foi encerrada em meio a consternação geral, as bichas iradas e mal resolvidas, tomadas de ódio mortal contra aquela que arrebatara o título, uma mulher verdadeira, "quenga, é bem verdade, mas despossuída da condição primordial da cláusula que deveria ser a primeira no regulamento do concurso: ser homossexual do sexo masculino, com todo respeito", como se queixava uma delas desfazendo-se da saia, morta de vergonha por ter perdido o título em tais condições.
- Será a convidada especial para a Passeata dos Poetas do Dia da Poesia, vaticinou João Barra, que, por acaso, passava pela Vigário Bartolomeu a caminho da gráfica, cheio de trabalho por fazer em pleno domingo de carnaval