ESSAS COISAS
22FEV2005
Caros amigos e amigas:
O texto abaixo - que o crítico, professor e artista plástico Raul Córdula enviou, de Olinda, como contribuição para o que ele classifica de "tão salutar" Essas Coisas
(pelo que muito agradeço) - é maravilhoso e necessário à ampliação dos bons debates que acontecem nesta lista.
Grato pela sempre atenção e colaboração de vocês,
Carlos Aranha
BECOS E PUTAS
Entre ruas, de becos, putas, prostitutas e mulheres da vida, o que vale é a cidadania.
Carrinho (como somos amigos há quarenta anos, permita-me revelar n’Essas Coisas seu apelido de família):
Sou seu leitor contumaz, mas me orgulho mesmo é de poder ser eventualmente seu colaborador. Colaborar é um ato voluntário que exige sacrifício, o que faço com prazer, pois sua causa é nobre e importante, muitas vezes você cumpre a função de professor, esclarecendo as opiniões incultas (para não dizer incautas). Mas minha condição sacerdotal combina com a sua (certa vez disse numa entrevista aí em João Pessoa que “arte não é profissão, é sacerdócio e paixão”).
Muito que bem: para começar, “puta”. Esta palavra em Portugal é carinhosa, assim como “rapariga”. É comum ouvir em Lisboa, de um pai de família, “conheça meus putinhos”, referindo-se aos filhos, ou, “esta aqui é minha putinha”, referindo-se à filha menor. Mas aqui, não sabemos porque deve haver um motivo talvez anti-colonialista puta é palavra pejorativa, e porque não dizer, de mau gosto. A cidade não é composta apenas de pessoas, embora bem intencionadas, rudes e grosseiras, ela é composta também de famílias bem educadas. Democracia é assim, tem que ser para todos. E nós sabemos que este tom de maldade que transformou a palavra “puta” em algo pejorativo é reflexo do nosso proverbial “machismo”, da condição de inferioridade que nossas mulheres são submetidas até hoje, quando esta condição já está superada no mundo civilizado. Manter a palavra puta num universo urbano que se pretende defensor da cidadania é manter este caráter machista, anticidadão. Se a rua fosse uma propriedade de quem sugeriu “Beco das Putas”, ela poderia ter o nome que seu dono quisesse, mas ela é pública, é um patrimônio das pessoas da cidade, e nem todos gostam de ser incomodados com palavras. Acho fundamental que se fomente este respeito pelo cidadão, especialmente se vivemos um estágio de adolescência democrática, isto é, num momento em que estamos aprendendo a ser democráticos.
Agora, a palavra “prostituta” tem outra história e outro significado. Num livro que conheci na França nos anos 90, quando andava pela Provence com amigos da associação Le Hors Là em busca de histórias sobre Santa Maria Madalena, e que aqui é conhecido agora seguindo o rastro do “Código de Da Vinci”, intitulado “Maria Madalena e o Santo Graal A mulher do vaso de alabastro”, de autoria da pesquisadora americana Margaret Starbid, e que faz parte da literatura e das idéias que tentam restaurar a dignidade feminina através do conhecimento da Deusa Mãe, está escrito no capítulo A Noiva Perdida (p. 43):
“Embora dois Evangelhos, o de Marcos e o de Lucas, sustentem que Maria Madalena foi curada por Jesus da possessão de sete demônios, não está escrito, em lugar nenhum que ela era uma prostituta,”...”A unção realizada pela mulher em Betânia (a mulher é, segundo os pesquisadores, a própria Maria Madalena, a que ungiu os pés de Jesus na cidade de Betânia, e secou com os próprios cabelos) era similar a uma conhecida prática ritual das sacerdotisas religiosas sagradas, ou “prostitutas” do templo, nos cultos às deusas do Império Romano. Esta palavra, escolhida pelos tradutores modernos, é empregada para hierodulare, ou “mulheres sagradas” do templo da deusa, desempenhavam um papel expressivo no dia-a-dia do mundo clássico. Sua importância como sacerdotisas da deusa tem origem no período neolítico (7000-3500 a.C.), quando Deus era honrado e amado como feminino nas terras hoje conhecidas como Oriente Médio e França”. Tem mais: “ No mundo antigo, a sexualidade era considerada sagrada, uma dádiva especial da Deusa do Amor, e as sacerdotisas (prostitutas) que oficiavam nos templos dessa deusa no Oriente Médio eram sagradas para os cidadãos do Império Romano. Conhecidas como “mulheres sagradas”, eram pessoas de prestígio, as invocadoras do amor, do êxtase e da fertilidade da deusa. Em alguns períodos da história judaica, elas fizeram parte do ritual de adoração do Templo de Jerusalém, embora alguns profetas de Yahweh deplorassem a influêmcia da Grande deusa, localmente chamada de Asserá.”
Agora, “mulheres da vida”, outro lusitanismo, mas desta vez ligado aos cultos pagãos sagrados, é uma versão do termo “mulheres sagradas”, desde que não se podia chamá-las assim num Portugal católico fundamentalista, principalmente depois do Marques de Pombal.
Quero esclarecer que o Padre Gabriel Malagrida sempre se opôs a esta visão Pombalina, ao ponto de sofrer de sua ira e ir parar na fogueira. Ele é considerado um Santo em Portugal, e viveu aqui no Colégio Jesuíta que é o atual prédio da Faculdade de Direito, e protegeu as prostitutas da rua que iniciava na esquina e descia até as imediações do Sanhauá, por isso esta rua tem seu nome, uma das poucas homenagens merecidas na João Pessoa de hoje.
Quero ainda lembrar que a Rua Padre Gabriel Malagrida não é um beco, um beco é uma rua estreita, ela é uma rua, pequena embora, mas uma rua de muita beleza pela fachada lateral do edifício do século XVII e pela paisagem que dela pode ser descortinada, e respeito, pelo nome que ostenta e pelas famílias que ali moram e moraram, entre elas os Sá, da nossa grande escultora e ceramista Rosilda Sá e da amiga Edinamei. Portanto sou contra um logradouro público com tanta história ser rebatizado de “Beco das Putas” porque não é beco e puta no Brasil é uma palavra pejorativa, incompatível com a história da cidade. Quero dizer ainda que estas minhas considerações são em relação às palavras, e como você sabe Aranha, palavra vibra no universo, pois continuo achando o trabalho das “putas”, “prostitutas”, “mulheres da vida” ou seja, lá qual o sentido que se queira dar à “mais antiga profissão do mundo”, se não é um trabalho sagrado, num certo sentido, o da iniciação, é um trabalho religioso.
Quanto ao nosso saudoso amigo Livardo Alves, do qual sentimos tanta falta, deve haver várias outras formas mais interessante e úteis de homenageá-lo. Tenho certeza de que ele queria era ter suas músicas tocando nos rádios, e para tanto o nosso Fuba teria muito mais o que fazer e se orgulhar do que ficar como os políticos de direita: dando título de cidadão pessoense ou nomes de ruas aos amigos. Ridículo incomodar alguém como Fuba, com a responsabilidade que ele assumiu, tentando colocá-lo na condição de político babaca, o que todos sabemos que ele nunca será.
Atenciosamente, Raul Córdula.