domingo, fevereiro 20, 2005

Cérebro vazio



Tem dias que acordo com o cérebro vazio. Relaxada, flutuo da cama para a ducha. Não percebo meu peso, só sinto o toque da água no meu corpo. Nesses dias nem lembro que trabalho o dia inteiro, nem que pelo menos metade do bônus financeiro do meu trabalho fica retido nos impostos e nos bolsos dos mercantilistas que vendem o produto da minha ciência. Não lembro dos tolos que abusam da buzina no trânsito, da falta de cidadania de tantos, não lembro nem do preço da gasolina. É muito bom deixar o cérebro vazio às vezes, só indo ao depósito buscar as lembranças estritamente necessárias, tipo seu nome completo, o rosto de quem você ama, seu CPF, essas coisas básicas.

Assim, tudo parece novidade. Uma música antiga fica impressionante ao seu ouvido - experimente ouvir seu CD preferido nesse estado de graça. Só assim você consegue ver a arborização das ruas e percebe o azul lindo do céu de Natal. O vento que bate no seu rosto parece beijá-lo, é como se toda natureza se curvasse aos seus pés. Com o cérebro vazio, você vira um Rei. Um rei de si mesmo, um apaziguado, um manso, um feliz.

Cada pessoa deve buscar a forma de esvaziar-se. Uns com pintura, outros com poesia, literatura ou música, exercício físico, meditação. O homem precisa urgentemente parar antes de quebrar seus limites, para depois recomeçar.

Impaciência, intolerância, incapacidade de vislumbrar o belo, incapacidade de amar, violência e agressividade, drogadição e outros vícios, suicídio e mesmo toda forma de tempestade em copo d"água em parte resulta de uma massa cinzenta encharcada. O desenvolvimento estúpido do nosso córtex trouxe muitas vantagens, pois com nossa fraqueza física e limitação funcional com relação aos outros animais não teríamos sobrevivido até hoje - não conseguimos voar, não suportamos o frio sem agasalhos, não possuimos a capacidade laborativa das formigas - mas por outro lado nós pensamos demais, num auto-flagelo sem fim. Esse pensar demais, esse extremo evocar dos sentidos, estimula uma série de circuitos que acabam produzindo mega-doses de adrenalina, angustiando nossas coronárias, explodindo-nos com enxaquecas, produzindo covas em nossos pobres estômagos, dinamizando nossos intestinos e produzindo depressão e várias formas de pânico.

O tacape utilizado pelos nossos ancestrais para trazer a mulher "amada" para seus braços foi substituído em determinado ponto da nossa evolução pelo amor romântico do poeta, pelo sentimento puro daquele que busca a paz nos braços de outrem. Hoje, o tacape volta, mas travestido na cultura do TER, do poder, da beleza física, do saber, do dinheiro, tornando a vida cada dia mais complicada, deixando o homem sem tempo de se conhecer, de se aceitar, enfim, de se amar. Portanto, esvaziem-se, amem e amem-se mais. Adorem-se, idolatrem-se e abram os olhos para o belo - não percamos mais tempo para enfim enxergarmos que nosso maior patrimônio deve ser nossa própria vida.

Meire Gomes

por Alma do Beco | 10:01 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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