Tem dias que acordo com o cérebro vazio. Relaxada, flutuo da cama para a ducha. Não percebo meu peso, só sinto o toque da água no meu corpo. Nesses dias nem lembro que trabalho o dia inteiro, nem que pelo menos metade do bônus financeiro do meu trabalho fica retido nos impostos e nos bolsos dos mercantilistas que vendem o produto da minha ciência. Não lembro dos tolos que abusam da buzina no trânsito, da falta de cidadania de tantos, não lembro nem do preço da gasolina. É muito bom deixar o cérebro vazio às vezes, só indo ao depósito buscar as lembranças estritamente necessárias, tipo seu nome completo, o rosto de quem você ama, seu CPF, essas coisas básicas.
Assim, tudo parece novidade. Uma música antiga fica impressionante ao seu ouvido - experimente ouvir seu CD preferido nesse estado de graça. Só assim você consegue ver a arborização das ruas e percebe o azul lindo do céu de Natal. O vento que bate no seu rosto parece beijá-lo, é como se toda natureza se curvasse aos seus pés. Com o cérebro vazio, você vira um Rei. Um rei de si mesmo, um apaziguado, um manso, um feliz.
Cada pessoa deve buscar a forma de esvaziar-se. Uns com pintura, outros com poesia, literatura ou música, exercício físico, meditação. O homem precisa urgentemente parar antes de quebrar seus limites, para depois recomeçar.
Impaciência, intolerância, incapacidade de vislumbrar o belo, incapacidade de amar, violência e agressividade, drogadição e outros vícios, suicídio e mesmo toda forma de tempestade em copo d"água em parte resulta de uma massa cinzenta encharcada. O desenvolvimento estúpido do nosso córtex trouxe muitas vantagens, pois com nossa fraqueza física e limitação funcional com relação aos outros animais não teríamos sobrevivido até hoje - não conseguimos voar, não suportamos o frio sem agasalhos, não possuimos a capacidade laborativa das formigas - mas por outro lado nós pensamos demais, num auto-flagelo sem fim. Esse pensar demais, esse extremo evocar dos sentidos, estimula uma série de circuitos que acabam produzindo mega-doses de adrenalina, angustiando nossas coronárias, explodindo-nos com enxaquecas, produzindo covas em nossos pobres estômagos, dinamizando nossos intestinos e produzindo depressão e várias formas de pânico.
O tacape utilizado pelos nossos ancestrais para trazer a mulher "amada" para seus braços foi substituído em determinado ponto da nossa evolução pelo amor romântico do poeta, pelo sentimento puro daquele que busca a paz nos braços de outrem. Hoje, o tacape volta, mas travestido na cultura do TER, do poder, da beleza física, do saber, do dinheiro, tornando a vida cada dia mais complicada, deixando o homem sem tempo de se conhecer, de se aceitar, enfim, de se amar. Portanto, esvaziem-se, amem e amem-se mais. Adorem-se, idolatrem-se e abram os olhos para o belo - não percamos mais tempo para enfim enxergarmos que nosso maior patrimônio deve ser nossa própria vida.
Meire Gomes