Durante cinqüenta anos, Natal progrediu tão pouco que melhor seria dizer que não progrediu. De 1810 a 1860, raros melhoramentos. Em 1810, Koster descreve-a com 700 habitantes; a rua Grande1, larga praça vestida de camapu e mata-pasto, com orgulho administrativo da Câmara e cadeia acaçapada, o palácio rococó dos capitães-mores e as três igrejas: Matriz, Santo Antônio e Rosário.
Quatro ruas de poucas casas desembocavam na rua Grande. Anos depois é que se fechou o lado leste e a rua da Conceição abrigou o Governo e outros centros de poderio e papelório. Da Rosário, ao que depois de 1850 começou a ser rua do Comércio, se estendia o denso dos oitizeiros, sapotis e pitombas, o verde-claro imóvel das carrapateiras ramalhudas e das mangiriobas franzinas. Ao sul, margeando risco do “caminho de beber”, embastia-se a mataria de gameleiras, paus-d`arcos, aroeiras e pau-ferro.
Do Bardo ou Baldo ao monte, toda a elipsóide sul a leste, a vegetação irrompia vigorosa e alta, farfalhante e ampla. Casinhas rompiam a rua Nova², em largos espaços de faxinas, onde surgia, medroso, o ensaio das flores de casa, cravos brancos em panelas trepadas, maravilhas rasteiras, o rubro veludo dos amarantos, jasmins de cheiro suave, as perpétuas brancas, as saudades delicadas, os primeiros estefanotes, as bocas-de-leão, as cravinas simples, os rosedás insolentes de perfume. Perto dos galinheiros de reserva, as altas espirradeiras, as palmas dos tinhorões, sombreando as pequenas touceiras de nuvens do céu. Nas praçuelas, gameleiras, oitis, castanholas e mungubeiras estendiam sombras... No Bardo, lagadiço cercado de barro batido, fazia-se ponto de banho festivo e de peraltice ingênua. Depois de 1859 ou 60, a praça das laranjeiras reunia os pisa-flores chilreantes, de casacão de belbutina, colete rombudo, calças justinhas com fileiras de botões e o pescoço enrolado na gravata manta, com três voltas à Feijó, comendo o queixo e escondendo a testa nas abas do chapéu revirado, chititi como se dizia naquele tempo.
Depois da “ladeira” (muito tempo após, rua da Cruz) a Campina guardada, perene e seguro o grande pântano alimentado pelas marés. Havia uma pontezinha. Era um quadrado imenso, desolado, silencioso.
Corria, de sul a leste, o canavial cerrado; após, com bruscos trechos de areia lodosa, o coqueiral, espanando palmas até as encostas de Areal e Rocas. Cercadas, pelas dunas e pelos coqueiros, cinqüenta ou cem casas tímidas e espaçadas anunciavam a cidade. Gameleiras, tatajubeiras, mungubeiras davam o lugar das prosas. Era a Ribeira, pequena, triste, atufada em brejos, circundada de lagoas, de atoleiros, de pântanos. Era o alvo das rajadas do cholera e de bexigas. Lugar enfim onde moravam a pobreza, a indigência e a miséria – gritava, em 1850, Carlos Wanderley, no relatório da Assembléia.
O Potengi invadia, lambendo as pedras das calçadas, as rua enfileiradas. Vez por outra, terrenos alagados cediam e as construções vinham abaixo. Em 1869, é que o Dr. Pedro de Barros Cavalcanti de Albuquerque mandou fazer um anteparo. Dez anos depois, o Dr. Rodrigo Lobato Marcondes Machado informava sobre o serviço do cais – importante melhoramento empreendido no intuito de repelir as marés que ameaçam avassalar os terrenos e as casas...
Com Manuel Ribeiro da Silva Lisboa a cidade do Natal não tinha aspecto pomposo. As ruas em miserável estado, sem calçamento e entulhadas de areia; sem água, sem iluminação, sem cadeia e sem nada, declarava Parrudo. Novas ruas iam aparecendo no Bairro Alto – Cidade – como era chamado. O primeiro médico, Dr. José Bento Pereira da Costa, é de 1842.
Em 1859, o presidente João José de Oliveira Junqueira inaugura a iluminação a querosene, alguns lampiões, sugeridos, nove anos antes, por João Carlos Wanderley. Luz a gás tivemos com o presidente Antônio dos Passos Miranda, em 1870. Pouco tempo antes, 1870, Natal possuía ruas calçadas, alguns chafarizes e o velho desejo – o piso de pedras na ladeira. A Ribeira estava sendo o bairro comercial, dinheiroso, materializado. A rua do Comércio³ já estadeava prédios e armazéns repletos de açúcar, algodão, sal, peles, embarcados pelas sumacas e barcaças bojudas para Pernambuco, o grande comprador.
A cidade se alastrava, lenta, dos dois núcleos. De um lado, paralelo ao rio, corriam as casinha e cochicholos de palha. Da rua Grande, destronada pela rua da Conceição, partiam lances de moradas vaidosas em sua brancura e no chiste das janelarias altas e telhados em cauda de andorinha. São ponto de gente graúda: rua Grande, rua da Conceição, rua da Cruz, rua do Fogo, rua das Laranjeiras, Rua Nova... Nos domingos existem os lugares de passeios e de caça. Caminho Novo, Barro Vermelho, Passagem, Quintas, Refoles. E, desde 1850, a praia da Redinha, pouso dos presidentes, local das peixadas e serenatas dominicais. Apesar disto, J.C. Fernandes Pinheiro escreve em dezembro de 1871 – Em verdade a cidade do Natal, mesmo vista de fora, parece justificar o trocadilho que lhe ouvi aplicar – cidade-não-há-tal. Para o Dr. Henrique Pereira de Lucena, Natal era uma vila insignificante e atrasadíssima do interior (1872). Com as eras de oitenta, a política subjuga a Província. Os presidentes tratam de eleições, intrigalhas, discurseiras.
Os partidos tomam a sério os programas e os lugar-tenentes se digladiam em artigalhões e passeatas. Assim, até a proclamação sonolenta da República. O fato interessante de 1889 é ter o Conde D´Eu mandado o navio esperar por Silva Jardim, galo de campina da propaganda, que tinha ido arengar em São José de Mipibu.
A cidade do Natal, fundada no século XVI, nasceu no século XX. Os intermediários são períodos de história guerreira, política ou dorminhoca. Faz de conta que não existiu.
A sociedade
A sociedade era patriarcal. O elemento estrangeiro era nulo ou nenhum. No interior das moradas, a sala de visitas era lugar de uso raro. Pouca mobília. Jacarandá para os ricos. Pau preto, amarelo, madeira nova para os medianos. Tosco e louvado engenho dos artesãos primitivos servia de aparelhador incipiente. A sala de jantar é que era o domínio da dona de casa. Aí reinava a palavra, provando o ponto nos doces, trocando bilros e espiando a tarefa das mucamas favoritas. Pouca convivência social. Amizade de vizinhos faziam-se as palestrinhas corridas através das varas de cerca divisória. Limitava-se à cambiagem de receitas e de meizinhas caseiras. Acocorada nas esteiras amarelas sobre o tijolo vermelho, a dona nucleava a vida íntima, recatada e simples dos antigos. De muito em muito é que ousava espreitar pelo rotulado um vulto estranho à terra. Lugar de reunião era a Igreja. A semana santa era tempo de festa de olhos. Aí se espanejava a casaca de baetão, as calças de duraque, o chapelão alto.
A senhora se orgulhava do roçante, vestido de seda, a mantilha negra ocultando o duplo bandó, ou o cocó, onde o trepa-moleque se fincava, o pescoço rodeado de colares e fios de luxo, santinhos, espíritos-santos, figas de guiné e medalhinhas e, nos dedos, grossas memórias de ouro de moeda do Reino. O ciúme à portuguesa circundava-a de pavor. O marido fechava-a, murava-a, distanciando-lhe a existência livre e respirável. E de sua parte vivia na rua, palrador, discurseiro, politicóide, discutindo nomes sob as gameleiras, incorporando aos séquitos oficiais, grudados aos salões do ser. Presidente, longe de casa sem noção de vida, de lar e de carinho continuado.
As distrações eram de fundo religioso. Os Santos Reis, antefestejados com serenatas e cantigas típicas à porta dos amigos – tirando os Reis. Carnaval de entrudo com empapanguzados gritadores e encamisados sensaborões. Santo Antônio, São João, São Pedro com fogueiras, comidas de milho, fogos do ar, bailarico e banho de madrugada, sob os dendezeiros e ingazeiros do Baldo. Chegada de presidente anunciada pelos canhões da fortaleza, procissão de penitência, assombradora e tétrica e, em novembro, festa da padroeira, com as novenas, fogos de vista, bailes do noiteiro na entrega do ramo e jogos florais, duelo lírico e satírico, na alegria dos palanques erguidos em outeiros – eis o ciclo das diversões sociais. Os presidentes, exilados por dois ou três anos em Natal, procuravam as praias, os sítios com água corrente, faziam calçadas, teciam pilhérias, enchendo o tempo de espera para melhor província ou deputado geral.
A cidade sem iluminação, sem calçamento, sem segurança afastava a vida noturna.
Quem saía em visita, previamente anunciada, fazia-se preceder de escravos com tochas resinosas ou lampiões. Toda gente andava armada. Pela noite velha, os ladrões eram caçados a tiros afugentadores. Da Cidade à Ribeira, o silêncio apavorante criou lendas, assombrações e malefícios na Ladeira. Os paredões de barro vermelho, escondidos sob as celsas, salsas bravas, ortigas e mata-pasto, intimidavam. E à distância, o viver próprio dos dois bairros, a nenhuma convivência entre famílias, criou inimizades e apelidos: xarias e canguleiros.
Ao ruflo da caixa das nove horas, o silêncio caía, tangível, sobre a cidade quieta. O casario fechado e mudo não escoava réstia de luz. Ao longe, o clarão oscilante e rubro da candeeiro público. Vagos rumores de passos. E, ao estribilho das corujas, noitibós e caborés respondia o canto coral da saparia boiando n`água negra das poças. Compreende-se o prestígio dos alegres, dos vivos porta-vozes da risada, da gargalhada lusitana, da gaitada brasileira, o riso largo, sacudido, dobrado, interminável. A estes uniam-se as tradições de valentões, porque andavam à noite, de inteligência pelos versos rabiscados e de insubstituíveis, se tocavam um instrumento musical.
Joaquim Eduvirges de Mello Açucena foi, durante sessenta anos, um deste homens, um insubstituível.
Canto do Potiguara
Lourival Açucena
(TORÉ)
Curupira se afugenta,
Manitó esquece a taba,
Mas minh´alma não esquece
O amor de Porangaba.
Cai a murta, o camboim
O murici, a mangaba,
Mas não cai dos meus sentidos
O amor de Porangaba.
Cambaleia o pau-d´arqueiro,
Que ao rijo tufão desaba:
Mas não se abate em meu peito
O amor de Porangaba.
Vai-se o torcaz que gemia
Ao pé da jabuticaba,
Mas não deixam os meus anelos
O amor de Porangaba.
Foge a abelha que zumbia
Sobre a flor da guabiraba,
Mas não foge aos meus afetos
O amor de Porangaba.
Despe a flor o ingazeiro,
A oiticica, a quixaba:
Mas não me escapa da mente
O amor de Porangaba.
Da cunhã remorde a face
Reimoso capiucaba;
Mas não remorde o ciúme
O amor de Porangaba.
De Moema o terno amor,
Não, não rende o imbuaba,
Mas a mim rende e cativa
O amor de Porangaba.
Da extremosa Margarida
O amor já não se gaba;
Mas eu decanto, Arãhi,
O amor de Porangaba.
O pajé canta a bravura
Do alto Morubixaba,
Mas eu só canto em toré
O amor de Porangaba.
Anhangá cede a Tupã
No poder que não se acaba,
Mas não cede a outro amor
O amor de Porangaba.
Explicação do Canto do Potiguara
Potiguara: “Comedor de camarão”, nome da tribo que habitava o Rio Grande do Norte.
Toré: Melopéia indígena. Canto tristonho, prolongando os últimos versos.
Curupira: Gênio do Mal.
Manitó: Gênio protetor da
Taba: Casa grande ou o ajuntamento das habitações indígenas.
Camboim: fruto silvestre do Brasil.
Muricy ou murici: Gênero de plantas malpighiáceas do Brasil.
Pau-d`arqueiro: Nome popular de pau-d`arco.
Torquaz, ou ainda concliz ou corrupião: Nome de ave do Brasil, famosa pelo canto e pelas cores.
Jabuticaba: Fruto da jabuticabeira, mirtácea do Brasil, que compreende várias espécies.
Guabiraba: Fruto da guabirabeira, gênero de borragináceas do Brasil.
Quixaba: Fruto silvestre do Brasil.
Cunhã: Donzela.
Capiucaba: Marimbondo.
Moema: Personagem histórica dos primeiros tempos da colonização no Brasil.
Imbuaba: Nome dado pelos indígenas ao europeu; do guarani – neboab, “pernas vestidas”.
Arãhy: Interjeição ou explosão de voz (em Tupi) traduzindo a saudade.
Pajé: Feiticeiro e cantor dos feitos guerreiros da tribo.
Morubixaba: Chefe dos índios. Maioral.
Anhangá: O Diabo dos índios.
Tupã: Deus
Luis da Câmara Cascudo
In Joaquim Eduvirges de Mello Açucena (Lourival Açucena) (Lorênio)
Versos reunidos por – Luís da Câmara Cascudo,
Coleção Resgate – Editora Universitária UFRN, 1986.
1. Defronte à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, onde hoje se situa a praça André de Albuquerque.
². Atual avenida Rio Branco, Cidade Alta.
³. Atual rua Chile, Ribeira.
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