Recife, Pátio de São Pedro, anos 70
para Chagas, com saudade e carinho
Ao meio-dia, eles saíam. Em bando. Dos quatro pontos cardeais. Vestiam quase sempre, calças jeans: lee ou lewis. Quase nunca, camiseta. Sandálias de couro em vez de tênis.
Cabelos compridos ao vento. Violão na mão.
Elas se vestiam quase igual. Calças jeans, boca de sino. Raramente mini-saia. Blusas curtinhas, de malha, às vezes, bordadas, deixando entrever umbigo e o cós da calça. Quando havia cós na calça. Cinto de couro, sandálias e bolsas, também. De artesanato. Nenhuma maquiagem.
Cabelos compridos ao vento. Violão na mão.
Encontravam-se perto de uma hora, no bar junto ao cemitério. Terraço de madeira, mesas trôpegas, mínimo. Ali, muitas revoluções salvaram o mundo. Amores nasceram. Amores morreram. Todas as canções foram compostas. Todas as canções foram cantadas. E os sonhos brotaram, meio aos copos de cachaça e de cerveja, como brota o capim depois da chuva.
Enquanto na Ásia, a guerra se fazia, e aqui, a ditadura estendia até eles, suas garras, e os prendia e os matava, ali, no bar junto ao cemitério, à beira da estrada, eles eram felizes e livres nos sábados à tarde. Num pequeno paraíso chamado Bar da Tripa, vulgo Vietnam.
Márcia Maia
Recife, Rua do Sol, anos 70.
Minha querida Márcia,
Só você pra me arrebatar de volta para o edifício ilhado da rua dos Palmares, guarita do populoso Santo Amaro, com águas regurgitadas pelo velho Capibaribe, vindas aos borbotões da Cruz Cabugá.
Só você pra me levar de volta ao 1403 do Edifício Suape, na barulhenta esquina da rua do Hospício com a Av. Conde da Boa Vista (lembra Marcolino?).
Só você pra me jogar dentro de um ônibus lotado na Avenida Caxangá, no caminho da Faculdade de Economia da UFPE.
Só você pra me transportar nas tardes de sábado para o Bar da Tripa, tomar cachaça com caldo de Sururu, cantar canções e fazer versos de protestos, contra a guerra do sudeste asiático, no Vietnã, e chorar de revolta contra a repressão da ditadura brasileira, que ceifava todos os dias a vida de companheiros da infância.
Só você para me lembrar os amigos da Madalena e do Derby, chamando para ver o primeiro programa a côres da TV Tupi, com Flávio Cavalcanti vestindo uma camisa vermelha berrante, para chamar a atenção.
Só você para me levar de volta à travessia da comprida Av. Recife, cruzar o Tejipió, a Imbiribeira, a Barão de Souza Leão e, finalmente, chegar a rua Nossa Senhora dos Navegantes, imediações do Posto Esso, onde conspirei, escrevi, amei e vivi parte da minha vida.
Só você pra me levar agora para a estante e folhear a Geografia da Fome, de Josué de Castro, e olhar tristonho para Homens e Caranguejos, do mesmo Josué, falando de humanos sobrevivendo nos mangues do Beberibe e do Capibaribe, que, por ironia, se encontram depois e, juntos, abraçam o mar sob os olhos do Palácio das Princesas, na pujança e beleza da Veneza Brasileira.
Um grande beijo, Marcinha, marejado pelas lembranças e pela saudade.
Chagas Lourenço
Recife, UFPE, anos 70: Chagas no Vietnam