Itamaracá
Luciano de Almeida
Seria um esforço inútil, um simples exercício de rotina (demasiadamente desgastado) se me detivesse apenas na descrição – isenta, imparcial, minuciosa – de um processo visceralmente complexo, denso, trágico, atormentado. Os fatos que aconteceram comigo na tortura, nos seus intervalos e nos dias, meses e anos subseqüentes, não podem ser compreendidos como “coisas físicas puras”. Eles não se sucederam sem que houvesse a intervenção do indivíduo concreto; plasmado sob determinadas condições histórico-sociais, indivíduo que age e reage quando posto à prova, não segundo a sua consciência formal, não raro mitificada, mas impulsionado inexoravelmente pelo que é a cada momento: seu caráter, seu tipo psicológico, sua perspectiva real de classe.
Para desvendar com rigor científico nosso comportamento em face às torturas, é necessário que nos coloquemos dentro daquela situação e a introduzamos em nós. Preliminarmente, é absolutamente preciso não temer o real, devemos correr o “risco” de defrontá-lo e apropriá-lo, mesmo que isso nos dilacere interiormente. Contudo, os danos que se nos possa causar tal confronto são inessenciais, fundamental é busca séria, obstinada, profunda, de conhecimento das origens e motivações da nossa conduta, de suas relações ocultas, íntimas, envergonhadas, cuja exteriorização depende tão somente de nós. É preciso também afastar todo o receio em se expor à avaliação seguramente crítica dos outros. É a partir da revelação de nossas fraquezas e debilidades que podemos adquirir uma consciência nítida do que somos realmente. E esta percepção crítica deve ser levada às últimas conseqüências, e se constituir numa base sólida de um longo processo de retificação.
A tortura, institucionalizada em nosso país, não se reduz a uma técnica terrivelmente refinada de extorquir informações de prisioneiros. A tortura é um legado histórico de séculos e séculos, de opressão e exploração do homem pelo homem, da ignorância e da deformação social e pessoal de seres humanos. A tortura sucessivamente tem servido aos antigos e novos dominantes: divertiu os Césares e escravocratas, “enrijeceu” os bárbaros, puniu heréticos e carbonários, foi aplicada nas “experiências científicas” dos nazistas, cultuada na “Batalha de Argel”, utilizada até à exaustão no Vietnam. No Brasil atual, a tortura é um dos aspectos da violência repressiva desencadeada sobre as massas populares e suas organizações, violência que consagra a dominação do grande capital monopolista e assegura as condições de sua constante reprodução. O sistema de tortura fortemente implantado em nossa sociedade de classe apoia-se num vasto aparato político, jurídico e organizativo. Toda uma máquina foi montada para fazê-lo funcionar otimamente, alimentada por vultosos recursos financeiros, propiciados pelas verbas secretas (obviamente não controladas), pelas contribuições particulares e pelo botim de suas operações clandestinas. Os órgãos de repressão instalaram-se nos porões dos quartéis. O aparelho de Estado concedeu-lhes um elevado grau de autonomia, sua atuação passa a desenvolver-se sem nenhuma limitação jurídica. Dispõem da vida e da morte de prisioneiros políticos. No curso da prática da tortura, formaram-se centenas e centenas de torturadores profissionais, os quais se encontram em permanente disponibilidade. A oficialização branca da tortura como política do Estado dá origem à uma rígida cadeia de mútua proteção envolvendo seus protagonistas e mentores: os torturadores zelam na última trincheira dos subterrâneos pela revivência do regime; o aparelho político e judicial os mantém intocáveis, acima de qualquer suspeita. O delegado Fleury, condestável da repressão e da tortura no Brasil, foi erigido à condição de herói das classes dominantes e do Estado burguês.
A tortura, do ponto de vista mais concreto, conduz à virtual animalização das relações entre os homens. Se intrinsecamente degrada o torturador, pode também degradar o torturado. Forçado violentamente a mover-se no estreito e abissal terreno dos instintos, o torturado muitas vezes é levado a assumir comportamentos que o negam política e ideologicamente. Preso à necessidade bruta, cega, de preservação da espécie, o torturado sente apagar-se o seu passado e perder-se o seu futuro. Para o torturado, nada mais existe, a não ser ele e o torturador e, entre os dois, implacável, a tortura. Sob o impacto da tortura descobrimos que ela encerra além da relação físico-pessoal de dois pólos demarcados de uma difusa relação de classe. No dramático combate que se trava na tortura, ressaltam em última instância: a tentativa do torturador de dobrar psíquica e ideologicamente o torturado, impondo-lhe uma relação de dominação idêntica à dominante na sociedade capitalista; do lado do torturado, a tentativa de afirmar – pela resistência à dor e ao desgaste físico e psicológico - a perspectiva política de classe de que é e/ou supõe ser portador. O desfecho desse combate é inequívoco: ou o vitorioso é o torturador (vitória suja, sangrenta, monstruosa) ou o vitorioso é o torturado (sua vitória em geral se funde à sua morte). Descobrimos também que a denúncia, a crítica mais contundente da tortura consiste na resistência inquebrantável do torturado, consiste em bater o torturador em seu próprio campo, com todas as armas que possui e usa, consiste na vitória de uma idéia partilhada por milhões sobre o pau-de-arara, o choque elétrico, o cassetete, vis instrumentos de poucos. Esta vitória é possível, assim o provaram Mário Alves, João Lucas Alves, Virgílio Gomes, Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Marighela, Apolônio de Carvalho, Odijas de Carvalho, Ezequias Bezerra da Rocha e muitos outros companheiros.
É nesse contexto que situo minha experiência pessoal, diante da tortura. Fui preso no dia 31 de março de 1970, em frente ao cinema Recife, na cidade do Recife/Pernambuco. Imediatamente após, arrastaram-me para o interior do cinema onde sofri espancamentos generalizados. Depois, algemado, fui conduzido à Secretaria de Segurança Pública. Nesta, precisamente no gabinete do delegado de Segurança Social, submeteram-me à tortura. Consistia em “ciranda”, pau-de-arara, golpes de cassetete, chutes, “telefones”, palmatória, etc. Fui torturado, no sentido estrito do termo, apenas no primeiro dia da minha prisão, ao fim do qual arrancaram-me um primeiro depoimento. Nos dias seguintes, as torturas físicas cessaram, restando as ameaças e pressão psicológica. Nestas condições, prestei outro depoimento. Decorridos quase dois meses de prisão, voltei a ser agredido durante uma acareação com Alan Melo Marinho, preso àquele dia. Policiais torturadores: delegados Jonatan Marques da Cunha, José Silvestre, Moacir Sales, Carlos de Brito, Mário Tomás de Alencar; investigadores Luís Miranda, Evilásio e outros.
A prisão, contingência previsível na vida de um revolucionário, foi entretanto para mim um fato inesperado. Inesperado porque lá fora me condicionara a não cair vivo nas mãos do inimigo. Este reflexo punha entre parênteses a possibilidade real da prisão e da tortura. A prática, todavia, mais uma vez demonstrava de modo lapidar que não escolhemos as condições de nossa ação. A prisão produziu-me uma profunda sensação de atordoamento e desamparo face uma situação absolutamente nova para mim. Eu sabia qual deveria ser a atitude de um militante comunista na tortura: recusar-se a fornecer informações à repressão, sobrepor-se à dor e à morte lenta, agir, enfim, com a mais tranqüila dignidade. Mas entre o ser e o saber, não há uma relação de contigüidade, uma vinculação automática. Eu sabia, mas não era. O choque com a tortura expunha abertamente e dolorosamente o meu despreparo e as minhas fragilidades. O esforço que esbocei nos primeiros interrogatórios de nada revelar e tudo negar foi progressivamente se consumindo, cedendo lugar à alternativa da sobrevivência. Sobrevivência na derrota, obtida a um alto custo moral, vergonhosamente. A opção pelas concessões ao inimigo se fazia em meio à circunstância típica. É evidente que não se tratava de uma opção consciente, livre: era ditada sob os golpes do torturador e guiada pelos instintos. Mas eram concessões concretas, expressas em informações objetivas que causariam prejuízos e danos à organização a que eu pertencia e às pessoas que a compunham. Pessoas que, por ato de minha exclusiva responsabilidade, se veriam vítimas da tortura e para as quais também se colocaria a opção de resistir ou soçobrar, de interromper ou continuar esse ciclo trágico de destruição de forças vivas da revolução. Eu, porém, me sentia só, irremediavelmente só, e isto se ligava não somente às minhas carências ideológicas: configurava principalmente uma solidão social, um desligamento que a minha prática política havia estabelecido em relação ao povo e ao seu setor francamente conseqüente, a classe operária. E à medida em que o combate com os torturadores perdia a dimensão de um confronto de classes claramente rivalizadas e se traduzia num embate pessoal, sentia esmagadoramente quão desigual era para mim. Diante disso, minhas idéias se obscureciam, meu pensamento se encolhia timidamente (na minha cabeça havia apenas informações que o inimigo avidamente buscava dominar, e eu, desesperadamente, subtrai-las, esquecê-las). O medo passava a ocupar todos os espaços da minha consciência e a determinar minha ação e reação. Conduta que, se por uma lado correspondia ao impulso da sobrevivência, por outro lado provocava uma rutura interior, me tumultuava. Porque meu comportamento significava desfazer num só lance todo o meu passado, renunciar, na prática, à condição de militante de vanguarda. E isto me dilacerava.
Ao emergir do processo de tortura, vivo, senti-me destroçado. Na fase imediatamente seguinte, fui tomado por uma série de percepções extremamente negativas a respeito de mim mesmo, avaliação que em função de seus componentes emocionais, aguçava a crise ideológica que explodira na tortura e me afastava do conhecimento real de suas raízes histórico-concretas. Este posicionamento auto-destrutivo é sucedido por uma tendência não menos negativa: a racionalização superficial das responsabilidades, ou seja, a tentativa de atenuá-las assimilando-as mecanicamente ao fenômeno de massas em que se havia convertido o comportamento incorreto dos revolucionários presos no Brasil.
Hoje, transcorridos oito anos e superadas as formas de apreensão inadequada da minha experiência na tortura, tenho-me proposto a pensá-la sob a ótica essencialmente crítica, fixando corretamente minha responsabilidade pessoal e procurando conhecer o conjunto das condições históricas, políticas, ideológicas, morais e psicológicas que se imprimiram em mim e desembocaram na forma de comportamento de um indivíduo particular. É sobre esta base que se ergue um processo real de autocrítica – sentido da minha vida
Ilha de Itamaracá, março de 1978.