quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Natal, RN



Lenine Pinto

Para aqueles oriundos dos anos inocentes em que a cidade era uma só festa de mansidão, não é crível tenha alguém testemunhado ao solitário e silente Forte, fora do pedestal de formoso monumento decorativo, virado em praça de guerra, as bocas de fogo acesas, a guarnição batendo espadas com o invasor holandês, porque, se assim tivesse sido, não cruzaria a barra o pirata Jacques "Rifoles" em busca do habitual refúgio na dobra do rio, farfalhando no mastro grande de sua galera o pavilhão da caveira, que dali saíra um dia para tremular à porta do consulado do Morte Futebol Clube na Ridinha, que abrigava a "turma errada" do 5º ano do Atheneu: Buró, Cego Lula, Maroca, Jadir Capão, Lourinho, Morel, João Santana, Fernando Cabral, Aldo Marinho, Homero Homem, Zé Guará, Zé Rêgo, Antônio Lins e tantos outros.
A Natal dos registros de Nestor de Lima mereceria, por certo, de Dom Manuel, o venturoso, fosse plantado em seu sítio o marco de posse de toda a Terra de Santa Cruz, com discurso laudatório do Dr. Deoclécio Duarte e baile comemorativo em Palácio, aberto, elegantemente, por Cecília de Oliveira e Lucílio Reis. Ela, alma e graça desabrochada nos saraus com que a casa do velho Henrique iluminava toda a Ribeira. Ele, cabelos na brilhantina e o aplomb de George Raft, lançando a figura do rapaz, justo numa época em que imperavam o colete e as polainas, e até os meninos usavam chapéus de palhinha, sendo distinto, mesmo para jogar bola, cobrir-se a cabeça, como o fazia Oto Guerra, que usava uma botina francesa.
É que, para a gente que transpôs as três primeiras décadas do século, a cidade já nasceu tão pronta e acabada como, para Paulo Lira, um ninho de passarinhos ou o furo de passar a linha numa agulha, coisas que não se pode fazer. Tudo como já estava quando o menino Fábio Zambrotti - ainda de calças curtas - corria atrás do burrinho do padre João Maria para tomar-lhe a santa bênção, enquanto singrava na direção de Macaíba a lancha de Mestre Antônio, resfolegavam as locomotivas da Great Western Brazilian Railways, a beleza de Guiomar Matos desfilava à direção de uma limousine, e Lucy Garcia cruzava o céu de teco-teco.
Natal teria surgido, na imaginação de seus mais antigos e melhores amantes, como a Vênus, inteira e nua, numa concha recolhida por Orlando Luz, que se antecipara a todos os banhistas no madrugar da Praia do Morcego. Cada coisa no seu lugar: o cemitério dos ingleses, a água furtada do casarão da esquina do cais Tavares de Lyra, a ponte de Warton & Pedroza, a fábrica de tecidos de Toselli, o curtume de Epaminondas Brandão, a Praticagem, o Melhoramento, o edifício do Saneamento, o Fernando Costa, já então fumaçando as chaminés de suas primeiras indústria: a de cigarros Vigilantes, a de sabão de Elviro Câmara, a de macarrão Ypiranga, a de doces Symilares. João-dos-bolos fazendo milagres com o fubá de milho. Zé Aguinaldo escrevendo à máquina como uma metralhadora e o povo aglomerado na calçada do Lloyd para apreciar aquela agilidade. Lulu Anão cuidando das salas de aula do Instituto de Música. Os aposentados, em torno de Luiz Taumaturgo Ferreira, fazendo hora na praça João Maria. Barôncio Guerra, que passa.
E Armando China que nunca mais saiu da porta da Sorveteria Cruzeiro.
Milton Siqueira vendendo, por antecipação, toda a casa do Teatro Carlos Gomes para seus recitais de poesia.
Antônio Zepellin mantendo, dias a fio, a roda dos curiosos junto à cigarreira, em busca de novidades a respeito da estória da onça que andava engolindo gente prás bandas do Baldo.
Sandoval Timoschenko, ex-fuzileiro e cabo eleitoral dos Nunes - a quem se atribuía o desaparecimento do recurso-bomba com que Djalma Marinho, advogado da Coligação Democrática, esperava salvar, à última hora, a eleição do desembargador Floriano Cavalcanti - surgindo, de repente, como diretor da Faculdade de Ciências Econômicas com registro, reconhecimento de utilidade pública e dotações no orçamento da união, para surpresa geral e em particular do professor Ulisses de Góis, que batalhava há séculos no mesmo sentido.
Carlos Augusto fazendo suspense de seus encontros na Sessão das Moças do Cine Rex.
A platéia que, da varanda do Natal Clube, apreciava as moças passarem, enquanto, sisudos e disfarçadamente, davam chamadas tremendas:
- Guerreiro! E o coronel, que não era homem para brincadeiras, estancou, virou o pescoço para todas as bandas e, não vendo quem o chamara, seguiu intrigado.
A chamada repetiu-se, rápida e bom som:
- Guerreiro! E o velho oficial, homem atilado, logo percebeu de onde provinha o trote e, num breve, mas conciso tonitroar dos mais nobres palavrões, fez com que aqueles desembargadores, médicos, comerciantes e altos funcionários, metessem a viola no saco e debandassem mortos de vergonha.
Na jeunesse dorée dos coroas de agora, cantava-se sob as janelas e nas noites de lua, a

"Praieira dos meus amores
Encanto do meu olhar!..."

do poeta Othoniel Menezes e as crianças do Grupo, compungidas, entoavam, a cada aniversário da morte de Augusto Severo:

"Foi a 12 de maio, lá na França,
Era puro e sereno o azul do céu!...

Aconteciam romarias cívicas ao salão da Força e Luz, onde chorava-se diante do retrato de João Pessoa. Os "perrepistas" comandados por José Augusto, reuniam-se no Café Cova da Onça: Monsenhor Mata, Silvino Bezerra, Alberto Roselli, Gentil Ferreira, José Mesquita, Major Peruse Pontes, João Câmara, Bruno Pereira, Cel. João Medeiros, e um jovem sertanejo que herdaria do primeiro a liderança: Dinarte Mariz.
Do outro lado, reunidos no escritório de Cícero Gadelha, os "pelabuxo": Café Filho, Kerginaldo Cavalcanti, Sandoval Wanderley, Eliseu Leite, Gatão Corrêa, Bilé Soares, Guimarães farmacêutico, Laércio do Saneamento, Amaro Magalhães.
O gosto pela política era amenizado pelo futebol nas rodas do Grande Ponto, onde o cônego Luiz Wanderley pontificava ao lado de João Machado, Túlio Fernandes, Antônio Pinto, Euclides, do Santa Cruz, e Humberto Pignataro, este último, o único torcedor do Bonsucesso de que se tem conhecimento.
O padre Eimar L´Ereiste recitando, no Ofício das Trevas, as Lamentações de Jeremias, com aquela entonação que embevecia José Gonçalves: "Jeeerusalém!"...
Eutiquiano Reis amando, como um cortesão barroco, a gentil Glorinha Sigaud.
A vitrola de King-Kong cantando solta no lombo dos adversários do interventor Mário Câmara, e o povo conversando sobre o trivial: escassez de chuvas, safra algodoeira, movimento do porto, desavenças no estrangeiro, pronunciamentos do general Góis Monteiro, filmes em cartaz, a viagem de Dr. Eloy de Souza ao Egito, o "raid" da esquadrilha de Del Prette, os tesouros enterrados pelos holandeses - a que se dava crédito porque Maninho Cavalcanti confidenciara a Mestre Cascudo, e este fez matéria de "Acta Diurna", que "seu" Pulga, de Pirangi, encontrara um pra lá de Búzios.
As revistas do sul - Noite Ilustrada, o Malho, e, principalmente Vida Doméstica (que, de quando em vez, publicava fotos de casamentos locais), eram os grandes veículos de comunicações, a que se juntavam os jornais do Recife: Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, que davam mangas para curtidos bate-papos.

In Natal, RN, Lenine Pinto - 1975.

por Alma do Beco | 12:31 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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