Alex, Leonardo e Plínio
O dia amanhecia ainda escuro, a chuva torrencial que varou a madrugada insistia em cobrir os primeiros raios de sol na Cidade Alta. Na agitação da manhã, somente a obrigação da labuta obrigava os bravos a deixarem suas casas. Carros trafegavam com os faróis acesos, pessoas agasalhadas denunciam um dia atípico em Natal. O frio era intenso quando o carro onde viajavam os embaixadores do Beco da Lama pegou a estrada para Mossoró.
O desjejum foi em Caiçara do Rio dos Ventos, num cenário bucólico entre marrecos, guinés, galos e quintais. A chuva fina continuava. Em Lajes, a Serra do Cabugi anunciava que estávamos na metade do caminho. Uma revoada de garças brancas cruzou o céu como se quisessem dar as boas vindas quando penetramos o Vale do Açu. Fumaça nas chaminés das olarias denunciava que naquela sexta-feira havia muitos tijolos e telhas a serem fabricados.
Mais alguns quilômetros adiante, a decoração junina nas primeiras casas nos deu a certeza que estávamos chegando em terras de Santa Luzia. Fomos direto para a avenida Jorge Coelho de Andrade, casa do mais ilustre mossoroense, professor Vingt-un Rosado, para uma longa entrevista, recheadas de histórias e livros, para o deleite de seus interlocutores.
A conversa transcorreu descontraída dentro da sua enorme biblioteca. Para muitos, Vingt-un é considerado o “Cascudo mossoroense”, tamanha sua produção e dedicação às letras potiguares. Dentro da “Coleções Mossoroenses”, publicou mais de quatro mil títulos. Escritor, paleontólogo, engenheiro, professor, ocupante da cadeira 38 da Academia Norte-rio-grandense de Letras, membro de vários institutos históricos brasileiros, criador da Escola Superior de Agricultura de Mossoró, Vingt-un Rosado é uma enciclopédia viva e o último baluarte da dinastia dos Rosados. Deixamos a mansão com uma ligeira sensação que tínhamos bebido numa fonte mágica. Um encontro memorável.
Quando cruzamos o Rio Mossoró, o cheiro da cidade invadiu o carro com o mormaço do meio dia. Bandeirinhas de São João faziam a decoração sobre a ponte, disfarçando a poluição que mata o rio devagar, esquecido pelo poder público. Pobre rio! Devidamente instalado no Hotel Regente, fomos montar uma exposição fotográfica dos eventos bequianos, captados pelas lentes de Lenilton Paparazzi, no Chap-Chap, reduto etílico-cultural mossoroense.
Nas primeiras horas da noite, fomos assistir ao espetáculo “Chuva de Bala no País de Mossoró”, cuja encenação retrata a resistência dos mossoroenses combatendo o bando do cangaceiro Lampião. Com texto do escritor e professor Tarcísio Gurgel, dirigido pelo consagrado João Marcelino, o espetáculo dá ênfase ao amor dos mossoroenses a sua terra. O teatro ao ar livre acontece no Adro da Igreja de São Vicente. – É um privilégio de uma cidade poder encenar sua história no mesmo local onde aconteceu os fatos – pensei.
Voltamos ao Chap-Chap. O agitador cultural e proprietário do lugar, Rogério Dias, acrescentou ao cardápio o “Caldo de Lama”, cujo sabor lembrava um ensopado de ostras, em homenagem a “noite becodalamense” que se instalava no bar. A cantora Vivi Alves deu os primeiros acordes acompanhada por um sonoro violão. A atmosfera do lugar logo se transformou num grande sarau poético.
O poeta e artista plástico Laércio Eugênio, com sua Caixa de Pandora, fez uma interferência com a ajuda do amigo Beto. Sonetos de amor foram declamados pelo jornalista e poeta Cid Augusto. A audiência ainda aplaudia a performance do multi-artista Caio Muniz quando o poeta do Beco da Lama, Plínio Sanderson, subiu ao palco para saudar em versos o povo de Mossoró. No final da sua participação, a veia antropológica do ensandecido se revelou quando libertou o último escravo das amarras artísticas mossoroense. Nenhuma cena deixou de ser registrada pelas lentes de Hugo Macedo.
Numa mesa de canto, eu, Túlio Ratto, editor da revista Papangu, e o jornalista Leonardo Sodré, observávamos tudo atentamente. O jornalista ainda tentou rabiscar algumas caricaturas, mas o rum com coca começava a fazer efeito, causando-lhe fadiga e falta de inspiração. Em todas as mesas havia um “kit cultural” natalense – uma revista Preá e um exemplar do jornal Voz de Natal. O cansaço atingiu a todos. Voltamos para o hotel para um breve pouso com a sensação que tínhamos plantado a pedra fundamental da Samcha (Sociedade dos Amigos do Chap-Chap e Adjacências) co-irmã da Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências (Samba).
O sábado amanheceu nublado com um tímido sol esquentando o centro da cidade. Boca seca, fome e sede. Fomos comer churrasco e beber os primeiros goles de cerveja na barraca do Maradona. Apesar do nome portenho, trata-se de um legítimo representante da tribo dos Moxorós pelas suas feições indígena e do porte atarracado, do tipo “torado no grosso”.
No início da noite, voltamos ao Chap-Chap para baixar a lona da embaixada do Beco, colher o material de Dunga e dá um abraço de agradecimento em Rogério Dias e Túlio Ratto, que viabilizaram o intercâmbio com os artistas locais. Entre goles de cervejas e um bom papo, nos despedimos deixando saudades e lembranças. Os embaixadores deixaram decretado que, em breve, haverá uma “noite mossoroense no Beco da Lama”, como retribuição cultural.
Soubemos que Elino Julião iria se apresentar naquela noite, antes do show de Elba Ramalho, durante a programação oficial da prefeitura. Na Estação das Artes Eliseu Ventania, o evento “Mossoró Cidade Junina” ganhara ares grandioso, exaltando a cultura popular numa quermesse com raízes sertanejas. A diversão era garantida por um parque de diversão, barracas de comidas típicas, bares tocando o mais legítimo forró pé-de-serra, exposição de artes e até uma bodega de interior, feita de taipa e construída ao lado da Estação, onde servia cachaça da melhor qualidade. Uma multidão já se reunira em frente ao palanque quando Elino deu os primeiros acordes: “Eu não quero pagamento Nascimento, eu só quero é outro rabo de jumento...”
Deixamos Mossoró num calmo domingo azul em direção à Areia Branca. Quarenta e sete quilômetros de estradas sem trânsito e um visual constante de juremas verdes, somente cortadas pelos campos de sal e cavalos de metal puxando petróleo. É notório a riqueza da terra e a pobreza do povo. Mar à vista! Não entramos na cidade, fomos direto para a praia de São Cristóvão.
Naquele recanto de mar escondido, rodeados de dunas e coqueirais, fomos recebido por Chico e sua mulher, a valente Galega, com camarão e moqueca de peixe. Ficamos instalados no alto de uma duna, apreciando aquela baía de águas mansas como se o tempo insistisse em preservar o paraíso somente para nossos olhos. No horizonte, o Porto Ilha recebia navios e aquecia a economia do lugar com o escoamento de sal.
O domingo se arrastou sem pressa. Acordamos muito cedo na manhã da segunda-feira. Viajamos por uma estradinha ladeada pelo mar e as Dunas do Rosado, único lugar no mundo onde pode ser visto o encontro da vegetação caatingueira e a mata litorânea. Paramos em Porto do Mangue para um café-da-manhã reforçado para curar a ressaca e seguimos para a cidade de Alto do Rodrigues numa estrada lamacenta, cercada por uma densa floresta de carnaúbas.
O sol já estava forte quando chegamos na “estrada do óleo” que liga Açu à Macau. Centenas de cavalos puxando óleo, tanques de captação e longos canos faziam questão de seguir a paisagem dessa estrada mantida pela Petrobrás para o escoamento do petróleo potiguar. Buracos na pista denunciavam a falta de manutenção que sofre a rodovia, evidenciando o descaso da empresa com a estrada. Quando chegamos ao Vale de Ceará Mirim tive a certeza que estava em casa. Natal já se avizinhara e a sensação de voltar para colo materno tomava conta de todos. Nos separamos vagarosamente com a certeza de que outras aventuras serão organizadas e vividas por aqueles que defendem a cultura como alimento d’alma.
Alexandro Gurgel