Woden Madruga
O velho bairro da Ribeira, abandonado pelo poder público, ainda surpreende a alma de seus viventes renitentes com emoções fortes. Uma manhã dessas me encontro numa das calçadas da Doutor Barata, que hoje é uma seqüência de escombros - a mesma via por onde passaram, reis, generais, aviadores-heróis das primeiras travessias do Atlântico Sul, políticos estaduais e federais, artistas de Hollywood, mulheres bonitas e homens importantes - , com José Resende Filho, que foi líder do seu comércio nos anos sessenta. Foi uma conversa com a dor da saudade. Fomos até à esquina com a Praça Augusto Severo no mesmo rastro dos fantasmas.
Final da tarde de ontem, quando eu vinha para a redação, entra pela rua Nísia Floresta o carro de Moacir Maia. Ele pára e por alguns instantes ficamos numa troca de cumprimentos, a elegância e o cavalheirismo de Moacir, uma das boas figuras de gente desta aldeia de Poti mais bela. Ia para o seu velho escritório da rua Frei Miguelinho, primeiro andar, olhando para o Banco do doutor Aldo Fernandes, esquina nobre do bairro. Na outra calçada era a Cooperativa de Crédito de Jessé Freire. Metade da cidade batia àquelas portas, anos cicoenta, por aí. Naquele escritório da Frei Miguelinho, Moacir, que era o dono do cinema Rio Grande, dirigia uma empresa de construção civil que tinha obras em várias partes do país e na África, principalmente na Nigéria. Muitas vezes eu subia suas escadas para ouvir relatos de suas viagens e de suas aventuras. Lá se vão quase quarenta anos.
Quando abro o computador, a recepcionista me diz que "Deus está aqui e quer falar com o senhor". Era Ivanildo Paiva, das mais marcantes figuras natalenses dos anos quarenta e cinqüenta, advogado e juiz de Direito aposentado em Recife, onde vive há décadas, batendo na porteira dos 80 anos, mas com mesma verve da mocidade quando se destacava como o melhor contador de anedotas de sua geração. Natal do tempo da Guerra, do Ateneu da balaustrada da Junqueira Aires, da Ribeira efervescente, a mais rica noite boêmia da Cidade. Natal da sorveteria Cruzeiro, da Helvética e da Confeitaria Cisne, o apogeu do Grande Ponto, matinês do Aero Clube, banhos de mar em Areia Preta. Ponta Negra, longe, era somente para piqueniques e para corrida de submarinos...
Pergunto, pelo telefone interno, se Deus sobe escada. Diz que sim, mesmo a da Tribuna, a mais infame de todas as escadas do mundo. Deus vem até à redação. A mesma alegria de sempre, a conversa solta, rica de fatos engraçados, o bom humor permanente. Vai perguntando pelos amigos comuns e lembra que o seu pai, o grande professor José Saturnino de Paiva, dos maiores educadores deste Estado, se vivo fosse faria hoje 100 anos. Ah, tive o privilégio de ser seu aluno de Português, ginasial do 7 de Setembro do professor Fagundes, Natal findando os anos quarenta. E fomos conversando, passando as folhas do passado. Pergunto por Ivan Cacuruta, seu irmão, meu colega de turma por essas escolas da vida. Ivan, que sofreu derrames, já não cuida das coisas que acontecem por aqui. Foi um menino terrível das ruas da Estrela, professor Zuza, 13 de Maio. Craque de futebol, gerente de banco e depois, dono de bar.
Ivanildo tira de um envelope uma foto de 1941. Era um trote dos alunos do velho Ateneu, tirada por João Alves de Melo, na rua Doutor Barata, em frente à Drogaria Brasil, dos Fagundes. Era a sua turma. No meio deles vou identificando alguns: Nei Marinho, Firmino Moura - grande Firmino! -, Rubens Rato Branco, Amaro Marinho, Dari Dantas, Jahir Navarro, João Maria Meira Pires.
Ah, a Ribeira!
Hugo Macedo©
