JORNAL ONLINE LABORATÓRIO DO DECOM/UFRN
"ECLETISMO É MUITO BOM!"
Por: Adriano Medeiros Costa, Eronildes Pinto, Eva Paula de Azevedo, Marcel Lúcio Ribeiro, Vilsemar Alves
Clotilde acredita que é possível conviver e gostar de gêneros diversos e que o embate entre culturas é besteira
Por vocação Clotilde Tavares dedica-se às artes, embora seja graduada em medicina. Ela é atriz Stabrinada Cia. de Teatro, terapeuta floral, professora adjunta do Departamento de Artes da UFRN(onde leciona Interpretação e Literatura Dramática), conferencista e escritora. Publicou diversos livros, sendo “Magia do Cotidiano” sua obra mais recente e disponível nas livrarias. Nascida em Campina Grande(PB), ela é natalense por adoção. Suas idéias são divulgadas em artigos periódicos no jornal Tribuna do Norte e no site www.clotildenews.com.br. Em sua residência ela recebeu Aprendiz de Jornalista para a seguinte entrevista:
Aprendiz de Jornalista: Numa época em que predomina a globalização, por que a cultura local ainda é importante?
Clotilde Tavares: A globalização não implica que todo mundo deva pensar igual, se manifestar de forma igual e unificar a cultura. Pelo contrário, a globalização implica que as fronteiras entre as pessoas diminuem. A internet, por exemplo, que é a tecnologia que permite a globalização, apenas comunica as pessoas e destrói as fronteiras entre as pessoas. Mas, eu acredito que, exatamente, por causa da globalização as cultura locais vão ficar cada vez mais locais, na medida que eu entro em contato com uma pessoa cuja a cultura é completamente diferente da minha como um esquimó, suponhamos que eu entre na internet e comece a fazer amizade com um esquimó. Isso não significa que nós tenhamos que fabricar uma terceira cultura com elementos da minha e da dele, uma terceira coisa, de jeito nenhum. Eu creio que cada vez mais vou me concentrar na minha cultura e ele na dele, e nós dois vamos apenas mostrar um ao outro como cada um é, sem necessidade de se formar uma terceira coisa igual para todo mundo. Exatamente, por causa da globalização nós vamos ficar cada vez mais diferentes uns dos outros, mais locais. Não há riscos de se perder a identidade cultural, isso é uma besteira. Ninguém vai ficar padronizado. A Rede Globo tenta padronizar uma cultura, mas as resistências acontecem.
A.J.: Pode haver internacionalização de cultura sem que se acabe ou descaracterize as peculiaridades locais e nacionais?
C.T.: Um grupo de estudiosos que analisam as tendências que poderão serem seguidas pelas sociedades, diz que apesar dessa universalização de uma série de coisas, dentre elas a economia, a política, a cultura; há uma tendência das culturas locais serem cada vez mais reforçadas.
A.J.: O que se perde quando não se conhece a própria cultura?
C.T.: Em primeiro lugar, o indivíduo fica profundamente infeliz em termos individuais. Ficamos infelizes quando queremos imitar uma coisa que não é nossa, porque a definição de cultura diz que ela é o conjunto das formas de pensar, de sentir, de atuar no mundo, de comer, de se vestir, de caminhar, etc.; cultura não é só bumba-meu-boi, samba. Até a forma que vocês estão aí sentados e eu estou aqui, isso é um comportamento, todos os comportamentos fazem parte da cultura. Então, quando a pessoa fica se comportando de uma forma que não é natural a ela para imitar uma coisa que ela viu, quando ela mesma não conhece a sua forma, primeiro ela fica como um peixe fora d’água, infeliz. O primeiro prejuízo da pessoa não conhecer a sua própria cultura é uma infelicidade constante, uma dificuldade de se viver. A pessoa vive e parece que não está vivendo, por isso que muitas pessoas se tornam profundamente felizes quando voltam as suas raízes e encontram aquilo que realmente fala ao coração delas.
A.J.: Que autores e pensadores locais, como também universais tiveram grande influência sobre a senhora?
C.T.: Sempre li muito desde de criança, comecei a ler com três nos de idade. Fui criada numa casa com muitos livros, meu pai era poeta, jornalista; meus pais liam alto a noite em casa, nós ouvíamos rádio, não tinha televisão naquela época, e meu pai lia e recitava para minha mãe e vice-versa, então cresci numa casa onde os livros faziam parte dos comportamentos habituais. As primeiras coisas que eu lembro de ter lido foram livros de estórias: contos de terror, Andersen, as fábulas de Esopo, Monteiro Lobato, a coleção Tesouro da juventude, a mitologia grega, essa foram as primeiras influências. Na juventude, sou contemporânea do golpe militar, li muito política nessa época, escondida nas bibliotecas clandestinas, foi uma literatura que me marcou muito nessa época e depois, quando eu vim para Natal em 70, li muito policial, ficção científica (ainda leio): Artur Clarck, Philipe Clardy que é o autor do caçador de andróides e muitos autores americanos. Policial, li Sherlock Holmes, Aghata Cristie. Em termos acadêmicos, o que você considera acadêmico? Literatura séria? Para mim toda literatura é séria(...).Li Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, etc. li literatura latino- americana: Borges, Cortázar, Vargas Llosa, etc. Li livros da minha geração: James Bodewl, Herman Hess, que era a leitura dos hippies e dos malucos. E li muita literatura oriental sobre budismo e outras religiões(...). Li muitos romances, poesia dos poetas bitnicks(...). Do Rio Grande do Norte, li Cascudo antes mesmo de vir para Natal. Conheci ele quando fui em sua casa pedir para que autografasse o “Dicionário do Folclore Brasileiro”. Daqui de Natal eu gosto de alguns poetas: Marize de Castro, Nei Leandro de Castro, Diva Cunha, Zé Areia e Renalto Caldas.
A.J.: Por que a Paraíba zela e estima tanto os seus artistas e escritores e por que o Rio Grande do Norte não faz o mesmo?
C.T.: Logo quando eu cheguei à Natal no ano de 1970, estava passando na Avenida Rio Branco e tinha uma mulher conversando com outra, me aproximei, uma se despediu e a outra olhou para mim e disse: “ela é americana!”, como se dissesse que estava conversando com o Papa. Eu disse: “sim e daí?”. Ela disse: “é americana, não está entendendo não?”. Eu achei isso muito estranho, porque nessa época na Paraíba nós odiávamos os americanos, por causa da ditadura. E aqui em Natal o pessoal adorava os americanos, pareceu-me ser resquícios da II Guerra. Logo, comecei a notar que as pessoas da minha idade daqui de Natal não sabiam o que era um cantador de viola. Na Paraíba, principalmente em Campina Grande, o pessoal é muito ligado às coisas da terra. Quando cheguei aqui parecia que estava no sul, numa cidade não nordestina. Aliás, Natal para mim tem essa característica de não parecer uma cidade nordestina. Em 75, o poeta Jomar de Brito veio a Natal e a batizou de “Londres Nordestina”. Nessa época, Natal era conhecida no nordeste como sendo uma cidade diferente das demais. Em 78, fui à Maceió para um congresso e quando disse que era de Natal, o pessoal recuo, porque as mulheres de Natal tinham uma fama horrível, eram consideradas muito liberadas, quer dizer, então existia essa percepção de Natal como sendo uma cidade super avançada, sem nenhuma ligação com as outras cidades do Nordeste. Eu considerava e considero muito interessante essa característica, ‘considero’ porque Natal ainda possui essa característica. Acredito que Natal é assim, por conta da permanência dos americanos aqui tanto durante a II Guerra. A Paraíba não teve essa presença estrangeira, e além do mais o paraibano é diferente, porque ele é muito cioso de suas coisas. Há uma anedota que demonstra bem esse fato: pergunta-se, “você é de onde?”, responde-se, “da Bahia”, “do Rio Grande do Norte”, “da Paraíba, por quê?”, quer dizer, é como se o paraibano tivesse muito orgulho de ser paraibano e não gostasse de invasão. Em Campina Grande, o camarada das indústrias comprava máquinas para fazer estradas, caso ela se quebrasse, ele não mandava chamar técnico de fora, ele mesmo olhava e dali a pouco terminava consertando a máquina. O paraibano não dá tanta autoridade a quem vem de fora, ele procura construir o seu modo próprio de agir, mesmo naquilo que não entende.
A.J.: Existe uma identidade norte-rio-grandense?
C.T.: Eu creio que não. Procuro, mas não acho algo que seja realmente potiguar. Não tenho argumentos teóricos, mas eu não sinto uma identidade norte-rio-grandense.
A.J.: A exemplo do Japão, existe alguma cidade ou estado brasileiro que conserve suas próprias tradições e saiba conviver, ao mesmo tempo com o diferente?
C.T.: Não sei lhe responder. Campina Grande é uma cidade muito interessante, não sou só eu que digo isso. Se você entrar na minha home-page e olhar a página que fiz sobre Jackson do Pandeiro, paraibano, você verá alguns depoimentos de artistas sobre ele. No seu depoimento, Gilberto Gil fala sobre a característica cosmopolita de Campina Grande, ninguém tão bem quanto o Gil falou sobre esse negócio. Porque Campina Grande tem horas que é uma cidade onde acontece de tudo e onde tudo se identifica, como se você estivesse num lugar onde se cruzassem diversas tendências, onde foi que eu aprendi a gostar de rock? Nunca fui ao Rio de Janeiro até os 25 anos de idade, nem no sul, aprendi a gostar de rock em Campinas, vi todos os filmes do cinema novo, cineastas famosos vi no cine-clube de Campina Grande. Evolui escutando rock e cantador de viola. E por isso acho uma besteira você só gostar de uma coisa . A visão geral que eu tenho das coisas vem de Campina Grande. Jackson fez a síntese do malandro carioca, que é uma figura urbana, com o coquista nordestino, já o Luiz Gonzaga era mais rural.
A.J.: A senhora acha que a mídia é uma inimiga da cultura popular local?
C.T.: Vamos falar diretamente da Globo, porque as outras emissoras não chegam nem perto. A Rede Globo constrói um “jeito globo de viver”, e agora é para o mundo inteiro: o mundo inteiro conhecerá o jeito brasileiro de viver, eu digo, o jeito brasileiro, ou o jeito globo? Porque na Globo, mais especificamente nas suas novelas, para toda visita oferece-se uma bebida, porém na vida real ninguém oferece bebida e sim café. Nas novelas, os casebres sempre têm um tapete ao pé da cama e uma mesinha com uma luz indireta. Isso não existe! Ou seja, a Rede Globo cria um mundo mítico, e as pessoas só ligam a televisão por causa disso. Quem é que gosta das novelas do SBT, que são iguais a vida real? O povo quer ver é um negócio idealizado, bonito, diferente (...) gostamos de ver isso. Não é que a Globo seja uma inimiga da cultura local: se eu sou sua inimiga, eu faço tudo para lhe prejudicar; não é por aí, a Globo apenas está cuidando do lado dela e quem aparecer pelo meio ela atropela, pode ser a cultura popular; pode ser quem for. Eu não sei se a Globo teria obrigação de valorizar a cultura popular, quem tem obrigação de valorizar a cultura popular é o governo, e este não valoriza. A Globo é particular, uma empresa que visa o lucro, enquanto que o governo é pago pelo povo, portanto tem obrigação de fazer determinadas coisas dentro de um modelo. Agora, eu estava vendo no jornal que dona Vilma vai construir um arco sobre a Br-101, com estrela e etc, vai gastar 350 mil reais, depois eu vi noutro jornal que era 600 mil reais, quer dizer, dava para construir um teatro aqui na zona sul (...) ou então, se não quiser construir na zona sul, constrói na zona norte. Nessa hora, não se está ajudando a cultura popular e sim a vaidade besta de quem manda construir um arco com uma cápsula, para colocar não sei o que dentro e só abrir daqui a 100 anos, quando Natal fizer 500 anos. Que bobagem! O que é que adianta um negócio para abrir daqui a 100 anos?
A.J.: Por que as pessoas diante do dilema entre assistir a um capítulo de telenovela e ver uma apresentação do boi-de-reis em praça pública preferem ficar em casa diante da TV? Com que intensidade o advento da televisão acabou com a cultura local?
C.T.: Eu pelo menos prefiro ficar diante da TV. São coisas separadas, o que é o Boi? É um auto, uma brincadeira, um evento, onde pessoas se reúnem para dentro daquela dramatização elaborarem aspectos das suas próprias vidas. O Boi perdeu o sentido hoje em dia, o gado não é mais criado do jeito que era antes, as pessoas não têm mais aquela ligação com a criação de gado, então o boi-de-reis não tem o menor sentido para “você”, até que tem um pouco para mim, porque sou mais velha e sou professora de folclore. Já novela tem sentido para “você”, ela faz parte da sua vida. As pessoas não sentem mais ligação com o boi, porque isso é uma coisa que tem que vir de criança. Não se pode impor essas coisas às pessoas.
A televisão, de certa forma, uniformiza mais do que deveria, e porque também não existe uma política de emissoras locais. Cadê o governo? Este fica é obrigando as emissoras comerciais a incluir programação local, não. Deixe eles fazerem a deles e vamos fazer a nossa de boa qualidade, será que nós não sabemos fazer? Agora, vamos pagar direito. Por exemplo: dona Vilma faz o “Auto de Natal” e manda buscar um diretor no Rio de Janeiro a preço de ouro, e liga para os atores da terra, como ligaram para mim o ano passado, convidando para se apresentar de graça. Então, o governo traz o pessoal de fora, pagando caro, para fazer bobagens, como foi o ano passado e será novamente esse ano, tendo aqui João Marcelo Nunes.
A.J.: O que a senhora pensa do Movimento Armorial e de seu idealizador Ariano Suassuna?
C.T.: O Movimento Armorial é muito interessante, mas o engraçado é que o próprio Ariano entra numa grande contradição: diz que é nordestino, mas na verdade é um “nordestino europeu”, porque o Movimento Armorial é todo baseado no medievalismo ibérico, quer dizer, não é tão nordestino assim. E o que eu não gosto em Ariano é a sua xenofobia. Eu acho até que ele faz um gênero, faz um tipo, gosta de fazer um sucesso; é aquela história de falar mal do Pato Donald, do Beto Carreiro World, do rock, eu acho isso uma pobreza. Tudo é válido, desde que seja bem-feito, bonito, legal(...). Outra coisa que eu não gosto no Ariano é que ele é monarquista, mas é comunista. O Movimento Armorial seria muito mais enriquecido se o Ariano gostasse de rock, porque essa fusão é que é bonita, isso é o que enriquece.
A.J.: O humorismo norte-rio-grandense atual é de talento duvidoso, onde impera o riso fácil de pura pornografia e o teatro que faz sucesso, não só aqui, é o “ besteirol”. Algum dia tivemos bons humoristas e teatrólogos?
C.T.: Vocês nunca se juntaram para contar anedota porca? Nunca? Isso existe, as pessoas gostam. Por que é besteirol? E gosto duvidoso? Você pode até dizer que não gosta, mas se junta com os amigos para contar piada imoral. Como você é intelectual, aluno de jornalismo, não vai ao teatro assistir ao show do Espanta, muito embora, com seus amigos “você” reproduza as mesmas piadas do Espanta. O besteirol faz tanto sucesso, porque as pessoas gostam de ir para o teatro se divertir, relaxar; o mundo hoje está muito difícil, então você não quer assistir a um drama e sim uma comédia. E os teatrólogos são muito chegados a um drama, que não é o meu caso (...).
A.J.: Com a chegada do novo milênio a senhora prevê um aumento do cosmopolitismo ou uma surpreendente volta as raízes?
C.T.: As duas coisas. Com a chegada do terceiro milênio, nós estamos caminhando para aquele mundo que John Lennon falava: “imagine que não há fronteiras, imagine que não há país, imagine todos os homens unidos”. O fato de nós estarmos conversando não quer dizer que eu tenho que assimilar seu pensamento e “você” assimilar o meu. Essa diferença não pode constituir uma fronteira, temos que conhecer o pensamento do outro para enriquecer o nosso. Vai aumentar o cosmopolitismo, as fronteiras ficaram menos densas, as pessoas se comunicaram cada vez mais, porque há a internet. E ao mesmo tempo essas pessoas terão cada vez mais orgulho de mostrar aos outros que são diferentes. Ao invés de “ou isso ou aquilo”, devemos usar “isso e aquilo”.