20.10.03
Ninguém entendeu de imediato. Foi preciso dar um tempo, como as coisas em Natal, para que a situação se encaixasse e o fato novo fosse inteiramente sorvido. E consumido. Como era mais que de direito.
Os moradores e habituais freqüentadores do Centro da cidade surpreenderam-se com aquela novidade. E ela prometia desdobramentos a cada fração de hora. Numa área, mesmo sendo a do comércio tradicional, em que os sábados, normalmente, começam a se desfolhar com preguiça e se esticam sem maiores alvoroços, comendo o dia com dissoluta lentidão e cara de folgado, aquele sábado mostrou-se pouco católico desde o início da manhã. Sem que nada de especial fosse anunciado até a meia-noite da sexta-feira, as ruas amanheceram com um número de mendigos maior que o habitual e com papudinhos novos no pedaço, caras e bocas absolutamente inéditas no setor. Toda essa cena era filmada meticulosamente pelo videasta Augusto Lula.
A rua João Pessoa, habitualmente casta, começou a receber um rio de caras novas, aventureiros visivelmente calouros, debutantes no gesto e na fala, curiosos e bisbilhoteiros, mostrando-se, em pouco tempo, repleta de uma turba agitada – da qual se sobressaíam esmoleres, gigolôs, michês, bebuns em profusão, que começavam a apinhar-se no aguardo, certamente, de uma “boca livre”. Aos curiosos iniciais, passaram a se somar os transeuntes que, de certo, acorriam ao comércio, todos agora ardendo em curiosidade. Ali pelas 9 horas, havia uma quantidade de pessoas presas de uma onda febricitante, como se abrasadas em febre, tomadas de uma alegria esfuziante e incontida, levando a crer que estivessem possuídas dos efeitos alucinógenos de uma nova droga. O evento se dava no sábado 1o de novembro, Dia de Todos os Santos.
Principalmente, correra em surdina que ali haveria um lanche do Fome Zero, seja lá isso o que representasse em termos de “boca livre". Alguns gaiatos fizeram circular uma versão lulista da novidade: "É o Brasil que come ajudando o Brasil que tem fome." Contam-se no Rio Grande do Norte, neste 2003, conforme o IBGE, nada menos que 925.200 pessoas sem qualquer rendimento, numa população de 2,7 milhões, chegando a perto de 700 mil as que vivem com até um salário mínimo. Calculam-se, portanto em 1,2 milhão, quase a metade, os que vivem abaixo da linha da pobreza. Os que ganham mais de 20 salários mínimos chegam a apenas 14.206 pessoas.
Ainda pertencente à tradicional família Lamartine, o prédio do Cine Nordeste, que soma 1.400 metros quadrados de área construída, englobando uma lanchonete e a sede do PC do B, que também abandonou o imóvel, tornou-se mais uma vítima da modernidade tardia em Natal. O prédio ainda abrigou sessões de exorcismo de uma igreja pentecostal e, por último, recebia um público aficcionado em cinema pornô. Seu fechamento, além de registrar uma vitória da tecnologia, em tempos de multiplex , DVD, vídeo e filmes piratas na internet, marcava, principalmente, a exclusão de uma populosa comunidade de seu último reduto no Centro – o segmento GLBT (gays, bichas, bissexuais e transgêneros), sem esquecer o volumoso e sempre crescente público de michês, cuja fidelização às sessões pornôs marcaram época no coração da cidade, nas pernas, bocas e bolsas das meninas. O ato simbólico demarcava, portanto, a perda desse território de caça no centro da cidade, como aspecto das mudanças urbanas que a capital vinha sofrendo.
Em toda a área em torno do Cinema Nordeste, em especial o pedaço de rua diante do prédio, chegando a ocupar a parte que um dia foi a sorveteria Oásis, a cena que se desenrolava era a de um set de filmagem. Pastores da Igreja Brasileira e da Federação Espírita benziam todos os recantos. Com toda pinta e inspiração de Fellini. Sob dois falos gigantescos que ornavam a entrada do prédio, duas mulheres extremamente obesas - na verdade dois convidados especiais, Carlos Volú e Alcoforado -, maquiadas com esmero e volteando o corpo sob esvoaçantes e coloridos vestidos em seda chinesa, adornadas com ricos enfeites, ornatos e acessórios de festa, tal qual cortesãs dos salões da antiga Roma dos Césares, postaram-se à portaria do cinema, e dali passaram a tagarelar, emolduradas por expressiva gestualidade, num ritual mímico de graça e leveza. Distribuíam camisinhas, o folheto d e cordel com orientação sobre DST/Aids, O Membro Fantasma, do médico Jair Figueiredo, panfletos sobre saúde e explicações do que ali se dava.
Este gesto era imitado por numerosos personagens que saíam diretamente das entranhas do cinema, encaminhados à rua por Gardênia, toda galante num modelito inspirado em Severina, A Embaixatriz. Identificados pela ralé, esses personagens causavam entusiástico acolhimento e viva sensação, após a surpresa, alimentando uma alegria irradiante e bêbada. Eram réplicas de Greta Garbo, Sofia Loren, Clark Gable, Sylvester Stallone, Mae West, Elizabeth Taylor, Ramon Novarro, Rodolfo Valentino, Liza Minnelli, Anjelica Huston, Orson Welles, Charlie Chaplin, Marlene Dietrich, Rock Hudson, Clint Eastwood, sem deixar faltar Theda Bara. E tinha razão de ser: ela estreou no cinema em 1915, no filme “A fool there was”, um tremendo sucesso de bilheteria.
Com efeito, muita sensualidade na tela e uma ousadia comedida fizeram de Theda o primeiro arquétipo sexual do Cinema. Com o sucesso do filme e o encanto do público, Theda passou a ser exigida e fez mais de 40 filmes nos três anos seguintes. Por isso, uma homenagem especial fora reservada à atriz Theodoria Goodman, que viria a ser conhecida como Theda Bara, aquela que instalou o Sex appeal no cinema e o encaminhou para uma tendência erótica, vivendo papéis de “vampiras” históricas, mulheres poderosas como Salomé, Cleopatra, Carmem e outras. Na galeria dos astros e estrelas nacionais, muitos foram os monstros sagrados brasileiros clonados a ser desovados do interior do edifício, como Oscarito, Zezé Gonzaga, Grande Otelo, Zezé Macedo, Cyl Farney, Sônia Braga, Fernanda Montenegro, Zezé Mota, Vera Fischer, e muitas vedetes da pornochanchada brazuca, ve rdadeiros ícones do cinema tupiniquim, como Renata Fronzi, Aldine Muller, Sandra Bréa, Zaira Bueno sem faltar Jece Valadão, no retrato irretocável do cafajeste tapuia e maior nome do gênero pornô nacional.
Em minutos, toda a Cidade Alta já sabia. A efeméride se dava para se marcar a extinção daquela sala de cinema. A festa era em memória de dois dos mais fiéis segmentos de público, cujos representantes se fizeram presentes, a convite da promoter Marcelona Trafalgar, que programara tudo pelo Clube Gay dos Potiguares (CGP), entidade com poderosa articulação e funda penetração nas esferas dos poderes municipal e estadual. De sua parte, os amantes da sétima arte na capital potiguar, os cinéfilos ligados por laços afetivos ao extinto Cineclube Tirol, ali compareceram em grande número, em nome dos fundadores da agremiação.
Como surpresa, as meninas do CGP emolduraram e fizeram colar em banners, tanto no cinema como nas imediações do prédio e nos bares e tavernas das redondezas - nos bares de Odete, Pedrinho Abech, Aluízio, Nazaré, Nazir e outros -, numa singela homenagem, os nomes daqueles que, direta ou indiretamente, estiveram nos albores do Cinema de Arte em Natal, sendo citados nominalmente, incluindo os falecidos. Cada cinéfilo tinha seu nome ligado em vinhetas ao nome de um grande astro de Hollywood, da Cinecità ou da Atlântida e Vera Cruz. Era um gesto de galanteria que se fazia à geração das cocadas, a turma que chegara à adolescência e à juventude na década de 60, estando hoje, em sua grande maioria, consagrados nas diversas áreas de atividades, como professores, advogados, jornalistas, políticos, escritores, poetas, artistas plásticos, profissionais libera is de variada categoria, como Franklin Capistrano, François Silvestre, Anchieta Fernandes, Dailor Varela, Marcos Silva, Dagmar Fernandes, Aléxis Gurgel, Valdeci Lacerda, Gilberto Stábille, Toinho Gurgel, Fernando Pimenta, Paulo Rocha, Emmanuel Bezerra, Falves Silva, Luiz Gonzaga Cortez, Moacy Cirne, José Ribamar, Gersino Saraiva, Manoel Onofre Júnior, Inácio Magalhães, Jarbas Martins, Natanael Virgínio, Alderico Leandro, Bené Chaves, Francisco Sobreira, Hermano Paiva, Bosco Lopes, João Charlier, Manuel Duarte (Manu), Raimundo Hélio, Carlos Furtado, Gileno Guanabara, Francisquinho Gurgel.
Todos eles pessoas que lançavam, naquela década de transes fenomenais e de transas estruturais em Natal, quase que involuntariamente, a primeira e praticamente única política cultural de que se tem notícia, antes do prefeito Djalma Maranhão, reforçando na meninada buchuda de então o apreço pela cultura cinematográfica. Davam a devida importância ao cinema, naquilo que serviria para a formação de uma visão crítica do mundo. Daí as sessões de Cinema de Arte, criadas pelo Cineclube Tirol, tanto no Cine Rex como depois no Rio Grande e no Cinema Nordeste, divulgando a obra e as lucubrações de gênios do écran. Marcaram época esses personagens, vividos por atores que viravam ídolos nas mãos de diretores franceses da Nouvelle-Vague (“Nova Onda”), movimento francês que renovou o cinema no final dos anos 50, a discorrer elegantemente sobre temas existenciai s de sua sociedade, e cuja galeria de diretores mais famosos incluía François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol, Jean-Luc Goddard e Louis Malle, entre outros. Os filmes eram estrelados por mitos como Catherine Deneuve, Fanny Ardant, Alain Cuny, José-Luis Villalonga, Jean-Marc Bory, Bertrand Morane e, principalmente, Jeanne Moreau, cada um, a seu modo, com suas poesias particulares, falando do amor.
Já o Neo-Realismo italiano, cuja ideologia difundida entre seus realizadores, tanto para a estética quanto para a política, constitui um “estilo de época” do Cinema, hasteava a bandeira da representação objetiva da realidade social como forma de comprometimento político. Com o seu período mais produtivo e significativo entre os anos de 1945 e 1948, representava a sociedade por meio de uma ótica que privilegiava a realidade do povo, filmando a favela, a vila de pescadores, as ruas cheias de gente no centro da cidade. Contam-se entre seus diretores mais famosos Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Vittorio DeSica, que emolduram a rotina da classe trabalhadora urbana de então assombrada pelo desemprego, como ocorre hoje, além de Federico Fellini e Michelangelo Antonioni.
Por seu turno, o Neo-Realismo iria influenciar diversos cineastas brasileiros nas décadas de 50 e 60, dentre eles Nélson Pereira dos Santos, e dando origem à estética da fome e do sonho, ao cinema pensado entre a política e a poesia, como é a essência dos filmes de Glauber Rocha, o maior expoente do Cinema Novo, movimento brasileiro surgido então.
A associação gay fizera circular uma convocatória, e obtivera todo sucesso no seu intento. Produzida e encaminhada há um mês, convidava ou, por outra, convocava expressamente, exigindo a presença de todos os bofes cujo hobby ou viração era abordar monas em calçadas e shoppings centers, e que tivesse seu registro no CGP. Pelo que se via naquele alarido, invertera-se a máxima bíblica do “Muitos serão os chamados; poucos os escolhidos”, porque na sessão todos teriam direito a um gozo, a um mimo. Haviam sido escolhidos numa quilométrica relação de nomes de posse do CGP.
O ponto alto do programa convergia para uma homenagem às BMS – Bichas Monstros Sagrados, uma celebração exclusiva do segmento, que pretendia se repetir a cada ano, no Dia de Finados, 2 de novembro. Uma cerimônia especial foi realizada na entrada do prédio, pela qual as bichas mitológicas da cidade, verdadeiras lendas do universo gay natalense, de várias épocas, como Otávio, Velocidade, Leo Dantas, Nazareno, Duruca, Ataíde (Agenor Teodoro), Brigitte (Manoel Martins Mendonça), Cu de Ouro, Júnior, Martins e outros, tinham suas principais características personificadas por gays do CGP. Era assim que se dirigiam aos passantes com abordagens recheadas de pilhérias, gracejos e tiradas de cunho satírico, confirmando a máxima de que "bicha morta vira purpurina".
Finalmente, com a saída do último dos homenageados do Cineclube Tirol, teve início um show com Zezo, dublando Ney Matogrosso, e a sessão de cunho erótico propriamente dita. Enquanto artistas encarnando Mae West, Carmem Miranda e as principais vedetes da chanchada brasileira se revezavam na apresentação de esquetes burlescos, comandados por Jarita Night and Day, e protagonizados por artistas de circo, caricatas, palhaços e profissionais do sexo entregues exclusivamente a exercícios manipulatórios, teve início uma cerimônia de felação coletiva e penetração de alto percurso ocupando todos os quadrantes do cinema. Na tela, as cenas do último filme a ser exibido naquele ex-cinema, como homenagem aos dez anos da morte de Fellini: “A Doce Vida”. Invadindo tudo, a música de Nino Rota enchia os corações.
Duplas de lolitos percorriam o ambiente, recitando poemas de Vinícus de Moraes, que completava 90 anos de nascimento a 19 de outubro, com destaque para "Soneto de fidelidade": "De tudo ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento/ Quero vivê-lo em cada vão momento/ E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento./ E assim, quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama/ Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure."
Paulo Augusto é jornalista